The Project Gutenberg EBook of Papeis Avulsos, by Machado de Assis

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Title: Papeis Avulsos

Author: Machado de Assis

Release Date: April 19, 2018 [EBook #57001]

Language: Portuguese

Character set encoding: UTF-8

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PAPEIS AVULSOS ***




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MACHADO DE ASSIS

PAPEIS AVULSOS

O ALIENISTA—THEORIA DO MEDALHÃO
A CHINELA TURCA
NA ARCA—D. BENEDICTA—O SEGREDO DO BONZO
O ANNEL DE POLYCRATES
O EMPRESTIMO—A SERENISSA REPUBLICA
O ESPELHO
UMA VISITA DE ALCIBIADES—VERBA TESTAMENTARIA
RIO DE JANEIRO
Typographia e Lithographia a vapor, Encadernação e Livraria
LOMBAERTS & C.
7—Rua dos Ourives—7
1882

INDICE


OBRAS DO AUTOR

Memorias Posthumas de Braz Cubas
Papeis Avulsos
Helena
Yayá Garcia
Ressurreição
A mão e a luva
Historias da meia noite
Contos Fluminenses
Americanas
Phalenas
Chrysalidas
Tu só, tu, puro amor


ADVERTENCIA

Este titulo de Papeis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor colligiu varios escriptos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são elles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pae fez sentar á mesma mesa.

Quanto ao genero delles, não sei que diga que não seja inutil. O livro está nas mãos do leitor. Direi sómente, que se ha aqui paginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outros podem achar nellas algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalyptica, accrescentava (XVII, 9): "E aqui ha sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquella palavra. Quanto a Diderot, ninguem ignora que elle, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse tambem. E eis a razão do encyclopedista: é que quando se faz um conto, o espirito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba sem a gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche[1], espero que dahia mesmo virá a absolvição.

Machado de Assis

Outubro de 1882.


[1]Cerca de dous annos para cá, recebi duas cartas anonymas, escriptas por pessôa intelligente e sympathica, em que me foi notado o uso do vocabulo reproche. Não sabendo como responda ao meu estimavel correspondente, aproveito esta occasião.

Reproche não é gallicismo. Nem reproche nem reprochar. Moraes cita, para o verbo, este trecho dos Ined. II fl. 259: "hum non tinha que reprochar ao outro;" e aponta os logares de Fernando de Lucena, Nunes de Leão e D. Francisco Manoel de Mello, em que se encontra o substantivo reproche. Os hespanhoes tambem os possuem.

Resta a questão de euphonia. Reproche não parece mal soante. Tem contra si o desuso. Em todo caso, o vocabulo que lhe está mais proximo no sentido, exprobração, acho que é insupportavel. Dahi a minha insistencia em preferir o outro, devendo notar-se que não o vou buscar para dar ao estylo um verniz de extranheza, mas quando a ideia o traz comsigo.



O ALIENISTA

I
DE COMO ITAGUAHY GANHOU UMA CASA DE ORATES

As chronicas da villa de ltaguahy dizem que em tempos remotos vivera alli um certo medico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos medicos do Brazil, de Portugal e das Hespanhas. Estudara em Coimbra e Padua. Aos trinta e quatro annos regressou ao Brazil, não podendo el-rei alcançar delle que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou era Lisboa, expedindo os negocios da monarchia.

—A sciencia, disse elle a Sua Magestade, é o meu emprego unico; ltaguahy é o meu universo.

Dito isto, metteu-se em ltaguahy, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da sciencia, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os theoremas com cataplasmas. Aos quarenta annos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco annos, viuva de um juiz de fóra, e não bonita nem sympathica. Um dos tios delle, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lh'o. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições physiologicas e anatomicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excellente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e intelligentes. Se além dessas prendas,—unicas dignas da preoecupação de um sabio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimal-o, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da sciencia na contemplação exclusiva, miuda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu ás esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A indole natural da sciencia é a longanimidade; o nosso medico esperou tres annos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da materia, releu todos os escriptores arabes e outros, que trouxera para Itaguahy, enviou consultas ás universidades italianas e allemãs, e acabou por aconselhar á mulher um regimen alimenticio especial. A illustre dama, nutrida exclusivamente com a bella carne de porco de Itaguahy, não attendeu ás admoestações do esposo; e á sua resistencia,—explicavel, mas inqualificavel,—devemos a total extincção da dynastia dos Bacamartes.

Mas a sciencia tem o ineffavel dom de curar todas as magoas; o nosso medico mergulhou inteiramente no estudo e na pratica da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a attenção,—o recanto psychico, o exame da pathologia cerebral. Não havia na colonia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante materia, mal explorada, ou quasi inexplorada. Simão Bacamarte comprehendeu que a sciencia lusitana, e particularmente a brazileira, podia cobrir-se de «louros immarcessiveis,»—expressão usada por elle mesmo, mas em um arroubo de intimidade domestica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

—A saude da alma, bradou elle, é a occupação mais digna do medico.

—Do verdadeiro medico, emendou Crispim Soares, boticario da villa, e um dos seus amigos e comensaes.

A vereança de Itaguahy, entre outros peccados de que é arguida pelos chronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na propria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do beneficio da vida; os mansos andavam á solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença á camara para agasalhar e tratar no edificio que ia construir todos os loucos de Itaguahy e das demais villas e cidades, mediante um estipendio, que a camara lhe daria quando a familia do enfermo o não podesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a villa, e encontrou grande resistencia, tão certo é que difficilmente se desarraigam habitos absurdos, ou ainda máus. A idéa de metter os loucos na mesma casa, vivendo em commum, pareceu em si mesma um symptoma de demencia, e não faltou quem o insinuasse á propria mulher do medico.

—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigario do logar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juizo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe «que estava com desejos», um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a elle lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquelle grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dalli foi á camara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquencia, que a maioria resolveu autorisal-o ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doudos pobres. A materia do imposto não foi facil achal-a, tudo estava tributado em Itaguahy. Depois de longos estudos, assentou-se em permittir o uso de dous pennachos nos cavallos dos enterros. Quem quizesse emplumar os cavallos de um coche mortuario pagaria dois tostões á camara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do fallecimento e a da ultima benção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos calculos arithmeticos do rendimento possivel da nova taxa: e um dos vereadores, que não acreditava na empreza do medico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inutil.

—Os calculos não são precisos, disse elle, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora metter todos os doudos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o medico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na rua Nova, a mais bella rua de Itaguahy naquelle tempo, tinha cincoenta janellas por lado, um pateo no centro, e numerosos cubiculos para os hospedes. Como fosse grande arabista, achou no Koran que Mahomet declara veneraveis os doudos, pela consideração de que Allah lhes tira o juizo para que não pequem. A idéa pareceu-lbe bonita e profunda, e elle a fez gravar no frontespicio da casa; mas, como tinha medo ao vigario, e por tabella ao bispo, attribuiu o pensamento a Benedicto VIII, merecendo com essa fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquelle pontifice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asylo, por allusão á côr das janellas, que pela primeira vez appareciam verdes em Itaguahy. Inaugurou-se com immensa pompa; de todas as villas e povoações proximas, e até remotas, e da propria cidade do Rio de Janeito, correu gente para assistir ás ceremonias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram occasião de ver o carinho paternal e a caridade christã com que elles iam ser tratados. D. Evarista, contentissima com a gloria do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flôres e sedas. Ella foi uma verdadeira rainha naquelles dias memoraveis; ninguem deixou de ir visital-a duas e trez vezes, apezar dos costumes caseiros e recatados do seculo, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este facto é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo,—porquanto viam nella a feliz esposa de um alto espirito, de um varão illustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas publicas; Itaguahy tinha finalmente uma casa de Orates.

II
TORRENTE DE LOUCOS

Tres dias depois, n'uma expansão intima com o boticario Crispim Soares, desvendou o alienista o mysterio do seu coração.

—A caridade, Sr. Soares, entra de certo no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das cousas, que é assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Corinthios: «Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada.» O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos grãos, classificar-lbe os casos, descobrir emfim a causa do phenomeno e o remedio universal. Este é o mysterio do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço á humanidade.

—Um excellente serviço, corrigiu o boticario.

—Sem este asylo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; elle dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.

—Muito maior, accrescentou o outro.

E tinham razão. De todas as villas e arraiaes visinhos affluiam loucos á Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaniacos, era toda a familia dos desherdados do espirito. Ao cabo de quatro mezes, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubiculos: mandou-se annexar uma galeria de mais trinte e sete. O padre Lopes confessou que não imaginara a existencia de tantos doudos no mundo, e menos ainda o inexplicavel de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e villão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso academico, ornado de tropos, de antitheses, de apostrophes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cicero, Apuleo e Tertuliano. O vigario não queria acabar do crer. Que! um rapaz que elle vira, tres mezes antes, jogando peteca na rua!

—Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendissima está vendo. Isto é todos os dias.

—Quanto a mim, tornou o vigario, só se póde explicar pela confusão das linguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escriptura; provavelmente, confundidas antigamente as linguas, é facil trocal-as agora, desde que a razão não trabalhe...

—Essa póde ser, com effeito, a explicação divina do phenomeno, concordou o alienista, depois de reflectir um instante, mas não é impossivel que haja tambem alguma razão humana, e puramente scientifica, e disso trato...

—Vá que seja, e fico ancioso. Realmente!

Os loucos por amor eram tres ou quatro, mas só dous espantavam pelo curioso do delirio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco annos, suppunha-se estrella d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha sahido para elle recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, á roda das salas ou do pateo, ao longo dos corredores, á procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e sahiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciume satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquella ancia de ir ao fim do mundo á cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notaveis. O mais notavel era um pobre diabo, filho de um algibebe, que narrava ás paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

—Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou David, David engendrou a purpura, a purpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquez, o marquez engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma especie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não fallo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e promettia o reino dos céos a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrellas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia elle no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse scientifico.

Que, na verdade, a paciencia do alienista era ainda mais extraordinaria do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organisar um pessoal de administração; e, aceitando essa idéa ao boticario Crispim Soares, aceitou-lhe tambem dous sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, approvado pela camara, da distribuição da comida e da roupa, e assim tambem da escripta, etc. Era o melhor que podia fazer, para sómente cuidar do seu officio.—A Casa Verde, disse elle ao vigario, é agora uma especie de mundo, em que ha o governo temporal e o governo espiritual. E o padre Lopes ria deste pio trocado,—e accrescentava,—com o unico fim de dizer tambem uma chalaça:—Deixe estar, deixe estar, que hei de mandal-o denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principaes: os furiosos e os mansos; dahi passou ás sub-classes, monomanias, delirios, allucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e continuo; analysava os habitos de cada louco, as horas do accesso, as aversões, as sympathias, as palavras, os gestos, as tendencias; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circumstancias da revelação morbida, accidentes da infancia e da mocidade, doenças de outra especie, antecedentes na familia, uma devassa, emfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um phenomeno extraordinario. Ao mesmo tempo estudava o melhor regimen, as substancias medicamentosas, os meios curativos e os meios palliativos, não só os que vinham nos seus amados arabes, como os que elle mesmo descobria, á força de sagacidade e paciencia. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

III
DEUS SABE O QUE FAZ!

A illustre dama, no fim de dous mezes, achou-se a mais desgraçada das mulheres; cahiu em profunda melancholia, ficou amarella, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nelle o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viuva como dantes. E accrescentou:

—Quem diria nunca que meia duzia de lunaticos...

Não acabou a phrase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao tecto,—os olhos, que eram a sua feição mais insinuante,—negros, grandes, lavados de uma luz humida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu era casamento. Não dizem as chronicas se D. Evarista brandiu aquella arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a sciencia, out pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjectura é verosimil. Em todo caso, o alienista, não lhe attribuiu outra intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veiu quebrar a superficie da fronte quieta como a agua de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os labios, por entre os quaes filtrou esta palavra macia como o oleo do Cantico:

—Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pallida sombra do que hoje é, todavia era alguma cousa mais do que Itaguahy. Ver o Rio de Janeiro, para ella, equivalia ao sonho do hebreu captivo. Agora, principalmente, que o marido assentára de vez naquella povoação interior, agora é que ella perdera as ultimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que elle a convidava a realisar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pegou-lhe na mão e sorriu,—um sorriso tanto ou quanto philosophico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:—«Não ha remedio certo para as dôres da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se.» E porque era homem estudioso tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido, que, se elle não ia, ella não iria tambem, porque não havia de metter-se sózinha pelas estradas.

—Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quizera pedil-o nem insinual-o, em primeiro logar porque seria impôr grandes despezas ao marido, em segundo logar porque era melhor, mais methodico e racional que a proposta viesse delle.

—Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.

—Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda hontem o escripturario prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-lactea de algarismos. E depois levou-a ás arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulencia. Emquanto ella comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais perfida das allusões.

—Quem diria que meia duzia de lunaticos...

D. Evarista comprehendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

—Deus sabe o que faz!

Tres mezes depois effectuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticario, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguahy, cinco ou seis pagens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dalli sahir em certa manhã do mez de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Comquanto as lagrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalal-o. Homem de sciencia, e só de sciencia, nada o consternava fóra da sciencia; e se alguma cousa o preoccupava naquella occasião, se elle deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra cousa mais do que a idéa de que algum demente podia achar-se alli misturado com a gente de juizo.

—Adeus! soluçaram emfim as damas e o boticario.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horisonte adiante, deixando ao cavallo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do genio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lagrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

IV
UMA THEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em lagrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéa arrojada e nova, propria a alargar as bases da psychologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assumptos, e virgulando as fallas de um olhar que mettia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã,—eram passadas tres semanas,—estando Crispim Soares occupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

—Trata-se de negocio importante, segundo elle me disse, aecrescentou o portador.

Crispim empallideceu. Que negocio importante podia ser, se não alguma triste noticia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este topico deve ficar claramente definido, visto insistirem nelle os chronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta annos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monologos que elle fazia agora, e que os famulos lhe ouviam muita vez:—«Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesaria? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miseravel. Dizes amen a tudo, não é? ahi tens o lucro, biltre!—E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o effeito do recado é um nada. Tão depressa elle o recebeu como abriu mão das drogas e voou á Casa Verde.

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria propria de um sabio, uma alegria abotoada de circumspecção até o pescoço.

—Estou muito contente, disse elle.

—Noticias do nosso povo? perguntou o boticario com a voz tremula.

O alienista fez um gesto magnifico, e respondeu:

—Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma experiencia scientifica. Digo experiencia, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéa; nem a sciencia é outra cousa, Sr. Soares, se não uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiencia, mas uma experiencia que vai mudar a face da terra. A loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticario. Depois explicou compridamente a sua idéa. No conceito delle a insania abrangia uma vasta superficie de cerebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocinios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na historia e em ltaguahy; mas, como um raro espirito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguahy, e refugiou-se na historia. Assim, apontou com especialidade alguns personagens celebres, Socrates, que tinha um demonio familiar, Pascal, que via um abysmo á esquerda, Mahomet, Caracalla, Domiciano, Caligula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridiculas. E porque o boticario se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma cousa, e até accrescentou sentenciosamcnte:

—A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a serio.

—Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares lovantando as mãos ao céu.

Quanto á ideia de ampliar o territorio da loucura, achou-a o boticario extravagante; mas a modestia, principal adorno de seu espirito, não lhe sofreu confessar outra cousa além de um nobre enthusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acerescentou que era «caso de matraca.» Esta expressão não tem equivalente no estylo moderno. Naquelle tempo, Itaguahy, que como as demais villas, arraiaes e povoações da colonia, não dispunha de imprensa, tinha dous modos de divulgar uma noticia: ou por meio de cartazes manuscriptos e pregados na porta da camara e da matriz;—ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contractava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e elle annunciava o que lhe incumbiam,—um remedio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eeclesiastico, a melhor thesoura da villa, o mais bello discurso do anno, etc. O systema tinha inconvenientes para a paz publica; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuia. Por exemplo, um dos vereadores,—aquelle justamente que mais se oppuzera á creação da Casa Verde,—desfructava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticára um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os mezes. E dizem as chronicas que algumas pessoas affirmavam ter visto cascaveis dansando no peito do vereador; affirmação perfeitamente falsa, mas só devida á absoluta confiança no systema. Verdade, verdade; nem todas as instituições do antigo regimen, mereciam o desprezo do nosso seculo.

—Ha melhor do que annunciar a minha ideia, é pratical-a, respondeu o alienista á insinuação do boticario.

E o boticario, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

—Sempre haverá tempo de a dar á matraca, concluiu elle.

Simão Bacamarte reflectiu ainda um instante, e disse:

—Suppondo o espirito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrahir a perola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilibrio de todas as faculdades; fora dahi insania, insania, e só insania.

O vigario Lopes, a quem elle confiou a nova theoria, declarou lisamente que não chegava a entendel-a, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo collossal que não merecia principio de execução.

—Com a definição actual, que é a de todos os tempos, accrescentou, a loucura e a razão estão perperfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o labio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdem vinha casado á commiseração; mas nenhuma palavra sahiu de suas egregias entranhas. A sciencia contentou-se em estender a mão á theologia,—com tal segurança, que a theologia não soube emfim se devia crêr em si ou na outra. Itaguahy e o universo ficavam á beira de uma revolução.

V
O TERROR

Quatro dias depois, a população do Itaguahy ouviu consternada, a noticia de que um certo Costa fôra recolhido á Casa Verde.

—Impossivel!

—Qual impossivel! foi recolhido hoje de manhã.

—Mas, na verdade, elle não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que elle fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguahy. Herdára quatrocentos mil cruzados em boa moeda de el-rei D. João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver «até o fim do mundo.» Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividil-a em emprestimos, sem usura, mil cruzados a um, dous mil a outro, trezentos a este, oitocentos áquelle, a tal ponto que, no fim de cinco annos, estava sem nada, Se a miseria viesse de chofre, o pasmo de Itaguahy seria enorme; mas veiu de vagar; elle foi passando da opulencia á abastança, da abastança á mediania, da mediania á pobreza, da pobreza á miseria, gradualmente. Ao cabo daquelles cinco annos, pessoas que levavam o chapeu ao chão, logo que elle assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no hombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos cortezes eram justamente os que tinham ainda a divida em aberto; ao contrario, parece que os agazalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuraveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e elle se risse della, observou um desaffeiçoado, com certa perfidia:—«Você supporta esse sujeito para ver se elle lhe paga.» Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida.—«Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrella, que está no céu.» Costa era perspicaz, entendeu que elle negava todo o merecimento ao acto, attribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham metter-lhe na algibeira. Era tambem pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéo: pegou de algumas dobras, e mandou-as de emprestimo ao devedor.

—Agora espero que...—pensou elle sem concluir a phrase.

Esse ultimo rasgo do Costa persuadiu a credulos e incredulos; ninguem mais pôz em duvida os sentimentos cavalheirescos daquelle digno cidadão. As necessidades mais acanhadas sahiram á rua, vieram bater-lhe á porta, com os seus chinellos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roia a alma do Costa: era o conceito do desaffecto. Mas isso mesmo acabou; trez mezes depois veiu este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lh'os dahi a dous dias; era o residuo da grande herança, mas era tambem uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco mezes depois era recolhido á Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguahy, quando soube do caso. Não se fallou em outra cousa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os accessos, que eram furiosos, sombrios, terriveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu á Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquillo, um pouco espantado, faltando com muita clareza, e perguntando porque motivo o tinham levado para alli. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte approvava esses sentimentos de estima e compaixão, mas accrescentava que a sciencia era a sciencia, e que elle não podia deixar na rua um mentecapto. A ultima pessoa que intercedeu por elle (porque depois do que vou contar ninguem mais se atreveu a procurar o terrivel medico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilibrio das faculdades mentaes, á vista do modo como dissipára os cabedaes que...

—Isso, não! isso não! interrompeu a boa senhora com energia. Se elle gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é delle.

—Não?

—Não, senhor. Eu lhe digo como o negocio se passou. O defuncto meu tio não era máu homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéo ao Santissimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubára um boi; imagine como ficou. A cara era um pimentão; todo elle tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabelludo, em mangas de camiza, chegou-se a elle e pediu agua. Meu tio (Deus lhe falle n'alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para elle, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—«Todo o seu dinheiro não hade durar mais de sete annos e um dia, tão certo como isto ser o sino salamão!» E mostrou o sino salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquelle maldito.

Bacamarte espetára na pobre senhora um par de olhos agudos como punhaes. Quando ella acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse á propria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir fallar ao primo. A misera acreditou; elle levou-a á Casa Verde e encerrou-a na galeria dos allucinados.

A noticia desta aleivosia do illustre Bacamarte lançou o terror á alma da população. Ninguem queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Commentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outr'ora dirigira á prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E dahi a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que elle levava, pareciam desmentir uma tal hypotbese. Historias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais credulos chegou a murmurar que sabia de outras cousas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quasi que podia jurar.

—Você, que é intimo delle, não nos podia dizer o que ha, o que houve, que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos attonitos, era para elle uma consagração publica. Não havia duvidar; toda a povoação sabia emfim que o privado do alienista era elle, Crispim, o boticario, o collaborador do grande homem e das grandes cousas; dahi a corrida á botica. Tudo isso dizia o carão jocundo e o riso discreto do boticario, o riso e o silencio, porque elle não respondia nada; um, dous, trez monosyllabos, quando muito, soltos, seccos, encapados no fiel sorriso, constante e miudo, cheio de mysterios scientificos, que elle não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

—Ha cousa, pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a, pensal-o, deu de hombros e foi embora. Tinha negocios pessoaes. Acabava de construir uma casa sumptuosa. Só a casa bastava para deter e chamar toda a gente; mas havia mais,—a mobilia, que elle mandara vir da Hungria e da Hollanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fóra, porque as janellas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnifica, jardim pomposo, mobilia rara. Não deixou o negocio das albardas, mas repousava delle na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguahy, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da camara. Entre a gente illustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se fallava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um simples albardeiro, Deus do céu!

—Lá está elle embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com effeito, era costume do Matheus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamal-o para almoçar. Os visinhos, embora o comprimentassem com certo respeito, riam-se por traz delle, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Matheus seria muito mais economico, e estaria riquissimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigramma inintelligivel, mas que fazia rir ás bandeiras despregadas.

—Agora lá está o Matheus a ser contemplado, diziam á tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as familias sahiam a passeio (jantavam cedo) usava o Matheus postar-se á janella, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, attitude senhoril, e assim ficava duas e tres horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Matheus era ser admirado e invejado, posto que elle não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticario, nem ao padre Lopes, seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a allegação do boticario, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que elle Bacamarte descubrira e estudava desde algum tempo. Aquillo de contemplar a casa...

—Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

—Não?

—Hade perdoar-me, mas talvez não saiba que elle de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admirara a elle e á obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cahir da noite.

Uma volupia scientifica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou elle não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quiz, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma noticia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfel-o; mas como tinha as alegrias proprias de um sabio, concentradas, nada viu o boticario que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrario, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou tremulo, atarantado, disse que sim, que estava prompto. Chegaram duas ou tres pessoas de fóra, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrazavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma dellas, para acompanhal-o, e o dispensasse a elle. Que impaciencia! que afflicção! Emfim, sahiram. O alienista guiou para os lados da casa do albaideiro, viu-o á janella, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as attitudes, a expressão do rosto. O pobre Matheus, apenas notou que era objecto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de ltaguahy, redobrou de expressão, deu outro relevo ás attitudes... Triste! triste! não fez mais do que condemnar-se; no dia seguinte, foi recolhido á Casa Verde.

—A Casa Verde é um carcere privado, disse um medico sem clinica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Carcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oéste de ltaguahy,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu á captura do pobre Matheus, vinte e tantas pessoas,—duas ou tres de consideração,—foram recolhidas á Casa Verde. O alienista dizia que só eram admittidos os casos pathologicos, mas pouca gente lhe dava credito. Succediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do proprio medico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguahy qualquer germen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e mingua daquella cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o producto diario da imaginação publica.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva,—ou quasi toda,—que algumas semanas antes partira de Itaguahy. O alienista foi recebel-a, com o boticario, o padre Lopes, os vereadores, e varios outros magistrados. O momento em que D. Evarista poz os olhos na pessoa do marido é considerado pelos chronistas de tempo como um dos mais sublimes da historia moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egregias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra, e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o illustre Bacamarte; frio como um diagnostico, sem desengonçar por um instante a rigidez scientifica, estendeu os braços á dona, que caiu nelles, e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dons minutos, D. Evarista recebia os comprimentos dos amigos, e o prestito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguahy; contava-se com ella para minorar o flagello da Casa Verde. Dahi as acclamações publicas, a immensa gente que atulhava as ruas, as flammulas, as flores e damascos ás janellas. Com o braço apoiado no do padre Lopes,—porque o eminente Bacamarte confiára a mulher ao vigario, e acompanhava-os a passo meditativo,—D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigario indagava do Rio de Janeiro, que elle não vira desde o vice-veinado anterior; o D. Evarista respondia, enthusiasmada, que era a cousa mais bella que podia haver no mundo. O Passeio Publico estava acabado, um paraiso, onde ella fôra muitas vezes, o a rua das Bellas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas,—feitas de metal e despejando agua pela bocca fóra. Uma cousa galantissima. O vigario dizia que sim, que o Ro de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era neutro tempo! Não admira, maior do que Itaguahy, e de mais a mais séde do governo... Mas não se pode dizer que Itaguahy fosse feio; tinha bellas casas, a casa do Matheus, a Casa Verde...,

—A proposito de Casa Verde, disso o padre Lopes escorregando habilmente para o assumpto da occasião, a senhora vem achal-a muito cheia de gente.

—Sim?

—É verdade. Lá está o Matheus...

—O albardeiro?

—O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...

—Tudo isso doudo?

—Ou quasi doudo, obtemperou o padre.

—Mas então?

O vigario derreou os cantos da boca, á maneira de quem não sabe nada, ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não póde repetir a outra pessoa, por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinario que toda aquella gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto, custava-lhe duvidar; o marido era um sabio, não recolheria ninguem á Casa Verde sem prova evidente de loucura.

—Sem duvida... sem duvida... ia pontuando o vigario.

Tres horas depois, cerca de cincoenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assumpto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metaphoras, amplificações, apologos. Ella era a esposa do novo Hippocrates, a musa da sciencia, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrellas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dous sóes, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas cousas um tanto enfastiado, mas sem visivel impaciencia. Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a rhetorica permittia taes arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para adherir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando tres quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco annos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado polo mais singular dos reptos. «Deus, disse elle, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa perola da corôa divina (e o orador arrastava triumphalmente esta phrase de uma ponta a outra da mesa) Deus quiz vencer a Deus, e creou D. Evarista.»

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modestia. Duas senhoras, achando a cortezanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças, e, provavelmente, de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episodio tragico,—ou que o adiasse, ao menos, para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma dellas, a mais piedosa, chegou a admittir, comsigo mesma, que D. Evarisla não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser attrahente ou bonita. Uma simples agua-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem eguaes, o que seria do amarello? E esta ideia fel-a tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito, e, levantados todos, foi ter com elle e fallou-lhe do discurso. Não lhe negou que era era improviso brilhante, cheio de rasgos magnificos. Seria delle mesmo a ideia relativa ao nascimento de D. Evarista, ou tel-a-hia encontrado em algum autor que...? Não, senhor; era delle mesmo; achou-a naquella occasião e parecera-lhe adequada a um arroubo oratorio. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôz uma ode á queda do marquez de Pombal, em que dizia que esse ministro era o «dragão asperrimo do Nada,» esmagado pelas «garras vingadoras do Todo»; e assim outras, mais ou menos fóra do commum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

—Pobre moço! pensou o alienista. E continuou comsigo:—Trata-se de um caso do lesão cerebral; phenomeno sem gravidade, mas digno de estudo...

D. Evarista ficou estupefacta quando soube, tres dias depois, que o Martim Brito fôra alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéas tão bonitas! As duas senhoras attribuiram o acto a ciumes do alienista. Não podia ser outra cousa; realmente a declaração do moço fôra audaciosa de mais.

Ciumes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimavel, o Chico das Cambraias, folgazão emerito, o escrivão Fabricio, e ainda outros? O terror accentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doudo. As mulheres, quando os maridos saiam, mandavam accender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fóra sem um ou dous capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos, chegou a ser preso a duzentos passos da villa. Era um rapaz de trinta annos, amavel, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguem sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, ás vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fóra. Tinha a vocação das cortezias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoaes, que eram raros, como á nobre tenacidade com que nunca desanimava deante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado n'uma casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a elle, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apezar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia, que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da villa, mas foi logo apanhado e couduzido á Casa Verde.

—Devemos acabar com isto!

—Não pode continuar!

—Abaixo a tyrania!

—Despota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia: avisinhava-se a rebellião. A idéa de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfirio a expendesse na loja, com grandes gestos de indignação. Note-se,—e essa é uma das laudas mais puras desta sombria historia,—note-se que o Porfirio, desde que a Casa Verde começára a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela applicação assidua de sanguesugas que dalli lhe pediam: mas o interesse particular, dizia elle, deve ceder ao interesse publico. E accrescentava:—é preciso derrubar o tyranno! Note-se mais que elle soltou esse grito justamente no dia em Simão Bacamarte fizera recolher á Casa Verde um homem que trazia com elle uma demanda, o Coelho.

—Não me dirão em que é que o Coelho é doudo? bradou o Porfirio.

E ninguem lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que elle trazia com o barbeiro, ácerca de uns chãos da villa, era filha da obscuridade de um alvará, e não da cobiça ou odio. Um excellente caracter o Coelho. Os unicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou allegando andar com pressa, mal o viam de as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, elle amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O padre Lopes, que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:

La bocca solevò dal fero pasto
Quel seccatore...

mas uns sabiam do odio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

VI
A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação á camara. A camara recusou aceital-a, declarando que a Casa Verde era uma instituição publica, e que a sciencia não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

—Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam d'alli levantar a bandeira da rebellião, e destruir a Casa Verde; que ltaguahy não podia continuar a servir de cadaver aos estudos e experiencias de um despota; que muitas pessoas estimaveis, algumas distinctas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubiculos da Casa Verde; que o despotismo scientifico do alienista complicava-se do espirito de ganancia, visto que os loucos, ou suppostos taes, não eram tratados de graça: as familias, e a camara, pagavam ao alienista...

—É falso, interrompeu o presidente.

—Falso?

—Ha cerca de duas semanas recebemos um officio do illustre medico, em que nos declara que, tratando de fazer experiencias de alto valor psychologico, desiste do estipendio votado pela camara, bem como nada receberá das familias dos enfermos.

A noticia deste acto tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio á sciencia o instigava; e para demonstrar o erro era preciso alguma cousa mais do que arruaças e clamores, isto disse o presidente, com applauso de toda a camara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato publico, e não restituiria a paz a Itaguahy antes de vêr por terra a Casa Verde,—«essa Bastilha da razão humana»,—expressão que ouvira a um poeta local, e que elle repetiu com muita emphasis. Disse, e a um signal todos sairam com elle.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, á rebellião, á luta, ao sangue. Para accrescentar ao mal, um dos vereadores, que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro á Casa Verde—«Bastilha da razão humana»,—achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em temos energicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

—Nada tenho que ver com a sciencia; mas se tantos homens em quem suppomos juizo são reclusos por dementes, quem nos aflirma que o alienado não é o alienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra, e fallou ainda por algum tempo com prudencia, mas com firmesa. Os collegas estavam attonitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, désse o exemplo da ordem e do respeito á lei, não aventasse as suas idéas na rua, para não dar corpo e alma á rebellião, que era por ora um turbilhão de atomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco a effeito da outra: Sebastião Freitas prometteu suspender qualquer acção, reservando-se o direito de pedir pelos meios legaes a reducção da Casa Verde. E repetia com sigo, namorado:—Bastilha da razão humana!

Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ella deu o nome á revolta; chamavam-lhe o Cangica,—e o movimento ficou celebre com o nome de revolta dos Cangicas. A acção podia ser restricta,—visto que muita gente, ou por medo, ou por habitos de educação, não descia á rua; mas o sentimento era unanime, ou quasi unanime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,—dada a diferença de Paris a Itaguahy,—podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve noticia da rebellião antes que ella chegasse; veiu dar-lh'a uma de suas crias. Ella provava nessa occasião um vestido do seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,—e não quiz crer.

—Hade ser alguma patuscada, dizia ella mudando a posição de um alfinete. Benedicta, vê se a barra está boa.

—Está, sinhá, respondia a mucama de cocaras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim, Está muito boa.

—Não é patuscada, não, senhora; elles estão gritando:—Morra o Dr. Bacamarte! o tyranno! dizia o moleque assustado.

—Cala a hoca, tolo! Benedicta, olha ahi do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviezada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descozer para ficar egualzinho e...

—Morra o Dr. Bacamarte! morra o tyranno! uivaram fóra trezentas vozes. Era a rebellião que desembocava na rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instinctivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista. não dera credito, teve um instante de triumpho, um certo movimento subito, imperceptivel, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por elle.

—Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente ás commoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu á sala interior onde o marido estudava. Quando ella alli entrou, precipitada, o illustre medico escrutava um texto de Averróes, os olhos delle, empanados pela cogitação, subiam do livro ao tecto e baixavam do tecto ao livro, cégos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentaes. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que elle lhe désse attenção; á terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

—Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lagrimas.

O alienista attendeu então; os gritos approximavam-se, terriveis, ameaçadores; elle comprehendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquillo, foi deposital-o na estante. Como a introducção do volume desconcertasse um pouco a linha dos dous tomos contiguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito minimo, e, aliás, interessante. Depois disse á mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

—Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

—Abaixo a Casa Verde! bradavam os Cangicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou alli no momento em que a rebellião tambem chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero.—Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um signal pedindo para fallar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então, o barbeiro agitando o chapéo, afim de impôr silencio á turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia fallar, mas accrescentou que não abusasse da paciencia, do povo como fizera até então.

—Direi pouco, ou até não direi nada, se fôr preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

—Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

—Não entendo.

—Entendeis bem, tyranno; queremos dar liberdade ás victimas do vosso odio, capricho, ganancia...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era cousa visivel aos olhos da multidão; era uma contracção leve de dous ou tres musculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

—Meus senhores, a sciencia é cousa seria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus actos de alienista a ninguem, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou prompto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em commissão dos outros, a vir ver commigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos mão do meu systema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes.

Disse isto o alienista, e a multidão ficou attonita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéo, convidou os amigos á demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influencia do alienista, chegaria a apoderar-se da camara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguahy. Desde alguns annos que elle forcejava por ver o seu nome incluido nos pellouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compativel com tão grande cargo. A occasião era agora ou nunca. Demais fôra tão longe na arruaça, que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. Infelizmente, a resposta do alienista diminuira o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quiz bradar-lhes:—Canalha! covardes!—mas conteve-se, e rompeu deste modo:

—Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de ltaguahy está nas vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o carcere de vossos filhos e paes, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e agua, talvez a chicote, ua masmorra daquelle indigno.

A multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tomava a si da ligeira syncope, e ameaçava arrazar a Casa Verde.

—Vamos! bradou Porfirio agitando o chapéo.

—Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na rua Nova.

VII
O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Cangicas, houve um instante de estupefacção; os Cangicas não queriam crer que a força publica fosse mandada contra elles; mas o barbeiro comprehendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou á multidão que se dispersasse; mas, comquanto uma parte della estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

—Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadaveres, podeis tomal-os; mas só os cadaveres; não levareis a nossa honra, o nosso credito, os nossos direitos, e com elles a salvação da Itaguahy.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse tambem um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Cangicas. O momento foi indescriptivel. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando ás janellas das casas, ou correndo pela rua fóra, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de colera, indignada, animada pela exhortação do barbeiro. A derrota dos Cangicas estava imininente, quando um terço dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as chronicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebellião. Este inesperado reforço deu alma aos Cangicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo ás fileiras da legalidade. Os soldados fieis não tiveram coragem de atacar os seus proprios camaradas, e, um a um, foram passando para elles, de modo que ao cabo de alguns minutos, o aspecto das cousas era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remedio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triumphante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos ás casas proximas, e guiou para a camara. Povo e tropa fraternisavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguahy, ao «illustre Porfirio.» Este ia na frento, empunhando tão destramente a espada, como se ella fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A victoria cingia-lhe a fronte de um nimbo mysterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, ás janellas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturára a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mez de soldo aos dragões, «cujo denodo salvou Itaguahy do abysmo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes.» Esta phrase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente, cuja defeza dos Cangicas tanto escandalisára os collegas. Mas bem depressa a illusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse elle, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Magestade e do povo.—Sebastião Freitas insinuou que melhor se poderia servir á corôa e á villa sahindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fóra, mas toda a camara rejeitou esse alvitre.

D'ahi a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, e intimava á camara a sua queda. A camara não resistiu, entregou-se, e foi dalli para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propozeram-lhe que assumisse o governo da villa, em nome de Sua Magestade. Porfirio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (accrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que elles promptamente annuiram. O barbeiro veiu á janella, e communicou ao povo essas resoluções, quo o povo ratificou, acclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—«Protector da villa em nome de Sua Magestade e do povo.»—Expediram-se logo varias ordens importantes, communicações officiaes do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediencia ás ordens de Sua Magestade; finalmente, uma proclamação ao povo, curta, mas energica:

«Itaguahyenses!

Uma camara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Magestade e do povo. A opinião publica tinha-a condemnado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Magestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unanime consenso da villa, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Magestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguahyenses! não vos peço se não que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela camara que ora findou ás vossas mãos. Contai com o meu sacrificio, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protector da villa em nome de Sua Magestade e do povo

Porfirio Caetano das Neves.»

Toda a gente advertiu no absoluto silencio desta proclamação ácerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indicio dos projectos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves successos, o alienista mettera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre ellas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o Protector. Não era um repto, um acto intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a villa respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros, e destruido o terrivel carcere.

O dia acabou alegremente. Emquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defeza do illustre Porfirio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na acção do governo. O barbeiro fez expedir um acto declarando feriado aquelle dia, e entabolou negociações com o vigario para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos delle a conjuncção do poder temporal com o espiritual; mas o padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

—Em todo caso, Vossa Reverendissima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro dando á physionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder:

—Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principaes da villa, toda a gente o acclamava. Os mesmos principaes, se o não acclamavam, não tinham saido contra elle. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as familias abençoavam o nome daquelle que ia emfim libertar Itaguahy da Casa Verde e do terrivel Simão Bacamarte.

VIII
AS ANGUSTIAS DO BOTICARIO

Vinte e quatro horas depois dos successos narrados no capitulo anterior, o barbeiro saiu do palacio do governo—foi a denominação dada á casa da camara—, com dous ajudantes de ordens, e dirigiu-se á residencia de Simão Bacamarte. Não ignorava elle que era mais decoroso ao governo mandal-o chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticario ao ouvir dizer que o barbeiro ia á casa do alienista.—Vae prendel-o, pensou elle. E redobraram-lhe as angustias. Com effeito, a tortura moral do boticario naquelles dias de revolução excede a toda a descripção possivel. Nunca um homem se achou em mais apertado lance:—a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a victoria do barbeiro attrahia-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque elle sabia a unanimidade do odio ao alienista; mas a victoria final foi tambem o golpe final. A esposa, senhora mascula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar delle era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguem, por acto proprio, se amarra a um cadaver. Fel-o Catão, é verdade, sed victa Catoni, pensava elle, relembrando algumas palestras habituaes do padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, elle era a propria causa vencida, a causa da republica; o seu acto, portanto, foi de egoista, de um miseravel egoista; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra sahida em tal crise senão adoecer; declarou-se doente, e metteu-se na cama.

—Lá vai o Porfirio á casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte á cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

—Vai prendel-o, pensou o boticario.

Uma idéa traz outra; o boticario imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam tambem buscal-o a elle, na qualidade de complice. Esta idéa foi o melhor dos visicatorios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sahir; e apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e sahiu. Os velhos chronistas são unanimes em dizer que a certeza de que o marido ia collocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticario; e notam, com muita perspicacia, o immenso poder moral de uma illusão; porquanto, o boticario caminhou resolutamente ao palacio do governo, não á casa do alienista. Alli chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adhesão, não o tendo feito desde a vespera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funccionarios que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticario com o alienista, comprehenderam toda a importancia da adhesão nova, e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; affirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido á Casa Verde, a negocio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do iIlustre Porfirio era a de todos os patriotas; ao que o boticario ia repetindo que sim, que nunca pensára outra cousa, que isso mesmo mandaria declarar Sua Magestade.

IX
DOUS LINDOS CASOS

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma cousa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente á destruição da Casa Verde.

—Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em attribuir ao governo intenções vandalicas. Com razão ou sem ella, a opinião crê que a maior parte dos doudos alli mettidos estão era seu perfeito juizo, mas o governo reconhece que a questão é puramente scientifica, e não cogita em resolver com posturas as questões scientificas. Demais, a Casa Verde é uma instituição publica; tal a aceitamos das mãos da camara dissolvida. Ha, entretanto,—por força que ha de haver um alvitre intermedio que restitua o socego ao espirito publico.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra cousa, o arrazamento do hospicio, a prisão delle, o desterro, tudo, menos...

—O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não attender á grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma céga piedade, que lhe dá em tal caso legitima indignação, póde exigir do governo certa ordem de actos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que hontem derrubou uma camara villipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrazamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminal-a, reconhecel-a? Tambem não; é materia de sciencia. Logo, em assumpto tão melindroso, o governo não póde, não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitaveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retinir da Casa Verde aquelles enfermos que estiverem quasi curados, e bem assim os maniacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerancia e benignidade.

—Quantos mortos e feridos houve hontem no conflicto? perguntou Simão Bacamarte, depois de uns tres minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou trez vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que elle ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe varias perguntas ácerca dos successos da vespera, ataque, defeza, adhesão dos dragões, resistencia da camara, etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundancia, insistindo principalmente no descredito em que a camara cahira. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principaes da villa, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O govemo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar, não já com a sympathia, senão com a benevolencia do mais alto espirito de Itaguahy, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera physionomia daquelle grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento, nem modestia, mas impassivel como um deus de pedra.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista, depois de acompanhar o barbeiro ate á porta. Eis ahi dous lindos casos de doença cerebral. Os symptomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto á toleima dos que o acclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dous lindos casos!

—Viva o illustre Porfirio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro á porta.

O alienista espiou pela janella, e ainda ouviu este resto de uma pequena falla do barbeiro ás trinta pessoas que o acclamavam.

—... porque eu vélo, podeis estar certos disso, eu vélo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recommendo ordem. A ordem, meus amigos, é a base do governo...

—Viva o illustre Porfirio! bradaram as trinta vozes, agitando os chapéos.

—Dous lindos casos! murmurou o alienista.

X
A RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista metteu na Casa Verde cerca de cincoenta acclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfirio estava «vendido ao ouro de Simão Bacamarte,» phrase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da villa. Porfirio, vendo o antigo rival da navalha á testa da insurreição, comprehendeu que a sua perda era irremediavel, se não désse um grande golpe; expediu dous decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes phrases, que o acto de Porfirio era um simples apparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois cahia Porfirio ignominiosamente, e João Pina assumia a difficil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros actos inauguraes do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; accrescentam os chronistas, e aliás sub entende-se, que elle lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro fallára de uma camara corrupta, fallou este de «um intruso eivado das más doutrinas francesas, e contrario aos sacrosantos interesses de Sua Magestade, etc.»

Nisto entrou na villa uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfirio, e bem assim a de uns cincoenta e tantos individuos, que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses, como afiançaram entregar-lhe mais desenove sequazes do barbeiro, que convaleciam das feridas apanhadas na primeira rebellião.

Este ponto da crise de Itaguahy marca tambem o grau maximo da influencia de Simão Bacamarte. Tudo quanto quiz, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do illustre medico achamol-a na promptidão com que os vereadores, restituidos a seus logares, consentiram em que Sebastião Freitas tambem fosse recolhido ao hospicio. O alienista, sabendo da extraordinaria inconsistencia das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso pathologico, e pediu-o. A mesma cousa aconteceu ao boticario. O alienista, desde que lhe fallaram da momentanea adhesão de Crispim Soares á rebellião dos Cangicas, comparou-a á approvação que sempre recebera delle, ainda na vespera, e mandou captural-o. Crispim Soares não negou o facto, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebellião triumphante, e deu como prova a ausencia de nenhum outro acto seu, accrescentando que voltára logo á cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circumstantes que o terror tambem é pae da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterisados.

Mas a prova mais evidente da influencia de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a camara lhe entregou o proprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado em plena sessão, que não se contentava, para laval-o da affronta dos Cangicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretario da camara, enthusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por metter o secretario na Casa Verde, e foi d'alli á camara, á qual declarou que o presidente estava padecendo da «demencia dos touros», um genero que elle pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A camara a principio hesitou, mas acabou cedendo.

Dahi em diante foi uma collecta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso á mais simples mentira do mundo, ainda daquellas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo mettido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagrammas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguem escapava aos emissarios do alienista. Elle respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as segundas a um vicio. Se um homem era avaro ou prodigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; dahi a allegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns chronistas crêem que Simão Bacamarte, nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da affirmação (que não sei se póde ser aceita) o facto de ter alcançado da camara uma postura autorisando o uso de um anel de prata no dedo pollegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradiccional, declarasse ter nas veias duas ou tres onças de sangue godo. Dizem esses chronistas que o fim secreto da insinuação á camara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre delle; mas, comquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negocio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu á Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se póde definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do illustre medico. Quanto á razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do annel, é um dos pontos mais obscuros da historia de Itaguahy; a opinião mais verosimil é que elles foram recolhidos por andarem a gesticular, á toa, nas ruas, em casa, na egreja. Ninguem ignora que os doudos gesticulam muito. Em todo caso é uma simples conjectura; de positivo nada ha.

—Onde é que este homem vae parar? diziam os principaes da terra. Ah! se nós tivessemos apoiado os Cangicas...

Um dia de manhã,—dia em que a camara devia dar um grande baile,—a villa inteira ficou abalada com a noticia de que a propria esposa do alienista fôra mettida na Casa Verde. Ninguem acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fôra recolhida ás duas horas da noite. O padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente ácerca do facto.

—Já ha algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modestia com que ella vivera em ambos os matrimonios não podia conciliar-se com o furor das sedas, velludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observal-a. Suas conversas eram todas sobre esses objectos; se eu lhe fallava das antigas côrtes, inquiria logo da fórma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausencia, antes de me dizer o objecto da visita, descrevia-me o trajo, approvando umas cousas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendissima hade lembrar-se, propôz-se a fazer annualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram symptomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demencia. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuario que levaria ao baile da camara municipal; só hesitava entre um collar de granada e outro de saphyra. Ante-hontem perguntou-me qual delles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Hontem repetiu a pergunta, ao almoço; pouco depois de jantar fui achal-a calada e pensativa.—Que tem? perguntei-lhe.—Queria levar o collar de granada, mas acho o de saphyra tão bonito!—Pois leve o de saphyra.—Ah! mas onde fica o de granada?—Emfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, accordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dous collares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a demencia; recolhi-a logo.

O padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objectou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de «mania sumptuaria,» não incuravel, e em todo caso digno de estudo.

—Conto pôl-a boa dentro de seis semanas, concluiu elle.

A abnegação do illustre medico deu-lhe grande realce. Conjecturas, invenções, desconfianças, tudo cahiu por terra, desde que elle não duvidou recolher á Casa Verde a propria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguem mais tinha o direito de resistir-lhe,—menos ainda o de attribuir-lhe intuitos alheios á sciencia. Era um grande homem austero, Hippocrates forrado de Catão.

XI
O ASSOMBRO DE ITAGUAHY

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a villa, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser póstos na rua.

—Todos?

—Todos.

—É impossivel; alguns, sim, mas todos...

—Todos. Assim o disse elle no officio que mandou hoje de manhã á camara.

De facto, o alienista officiára á camara expondo:—1°, que verificára das estatisticas da villa e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquelle estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levára-o a examinar os fundamentos da sua theoria das molestias cerebraes, theoria que excluia do dominio da razão todos os casos em que o equilibrio das faculdades, não fosse perfeito e absoluto; 3°, que desse exame e do facto estatistico resultára para elle a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquella, mas a opposta, e portanto que se devia admittir como normal e exemplar o desequilibrio das faculdades, e como hypotheses pathologicas todos os casos em que aquelle equilibrio fosse ininterrupto; 4°, que á vista disso, declarava á camara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agazalhar nella as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5°, que tratando de descobrir a verdade scientifica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da camara egual dedicação; 6°, que restituia á camara e aos particulares a somma do estipendio recebido para alojamento dos suppostos loucos, descontada a parte effectivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a camara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguahy for grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, dansas, luminarias, musicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso proposito; mas foram esplendidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as cousas humanas! No meio do regosijo produzido pelo officio de Simão Bacamarte, ninguem advertia na phrase final do § 4°, uma phrase cheia de experiencias futuras.

XII
O FINAL DO § 4°

Apagaram-se as luminarias, reconstituiram-se as familias, tudo parecia reposto uos antigos eixos. Reinava a ordem, a camara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o proprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus logares. O barbeiro Porfirio, ensinado pelos acontecimentos, tendo «provado tudo,» como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma cousa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferivel a gloria obscura da navalha e da tesoura ás calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da villa implorou a clemencia de Sua Magestade; dahi o perdão. João Pina foi absolvido, attendendo-se a que elle derrocára um rebelde. Os chronistas pensam que deste facto é que nasceu o nosso adagio:—ladrão que furta a ladrão, tem cem annos de perdão;—adagio immoral, é verdade, mas grandemente util.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum resentimento ficou dos actos que elle praticára; accrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que elle os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido enthusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as chronicas que D. Evarista a principio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dôr de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer resentimento de amor-proprio, e o casal veiu a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos intima ficou a amizade do alienista e do boticario. Este concluiu do officio de Simão Bacamarte que a prudencia e a primeira das virtudes em tempos de revolução, e apreciou muito a magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, ostendeu-lhe a mão de amigo velho.

—É um grande homem, disse elle á mulher, referindo aquella circumstancia.

Não é preciso fallar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente nomeados neste escripto; basta dizer que puderam exercer livremente os seus habitos anteriores. O proprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvára emphaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne medico—«cujo altissimo genio, elevando as azas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espiritos da terra.»

—Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituido á liberdade.

Entretanto, a camara, que respondera ao officio de Simão Bacamarte, com a resalva de que opportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou emfim de legislar sobre elle. Foi adoptada, sem debate, uma postura autorisando o alienista a agazalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilibrio das faculdades mentaes. E porque a experiencia da camara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ella a clausula, de que a autorisação era provisoria, limitada a um anno, para o fim de ser experimentada a nova theoria psychologica, podendo a camara, antes mesmo daquelle prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem publica. O vereador Freitas propôz tambem a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asylo dos alienados: clausula que foi aceita, votada o incluida na postura, apezar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a camara, legislando sobre uma experiencia scientifica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequencias da lei; a excepção era odiosa e ridicula. Mal proferira estas duras palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audacia e insensatez do collega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a excepção.

—A vereança, concluiu elle, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espirito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restricções. Quanto á exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compellido a recolhel-os á Casa Verde; a clausula, porém, era a melhor prova de que elles não padeciam do perfeito equilibrio das faculdades mentaes. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objecção feita, e cuja moderação na resposta dada ás invectivas dos collegas mostravam da parte delle um cerebro bem organisado; pelo que, rogava á camara que lh'o entregasse. A camara, sentindo-se ainda aggravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou unanimamente a entrega.

Comprehende-se que, pela theoria nova, não bastava um facto ou um dito, para recolher alguem á Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquerito do passado e do presente. O padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticario quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares sahiu de casa espumando de colera, e declarando ás pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tyranno. Um sujeito, adversario do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidencia, e correu á casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversario, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a rectidão dos seus sentimentos, a boa fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o á Casa Verde.

—Um caso destes é raro, disse elle á mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dôr vencera a raiva, o boticario não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examinal-a com muita attenção; mas antes disso não podia deixal-a na rua. E parecendo-lhe vantajoso reunil-os, porque a astucia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a belleza moral que elle descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

—O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará, com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta collocou o pobre boticario na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar á Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da difficuldade, promettendo que se incumbiria de vêr a amiga e transmittir os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este ultimo rasgo do egoismo pusillanime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco mezes estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que ontrora os arrebanhava ás duzias. Essa mesma desproporção confirmava a theoria nova; achára-se enfim a verdadeira pathologia cerebral. Um dia, conseguiu metter na Casa Verde o juiz de fóra; mas procedia com tanto escrupulo, que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus actos, e interrogar os principaes da villa. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjuncto de qualidades moraes e mentaes, que era perigoso deixal-o na rua. Mandou prendel-o; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiencia; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

—Então, parece-lhe...?

—Sem duvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual fôr, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado, estudou os papeis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A innocencia do réu foi solemnemente proclamada pelo juiz, e a herança passou-lhe ás mãos. O distincto jurisconsulto deveu a esta experiencia a liberdade. Mas nada escapa a um espirito original e penetrante. Sirnão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciencia, a moderação daquelle agente, reconheceu a habilidade e o tino com que elle levára a cabo uma experiencia tão melindrosa e complicada, e determinou recolhel-o immediatamente á Casa Verde; deu-lhe, todavia, um dos melhores cubiculos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos, isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de veridicos, outra de simplices, outra de leaes, outra de magnanimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as familias e os amigos dos reclusos bradavam contra a theoria; e alguns tentaram compellir a camara a cassar a licença. A camara, porem, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e se cassasse a licença, vel-o-hia na rua, e restituido ao logar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte officiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse acto de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principaes da villa recorreram secretamente ao barbeiro Porfirio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, dinheiro e influencia na côrte, se elle se puzesse á testa de outro movimento contra a camara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que elle se emendára, reconhecendo o erro proprio e a pouca consistencia da opinião dos seus mesmos sequazes; que a camara entendera autorisar a nova experiencia do alienista, por um anno: cumpria, ou esperar o fim do praso, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma camara rejeitasse o pedido. Jámais aconselharia o emprego de um recurso que elle viu falhar em suas mãos, e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

—O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principaes da villa.

Dous dias depois o barbeiro era recolhido á Casa Verde.—Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do praso, a camara autorisou um praso supplementar de seis mezes para ensaio dos meios therapeuticos. O desfecho deste episodio da chronica itaguahyense, é de tal ordem, e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capitulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais bellos exemplos de convicção scientifica e abnegação humana.

XIII
PLUS ULTRA!

Era a vez da therapeutica. Simão Bacamarte, activo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligencia e penetração com que principiou a tratal-os. N'este ponto todos os chronistas estão de pleno accordo: o illustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguahy.

Com effeito, era difficil imaginar mais racional systema therapeutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um d'elles excedia ás outras, Simão Bacamarte cuidou em attacar de frente a qualidade predominante. Supponhamos um modesto. Elle applicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento opposto; e não ia logo ás dóses maximas,—graduava-as, conforme o estado, a edade, o temperamento, a posição social do enfermo. Ás vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabelleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado: em outros casos a molestia era mais rebelde; recorria então aos aneis de brilhantes, ás distincções honorificas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve ideia de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Pindaro.

—Foi um santo remedio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remedio.

Outro doente, tambem modesto, oppoz a mesma rebeldia á medicação; mas não sendo escriptor, (mal sabia assignar o nome) não se lhe podia applicar o remedio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para elle o lugar de secretario de Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguahy. Os logares de presidente e secretarios eram de nomeação regia, por especial graça do finado rei D. João V, e implicavam o tratamento de Excellencia e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que o não pedia como premio honorifico ou distincção legitima, e sómente como um meio therapeutico para um caso difficil, o governo cedeu excepcionalmente á supplica; e ainda assim não o fez sem extraordinario esforço do ministro de marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remedio.

—Realmente, é admiravel! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o systema. Imagina-se o resto. Cada belleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais solida; e o effeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então, o alienista atacava outra parte, applicando á therapeutica o methodo da estrategia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não póde conseguir.

No fim de cinco mezes e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão tão cruelmente affligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambiguo, e elle obteve uma boa interpretação, corrompendo os juizes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o padre Lopes. Sabendo o alienista que elle ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma analyse critica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbencia, e em boa hora o fez; ao cabo de dous mezes possuia um livro e a liberdade. Quanto á senhora do boticario, não ficou muito tempo na cellula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

—Porque é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ella todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma cousa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona, não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da colera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:

—Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas á custa de unguentos falsificados e pôdres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a accusação contida nestas palavras, bastavam ellas para mostrar que a excellente senhora estava emfim restituida ao perfeito desequilibrio das faculdades; e promptamente lhe deu alta.

Agora, se imaginaes que o alienista ficou radiante ao ver sair o ultimo hospede da Casa Verde, mostraes com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a theoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguahy o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preoccupado, cogitativo; alguma cousa lhe dizia que a theoria nova tinha, em si mesma, outra e novissima theoria.

—Vejamos, pensava elle; vejamos se chego enfim á ultima verdade.

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica bibliotheca dos dominios ultramarinos de Sua Magestade. Um amplo chambre de damasco, preso á cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo magestoso e austero do illustre alienista. A cabelleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da sciencia. Os pés, não delgados e femininos, não graudos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a differença:—só se lhe notava luxo naquillo que era de origem scientifica; o que propriamente vinha delle trazia a côr da moderação e da singelleza, virtudes tão ajustadas á pessôa de um sabio.

Era assim que elle ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta bibliotheca, mettido em si mesmo, estranho a todas as cousas que não fosse o tenebroso problema da pathologia cerebral. Subito, parou. Em pé, deante de uma janella, com o cotovello esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou elle a si:

—Mas deveras estariam elles doudos, e foram curados por mim,— ou o que pareceu cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilibrio do cerebro?

E cavando por ahi abaixo, eis o resultado a que chegou: os cerebros bem organisados que elle acabava de curar, eram tão desequilibrados como os outros. Sim, dizia elle comsigo, eu não posso ter a pretenção de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova;uma e outra cousa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o illustre alienista teve duas sensações contrarias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por vêr que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, lucta ingente com o povo, podia affirmar esta verdade:—não havia loucos em Itaguahy; Itaguahy não possuia um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéa lhe refrescara a alma, outra appareceu que neutralisou o primeiro effeito; foi a idéa da duvida. Pois que! Itaguahy não possuiria um unico cerebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo erronea, e não vinha, portanto, destruir o largo e magestoso edificio da nova doutrina psychologica?

A afflicção do egregio Simão Bacamarte é definida pelos chronistas itaguahyenses como uma das mais medonhas tempestades moraes que tem desabado sobre o homem. Mas as tempestades só atterram os fracos; os fortes enrijam-se contra ellas e fitam o trovão. Vinte minutos depois allumiou-se a physionomia do alienista de uma suave claridade.

—Sim, ha de ser isso, pensou elle.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os caracteristicos do perfeito equilibrio mental e moral; pareceu-lhe que possuia a sagacidade, a paciencia, a perseverança, a tolerancia, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades emfim que pódem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era illusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi affirmativa.

—Nenhum defeito?

—Nenhum, disse em côro a assembléa.

—Nenhum vicio?

—Nada.

—Tudo perfeito?

—Tudo.

—Não, impossivel, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificencia. A sympathia é que vos faz fallar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembléa insistiu; o alienista resistiu; finalmente o padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador.

—Sabe a razão porque não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:—a modestia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Acto continuo, recolheu-se á Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem suggestões nem lagrimas o detiveram um só instante. A questão é scientifica, dizia elle; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reuno em mim mesmo a theoria e a pratica.

—Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lagrimas.

Mas o illustre medico, com os olhos accesos da convicção scientifica, trancou os ouvidos á saudade da mulher, e brandamente a repelliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e á cura de si mesmo. Dizem os chronistas que elle morreu dalli a dezesete mezes, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além delle, em ltaguahy; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é attribuido ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como fôr, effectuou-se o enterro com muita pompa e rara solemnidade.



THEORIA DO MEDALHÃO

DIALOGO

—Estás com somno?

—Não, senhor.

—Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janella. Que horas são?

—Onze.

—Sahiu o ultimo conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um annos. Ha vinte e um annos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu á luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

—Papai...

—Não te ponhas com denguices, e fallemos como dous amigos sérios. Fecha aquella porta; vou dizer-te cousas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um annos, algumas apolices, urn diploma, pódes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na industria, no commercio, nas lettras ou nas artes. Ha infinitas carreiras diante de ti, Vinte e um annos, meu rapaz, formam apenas a primeira syllaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apezar de precoces, não foram tudo aos vinte e um annos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e illustre, ou pelo menos notavel, que te levantes acima da obscuridade commum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os premios são poucos, os mallogrados innumeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não ha planger, nem imprecar, mas aceitar as cousas integralmente, com seus onus e precalços, glorias e desdouros, e ir por diante.

—Sim, senhor.

—Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim tambem é de boa pratica social acautellar um officio para a hypothese de que os outros falhem, on não indemnisem sufificientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

—Creia que lhe agradeço; mas que officio, não me dirá?

—Nenhum me parece mais util e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém as instrucções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, alem das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exhuberancia, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco annos possas entrar francamente no regimen do aprumo e do compasso. O sabio que disse: «a gravidade é um mysterio do corpo», definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquella outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espirito; essa é do corpo, tão sómente do corpo, um signal da natureza ou uin geito da vida. Quanto á edade de quarenta e cinco annos...

—É verdade, porque quarenta e cinco annos?

—Não é, como podes suppôr, ura limite arbitrario, filho do puro capricho; é a data normal do phenomeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta o cinco e cincoenta annos, comquanto alguns exemplos se dêm eutre os cincoenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Ha-os tambem de quarenta annos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não fallo dos de vinte e cinco annos: esse madrugar é privilegio do genio.

—Entendo.

—Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéas que houveres de nutrir para uso alheio e proprio. O melhor será não as ter absolutamente; cousa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um actor defraudado do uso de um braço. Elle pode, por um milagre de artificio, dissimular o defeito aos olhos da platéa; mas era muito melhor dispor dos dous. O mesmo se dá com as idéas; póde-se, com violencia, abafal-as, escondel-as até á morte; mas nem essa habilidade é commum, nem tão constante esforço conviria ao exercicio da vida.

—Mas quem lhe diz que eu....

—Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inopia mental, conveniente ao uso deste nobre officio. Não me refiro tanto á fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas n'uma esquina, e vice-versa, porque esse facto, posto indique certa carencia de idéas, ainda assim póde não passar de uma traição da memoria. Não; refiro-me ao gesto correcto e perfilado com que usas expender francamente as tuas sympathias ou antipathias ácerca do córte de um collete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis ahi um symptoma eloquente, eis ahi uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a edade, venhas a ser affligido de algumas idéas proprias, urge apparelhar fortemente o espirito. As idéas são de sua natureza expontaneas e subitas; por mais que as sofremos, ellas irrompem e precipitam-se. Dahi a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

—Creio que assim seja; mas um tal obstaculo é invencivel.

—Não é; ha um meio; é lançar mão de um regimen debilitante, ler compendios de rhetorica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remedios approvados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silencio, que é a fórma mais accentuada da circumpecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da gymnastica, embora ellas façam repousar o cerebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a actividade perdidas. O bilhar é excellente.

—Como assim, se tambem é um exercicio corporal?

—Não digo que não, mas ha cousas em que a observação desmente a theoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatisticas mais escrupulosas mostram que tres quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada é utilissimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é officina de idéas, e o espirito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, póde adquirir uma tal ou qual actividade.

—Mas se eu não tiver á mão um amigo apto e disposto a ir commigo?

—Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatorios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosphera do logar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propicias ao nosso fim; e, não obstante, ha grande conveniencia em entrar por ellas, de quando em quando, não digo ás occultas, mas ás escancaras. Pódes resolver a difficuldade de um modo simples: vai alli fallar do boato do dia, da anecdota da semana, de um contrabando, de uma calumnia, de um cometa, de qualquer cousa, quando não prefiras interrogar directamente os leitores habituaes das bellas chronicas de Mazade: 75 por cento desses estimaveis cavalheiros repetir-te-hão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudavel. Com este regimen, durante oito, dez, dezoito mezes—supponhamos dous annos,—reduzes o intellecto, por mais prodigo que seja, á sobriedade, á disciplina, ao equilibrio commum. Não trato do vocabulario, porque elle está sub-entendido no uso das idéas; ha de ser naturalmente simples, tibio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

—Isto é o diabo! Não poder adornar o estylo, de quando em quando....

—Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hydra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Meduza, o tonel das Danaides, as azas de Icaro, e outras, que romanticos, classicos e realistas empregam sem desar, quando precisam d'ellas. Sentenças latinas, ditos historicos, versos celebres, brocardos juridicos, maximas, é de bom aviso trazel-os comtigo para os discursos de sobremesa, do felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules é um excellente fecho de artigo politico; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a n'uma phrase nova, original e bella, mas não te aconselho esse artificio: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porem, que afinal não passa de mero adorno, são as phrases feitas, as locuções convencionaes, as formulas consagradas pelos annos, incrustadas na memoria individual e publica. Essas formulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inutil. Não as relaciono agora, mas fal-o-hei por escripto. De resto, o mesmo officio te irá ensinando os elementos d'essa arte difficil de pensar o pensado. Quanto á utilidade de um tal systema, basta figurar uma hypothese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz effeito, subsiste o mal. Eis ahi uma questão que póde aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inqurrito pedantesco, a uma collecta fastidiosa de documentos e observações, analyse das causas provaveis, causas certas, causas possiveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remedio, das circumstancias da applicação; materia, enfim, para todo nm andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse immenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!—E esta phrase synthetica, transparente, limpida, tirada ao peculio commum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espiritos como um jorro subito de sol.

—Vejo por ahi que vosmecê condemna toda e qualquer applicação de processos modernos.

—Entendamo-nos. Condemno a applicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia scientifica; deves decoral-a. Com quanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa attitude de deus Termino, e as sciencias sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma:—ou ellas estarão usadas e divulgadas d'aqui a trinta annos, ou conservar-se-hão novas: no primeiro caso, pertencem-te de fôro proprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que tambem és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e phenomenos responde toda essa terminologia; porque o methodo de interrogar os proprios mestres e officiaes da sciencia, nos seus livros, estudos e memorias, além de tedioso e cançativo, traz o perigo de inocular ideas novas, e é radicalmente falso. Accresce que no dia em que viesses a assenhoriar-te do espirito d'aquellas leis e formulas, serias provavelmente levado a empregal-as com um tal ou qual comedimento, como a costureira—esperta e afreguezada,—que, segundo um poeta, classico,

Quanto mais panno tem, mais poupa o córte,
Menos monte alardea de retalhos;

e este phenomeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria scientifico.

—Upa, que a profissão é difficil.

—E ainda não chegamos ao cabo.

—Vamos a elle.

—Não te fallei ainda dos beneficios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar á força, de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miudas, que antes exprimem a constancia do affecto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores della mediante acções heroicas ou custosas, é um sestro proprio d'esse illustre lunatico. O verdadeiro medalhão tem outra politica. Longe de inventar um Tratado scientifico da creação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a fórma de um jantar, cuja noticia não pode ser indifferente aos seus concidadãos. Uma noticia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Commissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemerito, um forasteiro, tem singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mythologicas, cynegeticas ou coreographicas. Os successos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidas a lume, comtanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caires de um carro, sem outro damno, além do susto, é util mandal-o dizer aos quatro ventos, não pelo facto em si, que é insignificante, mas pelo effeito de recordar um nome caro ás affeições geraes. Percebeste?

—Percebi.

—Essa é publicidade constante, barata, facil, de todos os dias; mas ha outra. Qualquer que seja a theoria das artes, é fora de duvida que o sentimento da familia, a amisade pessoal e a estima publica instigam á reproducção das feições de um homem amado ou benemerito. Nada obsta a que sejas objecto de uma tal distincção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnancia. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desasado impedir que os amigos o expuzessem em qualquer casa publica. Dessa maneira o nome fica ligado á pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (supponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabellereiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a «alavanca do progresso» e o «suor do trabalho», vencem as «fauces hiantes» da miseria. No caso de que uma commissão te leve á casa o retrato, deves agradecer-lhe o obsequio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'agua: é uso antigo, razoavel e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se fôr possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de gloria ou regosijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar á mesa aos reporters dos jornaes. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem n'outra parte, podes ajudal-os de certa maneira, redigindo tu mesmo a noticia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrupulo, aliás desculpavel, não queiras com a propria mão annexar ao teu nome os qualificativos dignos delle, incumbe a noticia a algum amigo ou parente.

—Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada facil.

—Nem eu te digo outra cousa. É difficil, como tempo, muito tempo, leva annos, paciencia, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra promettida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triumpham! E tu triumpharás, crê-me. Verás cahir as muralhas de Jerichó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua phase de ornamento indispensavel, de figura obrigada, de rotulo. Acabou-se a necessidade de farejar occasiões, commissões, irmandades; ellas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e crú de substantivos desadjectivados, e tu serás o adjectivo dessas orações opacas, o odorifero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e succulento dos relatorios. E ser isso é o principal, porque o adjectivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metaphysica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulario.

—E parece-lhe que todo esse officio é apenas um sobresalente para os deficits da vida?

—De certo; não fica excluida nenhuma outra actividade.

—Nem politica?

—Nem politica. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitaes. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a clausula unica de não ligar nenhuma idéa especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe sómente a utilidade do scibboleth biblico.

—Se for ao parlamento, posso occupar a tribuna?

—Podes e deves; é um modo de convocar a attenção publica. Quanto á materia dos discursos, tens á escolha:—ou os negocios miudos, ou a metaphysica politica, mas prefere a metaphysica. Os negocios miudos, força é confessal-o, não desdizem d'aquella chateza de bom tom, propria de um medalhão acabado; mas, se poderes, adopta a metaphysica;—é mais facil e mais attrahente. Suppõe que desejas saber porque motivo a 7a companhia de infantaria foi transferida de Uruguayana para Cangussú; serás ouvido tão sómente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões d'esse acto. Não assim a metaphysica. Um discurso de metaphysica politica apaixona naturalmente os partidos e o publico, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. N'esse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforges da memoria. Em todo caso, não transcedas nunca os limites de uma invejavel vulgaridade.

—Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

—Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é infimo.

—Nenhuma philosophia?

—Entendamo-nos: no papel e na lingua alguma, na realidade nada. «Philosophia da historia,» por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequencia, mas prohibo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.

—Também ao riso?

—Como ao riso?

—Ficar serio, muito serio...

—Conforme. Tens um um genio folgasão, prasenteiro, não has de sofreal-o nem eliminal-o; pódes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancolico. Um grave póde ter seus momentos de expansão alegre. Sómente,—e este ponto é melindroso...

—Diga.

—Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio do mysterios, inventado por algum grego da decadencia, contrahido por Luciano, transmittido a Swift e Voltaire, feição propria dos scepticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mette pela cara dos outros, estala com uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensorios. Usa a chalaça. Que é isto?

—Meia noite.

—Meia noite? Entras nos teus vinte e dois annos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa d'esta noite vale o Principe de Machiavelli. Vamos dormir.

FIM DA THEORIA DO MEDALHÃO



A CHINELA TURCA[1]

Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correcto laço de gravata que appareceu naquelle anno de 1850, e annunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer occasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que elle preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabellos louros e os mais pensativos olhos azues, que este nosso clima, tão avaro delles, produzira. Datava de uma semana aquelle namoro. Seu coração, deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que elles pontualmente transmittiram á moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favoravel resposta logo depois do chocolate. Tres dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo geito que levavam as cousas não era de admirar que, antes do fim do anno, estivessem ambos a caminho da egreja. Nestas circumstancias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da familia, companheiro de seu finado pae no exercito, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossivel despedil-o ou tratal-o com frieza. Havia felizmente uma circumstancia attenuante; o major era aparentado com Cecilia, a moça dos olhos azues; em caso de necessidade, era um voto seguro.

Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio á chegada do bacharel.

—Que bom vento o trouxe a Catumby a semelhante hora? perguntou Duarte, dando á voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom tom.

—Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sahir?

—Vou ao Rio Comprido.

—Já sei; vae á casa da viuva Menezes. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não?

Lopo Alves tirou o relogio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:

—Dou-lhe uma noticia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um drama.

—Um drama! exclamou o bacharel.

—Que quer? Desde creança padeci destes achaques litterarios. O serviço militar não foi remedio que me curasse, foi um palliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não ha remedio se não deixal-a, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Duarte recordou-se de que effectivamente o major fallava n'outro tempo de alguns discursos inauguraes, duas ou tres nenias e boa somma de artigos que escrevera ácerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém muitos annos que Lopo Alves deixára em paz os generaes platinos e os defuntos; nada fazia suppôr que a molestia volvesse, sobre tudo caracterisada por um drama. Esta circumstancia explical-a-hia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira á representação de uma peça do genero ultra-romantico, obra que lhe agradou muito e lhe suggeriu a idéa de affrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessarias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramatica do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentaes do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sahir triumpliante naquella estréa, prometteu que o recommendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empallideceu quando viu o major, tremulo de bemaventurança, abrir o rolo que trazia comsigo.

—Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e acceito o obsequio que me promette; antes delle, porém, desejo outro. Sei que é intelligente e lido; ha de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.

Duarte procurou desviar aquelle calix de amargura; mas era difficil pedil-o, e impossivel alcançal-o. Consultou melancholicamente o relogio, que marcava nove horas e cincoenta e cinco minutos, emquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscripto.

—Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dansará duas ou tres valsas com ella, se a tem, ou com ellas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete?

Era indifferente, para o bacharel, o lugar do supplicio; accedeu ao desejo do hospede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguem. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou logar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero n'uma vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquellas cento e oitenta paginas, senão a lettra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles e até o estylo dos mais acabados typos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscencias. N'outra occasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, especie de prologo, uma creança roubada á familia, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjectivos não menos afiados que o punhal. No segundo, quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tyranno do septimo. Além da morte apparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de desesete annos, um monologo que parecia durar igual praso, e o roubo de um testamento.

Eram quasi onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a colera; era já impossivel ir ao Rio Comprido. Não é fóra de proposito conjecturar que, se o major expirasse naquelle momento, Duarte agradecia a morte como um beneficio da Providencia. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um máu livro é capaz de produzir phenomenos ainda mais espantosos. Accresce que, emquanto aos olhos carnaes do bacharel apparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fulgiam-lhe ao espirito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecilia; via-a com os olhos azues, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viuva Menezes. Via aquillo, e ouvia mentalmente a musica, a palestra, o sôar dos passos, e o ruge-ruge das sedas; emquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os dialogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia noite soára desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscripto, erguia-se, impertigava-se, cravava nelle uns olhos odientos e máus, e saia arrebatadamente do gabinete. Duarte quiz chamal-o, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colerico do dramaturgo na pedra da calçada. Foi á janella; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desapparecido.

—Porque não fez elle isso ha mais tempo? disse o rapaz suspirando.

O suspiro mal teve tempo de abrir as azas e sair pela janella fóra, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veiu annunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.

—A esta hora! exclamou Duarte.

—A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, póde a policia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delicto grave.

—Um delicto!

—Creio que me conhece...

—Não tenho essa honra.

—Sou empregado na policia.

—Mas que tenho eu com o senhor? de que delicto se trata?

—Pouca cousa: um furto. O senhor é accusado de haver subtrahido uma chinela turca. Apparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas ha chinela e chinela. Tudo depende das circumstancias.

O homem disse isto com um riso sarcastico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existencia do objecto roubado. Concluiu que havia equivoco de nome, e não se zangou com a injuria irrogada á sua pessoa, e de algum modo á sua classe, attribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da policia, accrescentando que não era motivo, em todo caso, para incommodal-o a semelhante hora.

—Hade perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finissimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas tambem pela origem. A dona, que é uma de nossas patricias mais viajeiras, esteve, ha cerca de tres annos no Egypto, onde a comprou a um judeu. A historia, que este alumno de Moysés referiu ácerca daquelle producto da industria musulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizel-a. O que importa saber é que ella foi roubada e que a policia tem denuncia contra o senhor.

Neste ponto do discurso, chegára-se o homem á janella; Duarte suspeitou que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o metteram á força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu á desfilada.

—Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com ellas... e rir ainda por cima do genero humano.

Ouvindo aquella allusão á dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival supplantado. Ou a allusao seria casual e extranha á aventura? Duarte perdeu-se n'um cipoal de conjecturas, em quanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.

—Quaesquer que sejam os meus crimes, supponho que a policia...

—Nós não somos da policia, interrompeu friamente o homem magro.

—Ah!

—Este cavalheiro e eu fazemos um par. Elle, o senhor e eu faremos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não póde ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?

—Não, senhor.

—Ha de entender logo mais.

Duarte resignou-se á espera, enfronhou-se no silencio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavallos.

—Chegámos, disse o homem gordo.

Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e offereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, d'ahi a pouco, ranger uma porta; duas pessoas,—provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro,—seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, phrases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguem mais.

Era uma sala vasta, assaz illuminada, trastejada com elegancia e opulencia. Era talvez sobre posse a variedade dos adornos; comtudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado. Os bronzes, charões, tapetes, espelhos,—a copia infinita de objectos que enchiam a sala, era tudo da melhor fabrica. A vista daquillo restituiu a serenidade de animo ao bacharel; não era provavel que alli morassem ladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na ottomana... Na ottomana! esta circumstancia trouxe á memoria do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que problematica. Cavando mais fundo no terreno das conjecturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metaphora; tratava-se do coração de Cecilia, que elle roubára, delicto de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras mysteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.

—Ha de ser isso, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?

Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por effeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por elle deitou-lhe a benção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estupido de todos os sentidos. O inesperado daquella apparição baralhou totalmente as ideias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ella outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a elle e o convidou a seguil-o. Duarte não oppoz resistencia. Sairam por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçaes de prata. Os castiçaes estavam sobre uma meza larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cincoenta e cinco annos; era uma figura athletica, farta de cabellos na cabeça e na cara.

—Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.

—Não, senhor.

—Nem é preciso. O que vamos fazer exclue absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro logar que o roubo da chinela foi um simples pretexto...

—Oh! de certo! interrompeu Duarte.

—Um simples pretexto, continuou o velho, para trazel-o a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca sahiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinella.

O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fôra comprada a nenhum judeu do Egypto; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenhez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:

—Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?

—Vae sabel-o, respondeu tranquillamente o velho.

A porta abriu-se e appareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a approximar-se da luz, teve occasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finissimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas lettras bordadas a ouro.

—Chinela de creança, não lhe parece? disse o velho.

—Supponho que sim.

—Pois suppõe mal; é chinela de moça.

—Será; nada tenho com isso.

—Perdão! tem muito, porque vae casar com a dona.

—Casar! exclamou Duarte.

—Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.

Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando á porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sylphide, uma visão de poeta, uma creatura divina. Era loura; tinha os olhos azues, como os de Cecilia, extaticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver delle. Os cabellos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça, um como resplendor de santa; santa sómente, não martyr, porque o sorriso que lhe desabrochava os labios, era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes hade ter tido a terra. Um vestido branco, de finissima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas fórmas aliás desenhava, pouco para os olhos, mais muito para a imaginação.

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegancia, ainda em lances daquelles. Duarte, ao ver a moça, compoz o chambre, apalpou a gravata e fez uma ceremoniosa cortezia, a que ella correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos atterradora.

—Meu caro doutor, esta é a noiva.

A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.

—Tres cousas vae o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir certa droga do Levante...

—Veneno! interrompeu Duarte.

—Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte estava pallido e frio. Quiz fallar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse alli perto uma cadeira em que se deixou cair.

—O senhor, continuou o velho, tem uma fortunasinha de cento e cincoenta contos. Esta perola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.

O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direito ao moço, ingrolando somnolentamente um trecho de Nehemias ou qualquer outro proplieta menor; travou-lhe da mão e disse:

—Levante-se!

—Não! não quero! não me casarei!

—E isto? disse da meza o velho apontando-lhe uma pistola.

—Mas então é um assassinato?

—É; a differença está no genero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha!

Duarte suava e tremia. Quiz levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:

—Quer fugir?

—Oh! sim! exclamou, não com os labios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que poz toda a vida que lhe restava.

—Vê aquella janella? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se d'alli sem medo.

—Oh! padre! disse baixinho o bacharel.

—Não sou padre, sou tenente do exercito. Não diga nada.

A janella estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, colligiu todas as forças, deu um pulo do logar onde estava e atirou-se a Deus misericordia por alli abaixo. Não era grande altura, a quéda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.

—Que é isso? perguntou elle rindo.

Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com elles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pela jardim fóra. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando arvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos ferida, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Emfim, cançado, ferido, offegante, caiu nos degraos de pedra de uma casa, que havia no meio do ultimo jardim que atravessára. Olhou para traz; não viu ninguem; o perseguidor não o acompanhara até alli. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degráos que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.

Um homem que alli estava, lendo um numero do Jornal do Commercio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte cahiu n'uma cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves. O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exiguas, exclamou repentinamente:

—Anjo do ceu, estás vingado! Fim do ultimo quadro.

Duarte olhou para elle, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou á larga.

—Então! Que tal lhe pareceu?

—Ah! excellente! respondeu o bacharel, levantando-se.

—Paixões fortes, não?

—Fortissimas. Que horas são?

—Deram duas agora mesmo.

Duarte acompanhou o major até a porta, respirou que muitas vezes, apalpou-se, foi até á janella. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, ao cabo de um quarto de hora, eis o que elle dizia consigo:—Nympha, doce amiga, fantasia inquieta e fertil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituiste-me o tedio por um pesadelo: foi um bom negocio. Um bom negocio e uma grave licção: provaste-me que muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco.


[1]Este conto foi publicado, pela primeira vez, na Epocha, n. 1, de 14 de Novembro de 1875. Trazia o pseudonymo de Manassés, com que assignei outros artigos daquella folha ephemera. O redactor principal era um espirito eminente, que a politica veiu tomar ás lettras: Joaquim Nabuco. Posso dizel-o sem indiscrição. Eramos poucos e amigos. O programma era não ter programma, como declarou o artigo inicial, ficando a cada redactor plena liberdade de opinião, pela qual respondia exclusivamente. O tom (feita a natural reserva da parte de um collaborador) era elegante, litterario, attico. A folha durou quatro numeros.

FIM DA CHINELA TURCA



NA ARCA

TRES CAPITULOS INEDITOS DO GENESIS
CAPITULO A

1.—Então Noé disse a seus filhos Japhet, Sem e Cham:—«Vamos sair da arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animaes. A arca tem de parar no cabeço de uma montanha; desceremos a ella.

2.—«Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nella tu, tua mulher e teus filhos.

3.—«E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animaes.

4.—«Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os homens pereceram, e fecharam-se as cataractas do céu; tornaremos a descer á terra, e a viver no seio da paz e da concordia.»

5.—Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito se alegraram de ouvir as palavras de seu pae; e Noé os deixou sós, retirando-se a uma das camaras da arca.

6.—Então Japhet levantou a voz e disse:—«Aprazivel vida vai ser a nossa. A figueira nos dará o fructo, a ovelha a lan, a vacca o leite, o sol a cladade e a noite a tenda.

7.—«Porquanto seremos unicos na terra, e toda a terra será nossa, e ninguem perturbará a paz de uma familia, poupada do castigo que feriu a todos os homens.

8.—«Para todo o sempre.» Então Sem, ouvindo falar o irmão, disse:—«Tenho uma ideia.» Ao que Japhet e Cham responderam:—«Vejamos a tua ideia, Sem.»

9.—E Sem falou a voz de seu coração, dizendo:—«Meu pae tem a sua familia; cada um de nós tem a sua familia; a terra é de sobra; podiamos viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o que lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira, ou fiará o linho.»

10.—E respondeu Japhet:—«Acho bem lembrada a idea de Sem; podemos viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de uma montanha; meu pae e Chain descerão para o lado do nascente: eu e Sem para o lado do poente. Sem occupará duzentos covados de terra, eu outros duzentos.»

11.—Mas dizendo Sem:—«Acho pouco duzentos covados»—, retorquiu Japhet: «Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não confundir a propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem direita;

12.—«Ea minha terra se chamará a terra de Japhet, e a tua se chamará a terra de Sem; e iremos ás tendas um do outro, e partiremos o pão da alegria e da concordia.»

13.—E tendo Sem approvado a divisão, perguntou a Japhet: «Mas o rio? a quem pertencerá a agua do rio, a corrente?

14.—«Porque nós possuimos as margens, e não estatuimos nada a respeito da corrente.» E respondeu Japhet, que podiam pescar de um e outro lado; mas, divergindo o irmão, propôz dividir o rio em duas partes, fincando um pau no meio. Japhet, porem, disse que a corrente levaria o pau.

15.—E tendo Japhet respondido asssim, acudiu o irmão:—«Pois que te não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que não haja conflicto, podes levantar um muro, dez ou doze covados, para lá da tua margem antiga.

16.—«E se com isto perdes alguma cousa, nem é grande a differença, nem deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concordia entre nós, segundo é a vontade do Senhor.»

17.—Japhet porém replicou:—«Vae bugiar! Com que direito me tiras a margem, que é minha, e me roubas um pedaço de terra? Por ventura és melhor do que eu.

18.—«Ou mais bello, ou mais querido de meu pae? que direito tens de violar assim tão escandalosamente a propriedade alheia?

19.—«Pois agora te digo que o rio ficará do meu lado, com ambas as margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-hei como Caim matou a seu irmão.»

20.—Ouvindo isto, Cham atemorisou-se muito, e começou a aquietar os dous irmãos,

21.—Os quaes tinham os olhos do tamanho de figos e cor de braza, e olhavam-se cheios de colera e desprezo.

22.—A arca, porém, boiava sobre as aguas do abysmo.

CAPITULO B

1.—Ora, Japhet, tendo curtido a colera, começou a espumar pela boca, e Okam fallou-lhe palavras de brandura,

2.—Dizendo:—«Vejamos um meio de conciliar tudo; vou chamar tua mulher e a mulher de Sem.»

3.—Um e outro, porém, recusaram dizendo, que o caso era de direito e não de persuasão.

4.—E Sem propoz a Japhet que compensasse os dez covados perdidos, medindo outros tantos nos fundos da terra delle. Mas Japhet respondeu:

5.—«Por que me não mandas logo para os confins do mundo? Já te não contentas com quinhentos covados; queres quinhentos e dez, e eu que fique com quatrocentos e noventa.

6.—«Tu não tens sentimentos moraes? não sabes o que é justiça? não ves que me esbulhas descaradamente? e não percebes que eu saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?

7.—«E que, se é preciso correr sangue, o sangue hade correr já e já,

8.—«Para te castigar a soberba e lavar a tua iniquidade?»

9.—Então Sem avançou para Japhet; mas Cham interpoz-se, pondo uma das mãos no peito de cada um;

10.—Emquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do diluvio, tinham vivido na mais doce concordia, ouvindo o rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dous irmãos, e começaram a vigiar-se um ao outro.

11.—E disse Cham:—«Ora, pois, tenho uma ideia maravilhosa, que ha de accommodar tudo;

12.—«A qual me é inspirada pelo amor, que tenho a meus irmãos. Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado de meu pae, e ficarei com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte covados cada um.»

13.—E Sem e Japhet riram com desprezo e sarcasmo, dizendo:—«Vae plantar tamaras! Guarda a tua ideia para os dias da velhice.» E puxaram as orelhas e o nariz de Cham; e Japhet, mettendo dous dedos na boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.

14.—Ora, Cham envergonhado e irritado, espalmou a mão dizendo:—«Deixa estar!» e foi d'alli ter com o pae e as mulheres dos dous irmãos.

15.—Japhet porém disse a Sem:—«Agora que estamos sós, vamos decidir este grave caso, ou seja de lingua ou de punho. Ou tu me cedes as duas margens, ou eu te quebro uma costella.»

16.—Dizendo isto, Japhet ameaçou a Sem com os punhos fechados, emquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada: «Não te cedo nada, gatuno!»

17.—Ao que Japhet retorquiu irado: «gatuno és tu!»

18.—Isto dito, avançaram um para o outro e atracaram-se. Japhet tinha o braço rijo e adestrado; Sem era forte na resistencia. Então Japhet, segurando o irmão pela cinta, apertou-o fortemente, bradando: «De quem é o rio?»

19.—E respondendo Sem:—«É meu!» Japhet fez um gesto para derrubal-o; mas Sem, que era forte, sacudiu o corpo e atirou o irmão para longe, Japhet, porém, espumando de colera, tornou a apertar o irmão, e os dous luctaram braço a braço,

20.—Suando e bufando como touros.

21.—Na lucta, cairam e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Japhet,

22.—Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os egualmente, e elles luctavam com as mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do céu.

23.—Então as vozes e brados chegaram aos ouvidos de Noé, ao mesmo tempo que seu filho Cham, que lhe appareceu clamando: «Meu pae, meu pae, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lamech setenta vezes sete, o que será de Japhet e Sem?»

24.—E pedindo Noé que explicasse o dito, Cham referiu a discordia dos dous irmãos, e a ira que os animava, e disse:—«Correi a aquietal-os.» Noé disse:—«Vamos.»

25.—A arca, porém, boiava sobre as aguas do abysmo.

CAPITULO C

1.—Eis aqui chegou Noé ao logar onde luctavam os dous filhos,

2.—E achou-os ainda agarrados um ao outro, e Sem debaixo do joelho de Japhet, que com o punho cerrado lhe batia na cara, a qual estava roxa e sangrenta.

3.—Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu apertar o pescoço do irmão, e este começou a bradar: «Larga-me, larga-me.»

4.—Ouvindo os brados, as mulheres de Japhet e Sem acudiram tambem ao logar da lucta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a dizer: «O que será de nós? A maldição cahiu sobre nós e nossos maridos.»

5.—Noé, porém, lhes disse: «Calai-vos, mulheres de meus filhos, eu verei de que se trata, e ordenarei o que fôr justo .» E caminhando para os dous combatentes,

6.—Bradou: «Cessae a briga. Eu, Noé, vosso pae, o ordeno e mando.» E ouvindo os dous irmãos o pae, detiveram-se subitamente, e ficaram longo tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum d'elles.

7.—Noé continuou: «Erguei-vos, homens indignos da salvação e merecedores do castigo que feriu os outros homens.»

8.—Japhet e Sem ergueram-se. Ambos tinham feridos o rosto, o pescoço e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque tinham luctado com unhas e dentes, instigados de odio mortal.

9.—O chão tambem estava alagado de sangue, e as sandalias de um e outro, e os cabellos de um e outro,

10.—Como se o peccado os quizera marcar com o sello da iniquidade.

11.—As duas mulheres, porém, chegaram-se a elles, chorando e acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Japhet e Sem não attendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar seu pae.

12.—O qual disse: «Ora, pois, quero saber o motivo da briga.»

13.—Esta palavra accendeu o odio no coração de ambos. Japhet, porém, foi o primeiro que falou e disse:

14.—«Sem invadiu a minha terra, a terra que eu havia escolhido para levantar a minha tenda, quando as aguas houverem desapparecido e a arca descer, segundo a promessa do Senhor;

15.—«E eu, que não tolero o esbulho, disse a meu irmão: «Não te contentas com quinhentos covados e queres mais dez? «E elle me respondeu: «Quero mais dez e as duas margens do rio que ha de dividir a minha terra da tua terra.»

16.—Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em Sem; e acabando Japhet, perguntou ao irmão: «Que respondes?»

17.—E Sem disse: «—Japhet mente, porque eu só lhe tomei os dez covados de terra, depois que elle recusou dividir o rio em duas partes; e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti que elle medisse outros dez covados nos fundos das terras delle,

18.—«Para compensar o que perdia; mas a iniquidade de Caim fallou nelle, e elle me feriu a cabeça, a cara e as mãos.»

19.—E Japhet interrompeu-o dizendo: «Porventura não me feriste tambem? Não estou ensanguentado como tu? Olha a minha cara e o meu pescoço; olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas unhas de tigre.»

20.—Indo Noé fallar, notou que os dous filhos de novo pareciam desafiar-se com os olhos. Então disse: «Ouvi!» Mas os dous irmãos, cegos de raiva, outra vez se engalfinharam, bradando:—«De quem é o rio?»—«O rio é meu.»

21.—E só a muito custo puderam Noé, Cham e as mulheres de Sem e Japhet, conter os dous combatentes, cujo sangue entrou a jorrar em grande copia.

22.—Noé, porém, alçando a voz, bradou:—Maldito seja o que me não obedecer. Elle será maldito, não sete vezes, não setenta vezes sete, mas setecentas vezes setenta.

23.—«Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero nenhum ajuste a respeito do logar em que levantareis as tendas.»

24.—Depois ficou meditabundo.

25.—E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do tecto estava levantada, bradou com tristeza:

26.—«Elles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Russia?»

27.—E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pae.

28.—A arca, porém, continuava a boiar sobre as aguas do abysmo.



D. BENEDICTA

UM RETRATO
I

A cousa mais ardua do mundo, depois do officio de governar, seria dizer a edade exacta de D. Benedicta. Uns davam-lhe quarenta annos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos descia aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada de intenções occultas, carecia daquelle cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos humanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D. Benedicta foi sempre um padrão de bons costumes. A astucia do corretor não fez mais do que indignal-a, embora momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto ás outras conjecturas, oscillando entre os trinta e seis e os quarenta e cinco, não desdiziam das feições de D. Benedicta, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas. Mas, se alguma cousa admira é que houvesse supposições neste negocio, quando bastava interrogal-a para saber a verdade verdadeira.

D. Benedicta fez quarenta e dous annos no domingo desenove de setembro de 1869. São seis horas da tarde; a meza da familia está ladeada de parentes e amigos, em numero de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de 1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre alludir francamente á edade da dona da casa. Além disso, vêem-se alli, á meza, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é, de certo, no tamanho e nas maneiras, um tanto menino; mas a moça, Eulalia, contando dezoito annos, parece ter vinte e um, tal é a severidade dos modos e das feições.

A alegria dos convivas, a excellencia do jantar, certas negociações matrimoniaes incumbidas ao conego Roxo, aqui presente, e das quaes se fallará mais abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso dá á festa um caracter intimo e feliz. O conego levanta-se para trinchar o perú. D. Benedicta acatava esse uso nacional das casas modestas de confiar o perú a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fóra da meza por mãos servis, e o conego era o pianista daquellas occasiões solemnes. Ninguem conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com mais presteza. Talvez,—e este phenomeno fica para os entendidos,—talvez a circumstancia do canonicato augmentasse ao trinchante, no espirito dos convivas, uma certa somma de prestigio, que elle não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de mathematicas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte consummada do conego? É outra questão importante.

Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando; reina o borborinho proprio dos estomagos meio regalados, o riso da natureza que caminha para a repleção; é um instante de repouso.

D. Benedicta falla, como as suas visitas, mas não falla para todas, senão para uma, que está sentada ao pé della. Essa é uma senhora gorda, sympathica, muito risonha, mãe de um bacharel de vinte e dous annos, o Leandrinho, que está sentado defronte dellas. D. Benedicta não se contenta de fallar á senhora gorda, tem uma das mãos desta entre as suas; e não se contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos namorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas inquieto, miudo, repetido, instantaneo. Em todo caso, ha muita ternura naquelle gesto; e, dado que não a houvesse, não se perderia nada, porque D. Benedicta repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito:—que está encantada, que considera uma fortuna conhecel-a, que é muito sympathica, muito digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de suas amigas diz-lhe, rindo, que está com ciumes.

—Que arrebente! responde ella, rindo tambem.

E voltando-se para a outra:

—Não acha? ninguém deve metter-se com a nossa vida.

E ahi tornavam as finezas, os encarecimentos, os risos, as offertas, mais isto, mais aquillo,—um projecto do passeio, outro de theatro, e promessas de muitas visitas, tudo com tamanha expansão e calor, que a outra palpitava de alegria e reconhecimento.

O perú está comido. D. Maria dos Anjos faz um signal ao filho; este levanta-se e pede que o acompanhem em um brinde:

—Meus senhores, é preciso desmentir esta maxima dos francezes:—les absents on tort.Bebamos a alguem que está longe, muito longe, no espaço, mas perto, muito perto, no coração de sua digna esposa:—bebamos ao illustre desembargador Proença.

A assembléa não correspondeu vivamente ao brinde; e para comprehendel-o basta ver o rosto triste da dona da casa. Os parentes e os mais intimos disseram baixinho entre si que o Leandrinho fora estouvado; emfim, bebeu-se, mas sem estrepito; ao que parece, para não avivar a dor de D. Benedicta. Vã precaução! D. Benedicta, não podendo conter-se, deixou rebentarem-lhe as lagrimas, levantou-se da meza, retirou-se da sala. D. Maria dos Anjos acompanhou-a. Succedeu um silencio mortal entre os convivas. Eulalia pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.

—Mamãe é muito sensivel, disse ella, e a ideia de que papae está longe de nós...

O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulalia. Um sujeito, ao lado delle, explicou-lhe que D. Benedicta não podia ouvir fallar do marido sem receber um golpe no coração—e chorar logo; ao que o Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza della, mas estava longe de suppor que o seu brinde tivesse tão mau effeito.

—Pois era a cousa mais natural, explicou o sujeito, porque ella morre pelo marido.

—O conego, acudiu Leandrinho, disse-me que elle foi para o Pará ha uns dous annos...

—Dous annos e meio; foi nomeado desembargador pelo ministerio Zacharias. Elle queria a relação de S. Paulo, ou da Bahia; mas não pôde ser e aceitou a do Pará.

—Não voltou mais?

—Não voltou.

—D. Benedicta naturalmente tem medo de embarcar...

—Creio que não. Já foi uma vez á Europa. Se bem me lembro, ella ficou para arranjar alguns negocios de familia; mas foi ficando, ficando, e agora...

—Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o marido?

—Conheço; um homem muito distincto, e ainda moço, forte; não terá mais de quarenta e cinco annos. Alto, barbado, bonito. Aqui ha tempos disse-se que elle não teimava com a mulher, porque estava lá de amores com uma viuva.

—Ah!

—E houve até quem viesse contal-o a ella mesma. Imagine como a pobre senhora ficou! Chorou uma uma noute inteira, no dia seguinte não quiz almoçar, e deu todas as ordens para seguir no primeiro vapor.

—Mas não foi?

—Não foi; desfez a viagem d'ahi a tres dias.

D. Benedicta voltou nesse momento, pelo braço de D. Maria dos Anjos. Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e sentou-se com a recente amiga ao lado, agradecendo os cuidados que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão.

—Vejo que me quer bem, disse ella.

—A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.

—Mereço? inquiriu ella entre desvanecida e modesta.

E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ella sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido. O conego, pela sua parte, com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalisar a conversa, dando-lhe por assumpto a eleição do melhor doce. Os pareceres divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de cajú, alguns o de laranja, etc. Um dos convivas, o Leandrinho, autor do brinde, dizia com os olhos,—não com a boca,—e dizia-o de um modo astucioso, que o melhor doce eram as faces de Eulalia, um doce moreno, corado; dito que a mãe delle interiormente approvava, e que a mãe della não podia ver, tão entregue estava á contemplação da recente amiga. Um anjo, um verdadeiro anjo!

II

D. Benedicta levantou-se, no dia seguinte, com a ideia de escrever uma carta ao marido, uma longa carta em que lhe narrasse a festa da vespera, nomeasse os convivas e os pratos, descrevesse a recepção nocturna, e, principalmente, désse noticia das novas relações com D. Maria dos Anjos. A mala fechava-se ás duas horas da tarde, D. Benedicta accordára ás nove, e, não morando longe (morava no Campo da Acclamação), um escravo levaria a carta ao correio muito a tempo. Demais, chovia; D. Benedicta arredou a cortina da janella, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo brochado de uma côr pardo-escura, malhada do grossas nuvens negras. Ao longe, viu fluctuar e voar o panno que cobria o balaio que uma preta levava á cabeça: concluiu que ventava. Magnifico dia para não sair, e, portanto, escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente. Ninguem viria tental-a.

Emquanto ella compõe os babadinhos e rendas do roupão branco, um roupão de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862, no mesmo dia anniversario, 19 de Setembro, convido a leitora a observar-lhe as feições. Vê que não lhe dou Venus; tambem não lhe dou Meduza. Ao contrario de Meduza, nota-se-lhe o alisado simples do cabello, preso sobre a nuca. Os olhos são vulgares, mas tem uma expressão bonachã. A bocca é daquellas que, ainda não sorrindo, são risonhas, e tem esta outra particularidade, que é uma bocca sem remorsos nem saudades: podia dizer sem desejos, mas eu só digo o que quero, e só quero fallar das saudades e dos remorsos. Toda essa cabeça, que não enthusiasma, nem repelle, assenta sobre um corpo antes alto do que baixo, e não magro nem gordo, mas fornido na proporção da estatura. Para que fallar-lhe das mãos? Ha de admiral-as logo, ao travar da penna e do papel, com os dedos afilados e vadios, dous delles ornados de cinco ou seis anneis.

Creio que é bastante ver o modo porque ella compõe as rendas e os babadinhos do roupão para comprehender que é uma senhora pichosa, amiga do arranjo das cousas e de si mesma. Noto que rasgou agora o babadinho do punho esquerdo, mas é porque, sendo tambem impaciente, não podia mais «com a vida deste diabo.» Essa foi a sua expressão, acompanhada logo de um «Deus me perdôe!» que inteiramente lhe extrahiu o veneno. Não digo que ella bateu com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto natural de algumas senhoras irritadas. Em todo caso, a colera durou pouco mais de meio minuto. D. Benedicta foi á caixinha de costura para dar um ponto no rasgão, e contentou-se com um alfinete. O alfinete caiu no chão, ella abaixou-se a apanhal-o. Tinha outros, é verdade, muitos outros, mas não achava prudente deixar alfinetes no chão. Abaixando-se, aconteceu-lhe ver a ponta da chinela, na qual pareceu-lhe descobrir um signal branco; sentou-se na cadeira que tinha perto, tirou a chinela, e viu o que era: era um roidinho de barata. Outra raiva de D. Benedicta, porque a chinela era muito galante, e fora-lhe dada por uma amiga do anno passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D. Benedicta fitou os olhos irritados no signal branco; felizmente a expressão bonachã delles não era tão bonachã que se deixasse eliminar de todo por outras expressões menos passivas, e retomou o seu logar. D. Benedicta entrou a virar e revirar a chinela, e a passal-a de uma para outra mão, a principio com amor, logo depois machinalmente, até que as mãos pararam de todo, a chinela caiu no regaço, e D. Benedicta ficou a olhar para o ar, parada, fixa. Nisto o relogio da sala de jantar, começou a bater horas, D. Benedicta logo ás primeiras duas, estremeceu:

—Jesus! Dez horas!

E, rapida, calçou a chinela, concertou depressa o punho do roupão, e dirigisse á escrevaninha, para começar a carta. Escreveu, com effeito, a data, e um:—«Meu ingrato marido»; emfim, mal traçára estas linhas:—Você lembrou-se hontem de mim? Eu...» quando Eulalia lhe bateu á porta, bradando:

—Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.

D. Benedicta abriu a porta, Eulalia beijou-lhe a mão, depois levantou as suas ao céu:

—Meu Deus! que dorminhoca!

—O almoço está prompto?

—Ha que seculos!

—Mas eu tinha dito que hoje o almoço era mais tarde... Estava escrevendo a teu pae.

Olhou alguns instantes para a filha, como desejosa de lhe dizer alguma cousa grave, ao menos difficil, tal era a expressão indecisa e séria dos olhos. Mas não chegou a dizer nada; a filha repetiu que a almoço estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-a.

Deixemol-as almoçar á vontade; descancemos nessa outra sala, a de visitas, sem aliás inventariar os moveis della, como o não fizemos em nenhuma outra sala ou quarto. Não é que elles não prestem, ou sejam de máu gosto; ao contrario, são bons. Mas a impressão geral que se recebe é exquisita, como se ao trastejar daquella casa houvesse presidido um plano truncado, ou uma successão de planos truncados. Mãe, filha e filho almoçaram. Deixemos o filho, que nos não importa, um pirralho de doze annos, que parece ter oito, tão mofino é elle. Eulalia interessa-nos, não só pelo que vimos de relance no capitulo passado, como porque, ouvindo a mãe fallar em D. Maria dos Anjos e no Leandrinho, ficou muito séria e, talvez, um pouco amuada. D. Benedicta percebeu que o assumpto não era aprazivel á filha, e recuou da conversa, como alguem que desanda uma rua para evitar um importuno; recuou e ergueu-se; a filha veiu com ella para a sala de visitas.

Eram onze horas menos um quarto. D. Benedicta conversou com a filha até depois de meio dia, para ter tempo de descançar o almoço e escrever a carta. Sabem que a mala fecha ás duas horas. De facto, alguns minutos, poucos, depois do meio dia, D. Benedicta disse á filha que fosse estudar piano, porque ella ia acabar a carta. Saiu da sala; Eulalia foi á janella, relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes disser que com uma pontasinha de tristeza nos olhos, podem crer que é a pura verdade. Não era todavia, a tristeza dos debeis ou dos indecisos; era a tristeza dos resolutos, a quem dóe de antemão um acto pela mortificação que hade trazer a outros, e que, não obstante, juram a si mesmos pratical-o, e praticam. Convenho que nem todas essas particularidades podiam estar nos olhos de Eulalia, mas por isso mesmo é que as historias são contadas por alguem, que se incumbe de preencher as lacunas e divulgar o escondido. Que era uma tristeza mascula, era;—e que dahi a pouco os olhos sorriam de um signal de esperança, tambem não é mentira.

—Isto acaba, murmurou ella, vindo para dentro.

Justamente nessa occasião parava um carro á porta, apeava-se uma senhora, ouvia-se a campainha da escada, descia um moleque a abrir a cancella, e subia es escadas D. Maria dos Anjos. D. Benedicta, quando lhe disseram quem era, largou a penna, alvoroçada; vestiu-se á pressa, calçou-se, e foi á sala.

—Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que é querer bem á gente!

—Vim sem esperar pela sua visita, só para mostrar que não gosto de cerimonias, e que entre nós deve haver a maior liberdade.

Vieram os comprimentos de estylo, as palavrinhas doces, os afagos da vespera. D. Benedicta não se fartava de dizer que a visita naquelle dia era uma grande fineza, uma prova de verdadeira amisade; mas queria outra, accrescentou dahi a um instante, que D. Maria dos Anjos ficasse para jantar. Esta desculpou-se allegando que tinha de ir a outras partes; demais, essa era a prova que lhe pedia,—a de ir jantar á casa della primeiro. D. Benedicta não hesitou, prometteu que sim, naquella mesma semana.

—Estava agora mesmo escrevendo o seu nome, continuou.

—Sim?

—Estou escrevendo a meu marido, e fallo da senhora. Não lhe repito o que escrevi, mas imagine que fallei muito mal da senhora, que era antipathica, insupportavel, massante, aborrecida... Imagine!

—Imagino, imagino. Pode accrescentar que, apezar de ser tudo isso, e mais alguma cousa, apresento-lhe os meus respeitos.

—Como ella tem graça para dizer as cousas! commentou D. Benedicta olhando para a filha.

Eulalia sorriu sem convicção. Sentada na cadeira fronteira á mãe, ao pé da outra ponta do sophá em que estava D. Maria dos Anjos,—Eulalia dava á conversação das duas a somma de attenção que a cortezia lhe impunha, e nada mais, Chegava a parecer aborrecida; cada sorriso que lhe abria a bocca era de um amarello pallido, um sorriso de favor. Uma das tranças,—era de manhã, trazia o cabello em duas tranças caidas pelas costas abaixo,—uma dellas servia-lhe de pretexto a alheiar-se de quando em quando, porque puxava-a para a frente e contava-lhe os fios do cabello,—ou parecia contal-os. Assim o creu D. Maria dos Anjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos, curiosa, desconfiada. D. Benedicta é que não via nada; via a amiga, a feiticeira, como lhe chamou duas ou tres vezes,—«feiticeira como ella só.»

—Já!

D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a outras visitas; mas foi obrigada a ficar ainda alguns minutos, a pedido da amiga. Como trouxesse um mantelete de renda preta, muito elegante, D. Benedicta disse que tinha um egual, e mandou buscal-o. Tudo demoras. Mas a mãe do Leandrinho estava tão contente! D. Benedicta enchia-lhe o coração; achava nella todas as qualidades que melhor se ajustavam á sua alma e aos seus costumes, ternura, confiança, enthusiasmo, simplicidade, uma familiaridade cordial e prompta. Veiu o mantelete; vieram offerecimentos de alguma cousa, um doce, um licor, um refresco; D. Maria dos Anjos não aceitou nada mais do que um beijo e a promessa de que iriam jantar com ella naquella semana.

—Quinta-feira, disse D. Benedicta.

—Palavra?

—Palavra.

—Que quer que lhe faça se não fôr? Hade ser um castigo bem forte.

—Bem forte? Não me falle mais.

D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura a amiga; depois abraçou e beijou tambem a Eulalia, mas a effusão era muito menor de parte a parte. Uma e outra mediam-se, estudavam-se, começavam a comprehender-se. D. Benedicta levou a amiga até o patamar da escada, depois foi á janella para vel-a entrar no carro; a amiga, depois de entrar no carro, poz a cabeça de fóra, olhou para cima, e disse-lhe adeus, com a mão.

—Não falte, ouviu?

—Quinta-feira.

Eulalia já não estava na sala; D. Benedicta correu a acabar a carta. Era tarde: não relatára o jantar da vespera, nem já agora podia fazel-o. Resumiu tudo; encareceu muito as novas relações; emfim, escreveu estas palavras:

«O conego Roxo fallou-me em casar Eulalia com o filho de D. Maria dos Anjos; é um moço formado em direito este anno; é conservador, e espera uma promotoria, agora, se o Itaborahy não deixar o ministerio. Eu acho que o casamento é o melhor possivel. O Dr. Leandrinho (é o nome delle) é muito bem educado; fez um brinde a você, cheio de palavras tão bonitas, que eu chorei. Eu não sei se Eulalia quererá ou não; desconfio de outro sujeito que outro dia esteve comnosco nas Larangeiras. Mas você que pensa? Devo limitar-me a aconselhal-a, ou impor-lhe a nossa vontade? Eu acho que devo usar um pouco da minha autoridade; mas não quero fazer nada sem que você me diga, O melhor seria se você viesse cá.»

Acabou e fechou a carta; Eulalia entrou nessa occasião, ella deu-lh'a para mandar, sem demora, ao correio; e a filha saiu com a carta sem saber que tratava della e do seu futuro, D. Benedicta deixou-se cair no sophá, cançada, exhausta. A carta era muito comprida apezar de não dizer tudo; e era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas!

III

Era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do capitulo passado, explica a longa prostração de D. Benedicta. Meia hora depois de cair no sophá, ergueu-se um pouco, e percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma cousa. Essa cousa era um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada menos de tres estavam alli, dous abertos, um marcado em certa pagina, todos em cadeiras. Eram tres romances que D. Benedicta lia ao mesmo tempo. Um delles, note-se, custou-lhe não pouco trabalho. Deram-lhe noticia na rua, perto de casa, com muitos elogios; chegara da Europa na vespera. D. Benedicta ficou tão enthusiasmada, que apezar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e foi ella mesmo compral-o, correndo nada menos de tres livrarias. Voltou anciosa, namorada do livro, tão namorada que abriu as folhas, jantando, e leu os cinco primeiros capitulos naquella mesma noute. Sendo preciso dormir, dormiu; no dia seguinte não pôde continuar, depois esqueceu-o. Agora, porém, passados oito dias, querendo lêr alguma cousa, aconteceu-lhe justamente achal-o á mão.

—Ah!

E eil-a que torna ao sophá, que abre o livro com amor, que mergulha o espirito, os olhos e o coração na leitura tão desastradamente interrompida. D. Benedicta ama os romances, é natural; e adora os romances bonitos, é naturalissimo. Não admira que esqueça tudo para lêr este; tudo, até a licção de piano da filha, cujo professor chegou e saiu, sem que ella fosse á sala. Eulalia despediu-se do professor; depois foi ao gabinete, abriu a porta, caminhou pé ante pé até o sophá, e acordou a mãe com um beijo.

—Dorminhoca!

—Ainda chove?

—Não, senhora; agora parou.

—A carta foi?

—Foi; mandei o José a toda a pressa. Aposto que mamãe esqueceu-se de dar lembranças a papae? Pois olhe, eu não me esqueço nunca.

D. Benedicta bocejou. Já não pensava na carta; pensava no collete que encommendára á Charavel, um collete de barbatanas mais molles do que o ultimo. Não gostava de barbatanas duras; tinha o corpo mui sensivel. Eulalia fallou ainda algum tempo do pae, mas calou-se logo, e vendo no chão o livro aberto, o famoso romance, apanhou-o, fechou-o, pol-o em cima da mesa. Nesse momento vieram trazer uma carta a D. Benedicta; era do conego Roxo, que mandava perguntar se estavam em casa naquelle dia, porque iria ao enterro dos ossos.

—Pois não! bradou D. Benedicta; estamos em casa, venha, póde vir.

Eulalia escreveu o bilhetinho de resposta. D'ahi a tres quartos de hora fazia o conego a sua entrada na sala de D. Benedicta. Era um bom homem o conego, velho amigo daquella casa, na qual, além de trinchar o perú nos dias solemnes, como vimos, exercia o papel de conselheiro, e exercia-o com lealdade e amor. Eulalia, principalmente, merecia-lhe muito; vira-a pequena, galante, travessa, amiga delle, e criou-lhe uma affeição paternal, tão paternal que tomára a peito casal-a bem, e nenhum noivo melhor do que o Leandrinho, pensava o conego, Naquelle dia, a idéa de ir jantar com ellas era antes um pretexto; o conego queria tratar o negocio directamente com a filha do desembargador. Eulalia, ou porque adivinhasse isso mesmo, ou porque a pessoa do conego lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo preoccupada, aborrecida.

Mas, preoccupada ou aborrecida, não quer dizer triste ou desconsolada. Era resoluta, tinha têmpera, podia resistir, e resistiu, declarando ao conego, quando elle naquella noute lhe fallou do Leandrinho, que absolutamente não queria casar.

—Palavra de moça bonita?

—Palavra de moça feia.

—Mas, porque?

—Porque não quero.

—E se mamãe quizer?

—Não quero eu.

—Máu! isso não é bonito, Eulalia.

Eulalia deixou-se estar. O conego ainda tornou ao assumpto, louvou as qualidades do candidato as esperanças da familia, as vantagens do casamento; ella ouvia tudo, sem contestar nada. Mas quando o conego formulava de um modo directo a questão, a resposta invariavel era esta:

—Já disse tudo.

—Não quer?

—Não.

O desconsolo do bom conego era profundo e sincero. Queria casal-a bem, e não achava melhor noivo. Chegou a interrogal-a discretamente, sobre se tinha alguma preferencia em outra parte. Mas Eulalia, não menos discretamente, respondia que não, que não tinha nada; não queria nada; não queria casar. Elle creu que era assim, mas receiou tambem que não fosse assim; faltava-lhe o trato sufficiente das mulheres para lêr atravez de uma negativa. Quando referiu tudo a D. Benedicta, esta ficou assombrada com os termos da recusa; mas tornou logo a si, e declarou ao padre que a filha não tinha vontade, faria o que ella quizesse, e ella queria o casamento.

—Já agora nem espero resposta do pae, concluiu; declaro-lhe que ella ha de casar. Quinta-feira vou jantar com D. Maria dos Anjos, e combinaremos as cousas.

—Devo dizer-lhe, ponderou o conego, que D. Maria dos Anjos não deseja que se faça nada á força.

—Qual força! Não é preciso força.

O conego reflectiu um instante:—Em todo caso, não violentaremos qualquer outra affeição que ella possa ter, disse elle.

D. Benedicta não respondeu nada; mas comsigo, no mais fundo de si mesma, jurou que, houvesse o que houvesse, acontecesse o que acontecesse, a filha seria nora de D. Maria dos Anjos. E ainda comsigo, depois de sair o conego:—Tinha que ver! um tico de gente, com fumaças de governar a casa!

A quinta-feira raiou. Eulalia,—o tico de gente, levantou-se fresca, lepida, loquaz, com todas as janellas da alma abertas ao sopro azul da manhã. A mãe acordou ouvindo um trecho italiano, cheio de melodia; era ella que cantava, alegre, sem affectação, com a indifferença das aves que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as ouve e traduz na lingua immortal dos homens. D. Benedicta afagara muito a idéa de a vêr abatida, carrancuda, e gastára uma certa somma de imaginação em compôr os seus modos, delinear os seus actos, ostentar energia e força. E nada! Em vez de uma filha rebelde, uma creatura gárrula e submissa. Era começar mal o dia; era sair apparelhada para destruir uma fortaleza, e dar com uma cidade aberta, pacifica, hospedeira, que lhe pedia o favor de entrar e partir o pão da alegria e da concordia. Era começar o dia muito mal.

A segunda causa do tedio de D. Benedicta foi um ameaço de enxaqueca, ás tres horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de ameaço. Chegou a transferir a visita, mas a filha ponderou que talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde para deixar de ir. D. Benedicta não teve remedio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-se, esteve quasi a dizer que definitivamente ficava; chegou a insinual-o á filha.

—Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta com a senhora, disse-lhe Eulalia.

—Pois sim, redarguiu a mão, mas não prometti ir doente.

Emfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as ultimas ordens; e devia doer-lhe muito a cabeça, porque os modos eram arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que não quer. A filha animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos saes, instava que saissem, descrevia a anciedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dous em dous minutos o pequenino relogio, que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.

—O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a mãe.

E saiu, saiu exasperada, com uma grande vontade de esganar a filha, dizendo comsigo que a peior cousa do mundo era ter filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas as filhas!

Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo que a enchesse de grande satisfação, porque não foi assim. Os modos de D. Benedicta não eram os do costume; eram frios, seccos, ou quasi seccos; ella, porém, explicou de si mesma a differença, noticiando o ameaço da enxaqueca, noticia mais triste do que alegre, e que, aliás, alegrou a alma de D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que na quebra do affecto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não houve naquelle dia mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre caricias mutuas; não houve nada do jantar de domingo. Um jantar apenas conversado; não alegre, conversado; foi o mais que alcançou o conego. Amavel conego! As disposições de Eulalia, naquelle dia, cumularam-n'o de esperanças; o riso que brincava nella, a maneira expansiva da conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o rosto affavel, meigo, com que ouvia e fallava ao Leandrinlio, tudo isso foi para a alma do conego uma renovação de esperanças. Logo hoje é que D. Benedicta estava doente! Realmente, era caiporismo.

D. Benedicta reanimou-se um pouco, á noite, depois do jantar. Conversou mais, discutiu um projecto de passeio ao Jardim Botanico, chegou mesmo a propor que fosse logo no dia seguinte; mas Eulalia advertiu que era prudente esperar um ou dous dias até que os effeitos da enxaqueca desapparecessem de todo: e o olhar que mereceu á mãe, em trocado conselho, tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo dos olhos maternos. De noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulalia repetiu consigo a palavra que lhe ouvimos, dias antes, á janella:

—Isto acaba.

E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou uma caixinha, abriu-a, aventou um cartão de alguns centimetros de altura,—um retrato. Não era retrato de mulher, não só por ter bigodes, como por estar fardado; era, quando muito, um official de marinha. Se bonito ou feio, é materia de opinião. Eulalia achava-o bonito; a prova é que o beijou, não digo uma vez, mas tres. Depois mirou-o, com saudade, tornou a fechal-o e guardal-o.

Que fazias tu, mãe cautellosa e rispida, que não vinhas arrancar ás mãos e á boca da filha um veneno tão subtil e mortal? D. Benedicta, á janella, olhava a noite, entre as estrellas e os lampeões de gaz, com a imaginação vagabunda, inquieta, roida de saudades e desejos. O dia tinha-lhe saido mal, desde manhã. D. Benedicta confessava, naquella doce intimidade da alma consigo mesma, que o jantar de D. Maria dos Anjos não prestára para nada, e que a propria amiga não estava provavelmente nos seus dias de costume. Tinha saudades, não sabia bem de que, e desejos, que ignorava. De quando em quando, bocejava ao modo preguiçoso e arrastado dos que caem de somno; mas se alguma cousa tinha era fastio,—fastio, impaciencia, curiosidade. D. Benedicta cogitou seriamente em ir ter com o marido; e tão depressa a idéa do marido lhe penetrou no cerebro, como se lhe apertou o coração de saudades e remorsos, e o sangue pulou-lhe n'um tal impeto de ir ver o desembargador que, se o paquete do Norte estivesse na esquina da rua e as malas promptas, ella embarcaria logo e logo. Não importa; o paquete devia estar prestes a sair, oito ou dez dias; era o tempo de arranjar as malas. Iria por tres mezes sómente, não era preciso levar muita cousa. Eil-a que se consola da grande cidade fluminense, da similitude dos dias, da escassez das cousas, da persistencia das caras, da mesma fixidez das modas, que era um dos seus arduos problemas:—porque é que as modas hão de durar mais de quinze dias?

—Vou, não ha que ver, vou ao Pará, disse ella a meia voz.

Com effeito, no dia seguinte, logo de manhã, communicou a resolução á filha, que a recebeu sem abalo. Mandou ver as malas que tinha, achou que era preciso mais uma, calculou o tamanho, e determinou compral-a. Eulalia, por uma inspiração subita:

—Mas, mamãe, nós não vamos por tres mezes?

—Tres... ou dous.

—Pois, então, não vale a pena. As duas malas chegam.

—Não chegam.

—Bem; se não chegarem, pode-se comprar na vespera. E mamãe mesmo escolhe; é melhor do que mandar esta gente que não sabe nada.

D. Benedicta achou a reflexão judiciosa, e guardou o dinheiro. A filha sorriu para dentro. Talvez repetisse comsigo a famosa palavra da janella:—Isto acaba. A mãe foi cuidar dos arranjos, escolha de roupa, lista das cousas que precisava comprar, um presente para o marido, etc. Ah! que alegria que elle ia ter! Depois do meio dia sairam para fazer encommendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam uma escrava comsigo. Eulalia ainda tentou arredal-a da idéa, propondo a transferencia da viajem; mas D. Benedicta declarou peremptoriamente que não. No escriptorio da Companhia de Paquetes disseram-lhe que o do Norte saia na sexta-feira da outra semana. Ella pediu as quatro passagens; abriu a carteirinha, tirou uma nota, depois duas, reflectiu um instante.

—Basta vir na vespera, não?

—Basta, mas pode não achar mais.

—Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu mando buscar.

—O seu nome?

—O nome? O melhor é não tomar o nome; nós viremos tres dias antes de sair o vapor. Naturalmente ainda haverá bilhetes.

—Pode ser.

—Hade haver.

Na rua, Eulalia observou que era melhor ter comprado logo os bilhetes; e, sabendo-se que ella não desejava ir para o Norte nem para o Sul, salvo na fragata em que embarcasse o original do retrato da vespera, hade suppor-se que a reflexão da moça era profundamente machiavelica. Não digo que não. D. Benedicta, entretanto, noticiou a viagem aos amigos e conhecidos, nenhum dos quaes a ouviu espantado. Um chegou a perguntar-lhe se, enfim, daquella vez era certo. D. Maria dos Anjos, que sabia da viagem pelo conego, se alguma cousa a assombrou, quando a amiga se despediu della, foram as attitudes geladas, o olhar fixo no chão, o silencio, a indifferença. Uma visita de dez minutos apenas, durante os quaes D. Benedicta disse quatro palavras no principio: Vamos para o Norte. E duas no fim:—Passe bem. E os beijos? Dous tristes beijos de pessoa morta.

IV

A viagem não se fez por um motivo supersticioso. D. Benedicta, no domingo á noute, advertiu que o paquete seguia na sexta-feira, e achou que o dia era máu. Iriam no outro paquete. Não foram no outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance do olhar humano, e o melhor alvitre em taes casos é não teimar com o impenetravel. A verdade é que D. Benedicta não foi, mas iria no terceiro paquete, a não ser um incidente que lhe trocou os planos.

Tinha a filha inventado uma festa e uma amizade nova. A nova amizade era uma familia do Andarahy; a festa não se sabe a que proposito foi, mas deve ter sido explendida, porque D. Benedicta ainda fallava della tres dias depois. Tres dias! Realmente, era demais. Quanto á familia, era impossivel ser mais amavel; ao menos, a impressão que deixou na alma de D. Benedicta foi intensissima. Uso este superlativo, porque ella mesma o empregou: é um documento humano.

—Aquella gente? Oh! deixou-me uma impressão intensissima.

E toca a andar para Andarahy, namorada de D. Petronilha, esposa do conselheiro Beltrão, e de uma irmã della, D. Maricota, que ia casar com um official de marinha, irmão de outro oflicial de marinha, cujos bigodes, olhos, cara, porte, cabellos, são os mesmos do retrato qu e o leitor entreviu ha tempos na gavetinha de Eulalia. A irmã casada tinha trinta e dous annos, e uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que deixaram encantada a esposa do desembargador. Quanto á irmã solteira era uma flor, uma flor de cera, outra expressão de D. Benedicta, que não altero com receio de entibiar a verdade.

Um dos pontos mais obscuros desta curiosa historia é a pressa com que as relações se travaram, e os acontecimentos se succederam. Por exemplo, uma das pessoas que estiveram em Andarahy, com D. Benedicta, foi o official de marinha retratado no cartão particular de Eulalia, 1o tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão proclamou futuro almirante. Vede, porém, a perfídia do official: vinha fardado; e D. Benedicta, que amava os expectaculos novos, achou-o tão distincto, tão bonito, entre os outros moços á paisana, que o preferiu a todos, e lh'o disse. O official agradeceu commovido. Ella offereceu-lhe a casa; elle pediu-lhe licença para fazer uma visita.

—Uma visita? Vá jantar comnosco.

Mascarenhas fez uma cortezia de acquiescencia.

—Olhe, disse D. Benedicta, vá amanhã.

Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedicta fallou-lhe da vida do mar; elle pediu-lhe a filha em casamento. D. Benedicta ficou sem voz, pasmada. Lembrou-se, é verdade, que desconfiára delle, um dia, nas Larangeiras; mas a suspeita acabara. Agora não os vira conversar nem olhar uma só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em casamento? Não podia ser outra cousa; a attitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz dizia bem que se tratava de um casamento. Que sonho! Convidar um amigo, e abrir a porta a um genro: era o cumulo do inesperado. Mas o sonho era bonito; o official de marinha era um galhardo rapaz, forte, elegante, sympathico, mettia toda a gente no coração, e principalmente parecia adoral-a, a ella, D. Benedicta. Que magnifico sonho! D. Benedicta, voltou do pasmo, e respondeu que sim, que Eulalia era sua. Mascarenhas pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.

—Mas o desembargador? disse elle.

—O desembargador concordará commigo.

Tudo andou assim depressa. Certidões passadas, banhos corridos, marcou-se o dia do casamento; seria vinte e quatro horas depois de recebida a resposta do desembargador. Que alegria a da boa mãe! que actividade no preparo do enxoval, no plano e nas encommendas da festa, na escolha dos convidados, etc.! Ella ia de um lado para outro, ora a pé, ora de carro, fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo objecto muito tempo; a semana do enxoval não era a do preparo da festa, nem a das visitas; alternava as cousas, voltava atraz, com certa confusão, é verdade. Mas ahi estava a filha para supprir as faltas, corrigir os defeitos, cercear as demazias, tudo com a sua habilidade natural. Ao contrario de todos os noivos, este não as importunava; não jantava todos os dias com ellas, segundo lhe pedia a dona da casa; jantava aos domingos, e visitava-as uma vez por semana. Matava as saudades por meio de cartas, que eram continuas, longas e secretas, como no tempo do namoro. D. Benedicta não podia explicar uma tal esquivança, quando ella morria por elle; e então vingava-se da exquisitice, morrendo ainda mais, e dizendo delle por toda a parte as mais bellas cousas do mundo.

—Uma perola! uma perola!

—E um bonito rapaz, accrescentavam.

—Não é? De truz.

A mesma cousa repetia ao marido nas cartas que lhe mandava, antes e depois de receber a resposta da primeira. A resposta veiu; o desembargador deu o seu consentimento, accrescentando que lhe doia muito não poder vir assistir ás bodas, por achar-se um tanto adoentado; mas abençoava de longe os filhos, e pedia o retrato do genro.

Cumpriu-se o accordo á risca. Vinte e quatro horas depois de recebida a resposta do Pará effectuou-se o casamento, que foi uma festa admiravel, esplendida, no dizer de D. Benedicta, quando a contou a algumas amigas. Officiou o conego Roxo, e claro é que D. Maria dos Anjos não esteve presente, e menos ainda o filho. Ella esperou, note-se, até á ultima hora um billhete de participação, um convite, uma visita, embora se abstivesse de comparecer; mas não recebeu nada. Estava attonita, revolvia a memoria a ver se descobria alguma inadvertencia sua que podesse explicar a frieza das relações; não achando nada, suppoz alguma intriga. E suppoz mal, pois foi um simples esquecimento. D. Benedicta, no dia do consorcio, de manhã, teve ideia de que D. Maria dos Anjos não recebera participação.

—Eulalia, parece que não mandamos participação a D. Maria dos Anjos? disse ella á filha, almoçando.

—Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos convites.

—Parece que não, confirmou D. Benedicta. João, dá cá mais assucar.

O copeiro deu-lhe o assucar; ella, mexendo o chá, lembrou-se do carro que iria buscar o conego, e reiterou uma ordem da vespera.

Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias depois do casamento, chegou a noticia do obito do desembargador. Não descrevo a dôr de D. Benedicta; foi dilacerante e sincera. Os noivos, que devaneavam na Tijuca, vieram ter com ella; D. Benedicta chorou todas as lagrymas de uma esposa austera e fidelissima. Depois da missa do setimo dia, consultou a filha e o genro ácerca da ideia de ir ao Pará, erigir um tumulo ao marido, e beijar a terra em que elle repousava. Mascarenhas trocou um olhar com a mulher; depois disse á sogra que era melhor irem juntos, porque elle devia seguir para o Norte dahi a tres mezes em commissão do governo. D. Benedicta recalcitrou um pouco, mas aceitou o prazo, dando desde logo todas as ordens necessarias á construcção do tumulo. O tumulo fez-se; mas a commissão não veiu, e D. Benedicta não pôde ir.

Cinco mezes depois, deu-se um pequeno incidente na familia. D. Benedicta mandara construir uma casa no caminho da Tijuca, e o genro, com o pretexto de uma interrupção na obra, propoz acabal-a. D. Benedicta consentiu, e o acto era tanto mais honroso para ella, quanto que o genro começava a parecer-lhe insupportavel com a sua excessiva disciplina, com as suas teimas, impertinencias, etc. Verdadeiramente, não havia teimas: nesse particular, o genro de D. Benedicta contava tanto com a sinceridade da sogra que nunca teimava; deixava que ella propria se desmentisse dias depois. Mas pode ser que isto mesmo a mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o mandar ao Sul; Eulalia, gravida, ficou com a mãe.

Foi por esse tempo que um negociante, viuvo, teve ideia de cortejar D. Benedicta. O primeiro anno da viuvez estava passado. D. Benedicta acolheu a ideia com muita sympathia, embora sem alvoroço. Defendia-se comsigo; allegava a edade e os estudos do filho, que em breve estaria a caminho de S. Paulo, deixando-a só, sosinha no mundo. O casamento seria uma consolação, uma companhia. E comsigo, na rua ou em casa, nas horas disponiveis, aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação vivaz e subita; era uma vida nova, pois desde muito, antes mesmo da morte do marido, pode-se dizer que era viuva. O negociante gozava do melhor conceito: a escolha era excellente.

Não casou. O genro tornou do Sul, a filha deu á luz um menino robusto e lindo, que foi a paixão da avó durante os primeiros mezes. Depois, o genro, a filha e o neto foram para o Norte. D. Benedicta achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus affectos. A ideia de viajar tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um phosphoro, que se apaga logo. Viajar sosinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou melhor ficar. Uma companhia lyrica, adventicia, sacudiu-lhe o torpor, e restituiu-a á sociedade. A sociedade incutiu-lhe outra vez a ideia do casamento, e apontou-lhe logo um pretendente, desta vez um advogado, tambem viuvo.

—Casarei? não casarei?

Uma noite, volvendo D. Benedicta este problema, á janella da casa de Botafogo, para onde se mudara desde alguns mezes, viu um singular expectaculo. Primeiramente uma claridade opaca, especie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro á janella. Nesse quadro appareceu-Ihe uma figura vaga e transparente, trajada de nevoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar. A figura veiu até ao peitoril da janella de D. Benedicta; e de um gesto somnolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:

—Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando...

D. Benedicta ficou atterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar á figura quem era. A figura achou um principio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedicta: Meu nome é Velleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersou-se na noite e no silencio.

FIM DE D. BENEDICTA



O SEGREDO DO BONZO[1]

CAPITULO INEDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

Atraz deixei narrado o que se passou n'esta cidade Fucheo, capital do reino de Bungo, com o padre mestre Francisco, e de como el-rey se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudavel ao espirito, e digna de ser divulgada a todas as republicas da christandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meirelles, n'esta mesma cidade Fucheo, n'aquelle anno de 1552, succedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, á esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundancia de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões sómente, e todos embasbacados. Diogo Meirelles, que melhor conhecia a lingua da terra, pois alli estivera muitos mezes, quando andou com bandeira de veniaga (agora occupava-se no exercicio da medicina, que estudara convenientemente, e em que era eximio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte:—Que elle não queria outra cousa mais do que affirmar a origem dos grillos, os quaes procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjuncção da lua nova; que este descobrimento, impossivel a quem não fosse, como elle, mathematico, physico e philosopho, era fructo de dilatados annos de applicação, experiencia e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas emfim, estava feito, e todo redundava em gloria do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fucheo, cuja filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessario aceitar a morte, elle a aceitaria alli mesmo, tão certo era que a sciencia valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que elle acabou, levantou um tumulto de acclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem, bradando: Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos grillos. E todos se foram com elle ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverencias, á maneira d'este gentio, que é em extremo obsequioso e cortezão.

Desandando o caminho, vinhamos nós, Diogo Meirelles e eu, fallando do singular achado da origem dos grillos, quando, a pouca distancia d'aquelle alpendre, obra de seis credos, não mais, achámos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficámos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meirelles, visto que tambem este fallava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia este outro, com grande admiração e applauso da gente que o cercava, que emfim descobrira o principio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruida, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vacca; d'ahi provinha a excellencia da vacca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distincto animal era procurado por muitos homens á hora de morrer; descobrimento que elle podia affirmar com fé e verdade, por ser obra de experiencias repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar gloria ao reino de Bungo e receber d'elle a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutára esta falla com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a differença que o trepou a uma charola; alli chegando, foi regalado com obsequios eguaes aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distincçao entre elles, nem outra competencia nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficámos sem saber nada d'aquillo, porque nem nos parecia casual a semelhança exacta dos dous encontros, nem racional ou crivel a origem dos grillos, dada por Patimau, ou o principio da vida futura, descoberto por Langurú, que assim se chamava o outro. Succedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a fallar a Diogo Meirelles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes cousas a Diogo Meirelles, taes como—ouro da verdade e sol do pensamento,—contou-lhe este o que viramos e ouviramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço:—Póde ser que elles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficassemos cubiçosos de ter alguma noticia da doutrina, consentiu Titané em ir comnosco no dia seguinte ás casas do bonzo, e accrescentou:—Dizem que elle não a confia a nenhuma pessoa, se não ás que de coração se quizerem filiar a ella; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se fôr boa, chegaremos a pratical-a á nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos ás casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito annos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquella gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciume. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem eramos e o que queriamos, iniciou-nos primeiro com varias ceremonias e bugiarias necessarias á recepção da doutrina, e só depois d'ella é que alçou a voz para confial-a e explical-a.

Haveis de entender, começou elle, que a virtude e o saber, tem duas existencias parallelas, uma no sugeito que as possue, outra no espirito dos que o ouvem ou contemplam. Se puzerdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitario, remoto de todo contacto com outros homens, é como se elles não existissem. Os fructos de uma larangeira, se ninguem os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguem os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais energicas, não ha expectaculo sem expectador. Um dia, estando a cuidar n'estas cousas, considerei que, para o fim de allumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos annos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existencia de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo effeito, poupando taes trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

N'este ponto, afiámos os ouvidos e ficámos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meirelles que a lingua da terra me não era familiar, ia fallando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo:—Mal podeis adivinhar o que me deu idéa da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no pincaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com taes quilates de luz, não existiu nunca, e ninguem jámais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus proprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma cousa póde existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existencias parallelas a única necessaria é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verifical-o por experiencias; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para comprehender a efficacia do meu systema, basta advertir que os grillos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjuncção da lua nova, e por outro lado, o principio da vida futura não está em uma certa gotta de sangue de vacca; mas Patimáu e Langurú, varões astutos, com tal arte souberam metter estas duas idéas no animo da multidão, que hoje desfructam a nomeada de grande physicos e maiores philosophos, e tem comsigo pessoas capazes de dar a vida por elles.

Não sabiamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Elle interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, ácerca da doutrina e dos fundamentos d'ella, e depois de reconhecer que a entendiamos, incitou-nos a pratical-a, a divulgal-a cautelosamente, não porque houvesse nada contrario ás leis divinas ou humanas, mas porque a má comprehensão d'ella podia damnal-a e perdel-a em seus primeiros passos; emfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalavamos d'alli com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome d'elle, lhe era em extremo agradavel.

Com effeito, antes de cair a tarde, tinhamos os tres combinado em pôr por obra uma idéa tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se póde haver em moeda, senão tambem o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor especie de moeda, comquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, á guisa de experiencia, metter cada um de nós, no animo da cidade Fucheo, uma certa convicção, mediante a qual houvessemos os mesmos beneficios que desfructavam Patimau e Langurú; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiencia ambas as moedas, isto é, vendendo tambem as suas alparcas: ao que nos não oppuzemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiencia de Titané em uma cousa que não sei como diga para que a entendam. Usam n'este reino de Bungo, e em outros d'estas remotas partes, um papel feito de casca de canella moida e gomma, obra mui prima, que elles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quaes desenham com vivas e variadas côres, e pela lingua do paiz, as noticias da semana, politicas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a ha frequente, ou de veniaga. E digo as noticias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande copia, e distribuidas ao gentio da terra, a troco de uma esportula, que cada um dá de bom grado para ter as noticias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quiz melhor esquina que este papel, chamado pela nossa lingua Vida e claridade das cousas mundanas e celestes, titulo expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar noticias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quaes não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas d'elle Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui solidas e graciosas; que nada menos de vinte e dous mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do explendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse creado o titulo honorifico de «alparca do Estado», para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossissimas as encommendas feitas de todas as partes, ás quaes elle Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela gloria que d'alli provinha á nação; não recuando, todavia, do proposito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cincoenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rey e o repetia agora; emfim, que apezar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, elle sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da gloria do reino de Bungo.

A leitura d'esta noticia commoveu naturalmente a toda a cidade Fucheo, não se fallando em outra cousa durante toda aquella semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou elle de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinarias anedoctas ácerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça:—Vêde que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das taes alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fil-o crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. Não me parece, atalhei, que tenhaes cumprido a doutrina em seu rigor e substancia, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuimos; este é, ao certo, o essencial d'ella.

Dito isto, assentaram os dous que era a minha vez de tentar a experiencia, o que immediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiencia de Diogo Meirelles, que foi a mais decisiva das tres, e a melhor prova d'esta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de musica e charamella, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principaes de Fucheo para que me ouvissem tanger o instrumento; os quaes vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido cousa tão extraordinaria. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamella, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da uncção com que alcei os olhos ao ar, e do desdem e ufania com que os baixei á mesma assembléa, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de enthusiasmo, que quasi me persuadiu do meu merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiencias, foi a de Diogo Meirelles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Comquanto os physicos da terra propuzessem extrahir os narizes inchados, para allivio e melhoria dos enfermos, nenhum d'estes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso á lacuna, e tendo por mais aborrecivel que nenhuma outra cousa a ausencia daquelle orgão. N'este apertado lance mais de um recorria á morte voluntaria, como um remedio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fucheo. Diogo Meirelles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atraz, estudou a molestia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrificio. Então occorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos physicos, philosophos, bonzos, autoridades e povo, communicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o orgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metaphysica, isto é, inacessivel aos sentidos humanos, e comtudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por elle em varias partes, e muito aceita aos physicos de Malabar. O assombro da assembléa foi immenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metaphysica do nariz, cedia entretanto á energia das palavras de Diogo Meirelles, ao tom alto e convencido com que elle expoz e definiu o sem remedio. Foi então que alguns philosophos, alli presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meirelles, não quizeram ficar-lhe atraz, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um producto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verosimilhança, um nariz metaphysico, e juravam ao povo que o effeito era o mesmo.

A assembléa acclamou a Diogo Meirelles; e os doentes começaram de buscal-o, em tanta copia, que elle não tinha mãos a medir. Diogo Meirelles desnarigava-os com muitissima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e applicava-o ao logar vasio. Os enfermos, assim curados e suppridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do orgão cortado; mas, certos e certissimos de que alli estava o orgão substituto, e que este era inacessivel aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus officios. Nenhuma outra prova quero da efficacia da doutrina e do fructo d'esse experiencia, senão o facto de que todos os desnarigados de Diogo Meirelles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para gloria do bonzo e beneficio do mundo.


[1]Como se terá visto, não ha aqui um simples pastiche, nem esta imitação foi feita com o fim de provar forças, trabalho que, se fosse só isso, teria bem pouco valor. Era-me preciso, para dar a possivel realidade á invenção, collocal-a a distancia grande, no espaço e no tempo; e para tornar a narração sincera, nada me pareceu melhor do que attribuil-a ao viajante escriptor que tantas maravilhas disse. Para os curiosos accrescentarei que as palavras: Atraz deixei narrado o que se passou nesta cidade Fucheo,—foram escriptas com o fim de suppor o capitulo intercalado nas Peregrinações, entre os caps. CCXIII e CCXIV.

O bonzo do meu escripto chama-se Pomada, e pomadistas os seus sectarios. Pomada e pomadista são locuções familiares da nossa terra: é o nome local do charlatão e do charlatanismo.

FIM DO SEGREDO DO BONZO



O ANNEL DE POLYCRATES

A

Lá vai o Xavier.

Z

Conhece o Xavier?

A

Ha que annos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas prodigo...

Z

Que rico? que prodigo?

A

Rico e prodigo, digo-lhe eu. Bebia perolas diluidas em nectar. Comia linguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achal-o vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão póde dar idéa do que éra o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exhuberancia turca, todas as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era admittido no harem do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto cothurno, e enviou-lhe de mimo tres estrellas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi ahi qualquer pé rapado. Não, senhor. O portador foi um dos archanjos de Milton, que o Xavier chamou na occasião em que elle cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglez. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de crystal, obra finissima, e, para accendel-os, trazia comsigo uma caixinha de raios do sol. As colxas da cama eram nuvens purpureas, e assim tambem a esteira que forrava o sophá de repouso, a poltrona da secretaria e a rede. Sabe quem lhe fazia o café, de manhã? A Aurora, com aquelles mesmos dedos côr de rosa, que Homero lhe poz. Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza pódem dar, o raro, o exquisito, o maravilhoso, o indescriptivel, o inimaginavel, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as perolas, os diamantes, as estrellas, as nuvens purpureas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por agua abaixo; o nectar virou zurrapa, os cochins são a pedra dura da rua, não manda estrellas ás senhoras, nem tem archanjos ás suas ordens...

Z

Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier, ha de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que alli vai nunca teve mais de duzentos mil réis mensaes; é um homem poupado, sobrio, deita-se com as gallinhas, accorda com os gallos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo carreio. Não é mendigo, nunca foi nababo.

A

Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você falla de Martha, eu fallo-lhe de Maria; fallo do Xavier especulativo...

Z

Ah!—Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada d'elle. Que livro, que poema, que quadro...

A

Desde quando o conhece?

Z

Ha uns quinze annos.

A

Upa! Conheço-o ha muito mais tempo, desde que elle estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquez de Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as cousas possiveis, e até contrarias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma historia, um libello politico, uma viagem á Europa, outra ao sertão de Minas, outra á lua, em certo balão que inventara, uma candidatura politica, e archeologia, e philosophia, e theatro, etc., etc., etc. Era um sacco de espantos[1]. Quem conversava com elle sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéas e imagens, qual mais original, qual mais bella, ás vezes extravagante, ás vezes sublime. Note que elle tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrazar o morro do Castello, a troco das riquezas que os jesuitas alli deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objectos, deu-me dous tocheiros de ouro.

Z

Realmente...

A

Ah! impagavel. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do conego Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade mysteriosa. Expoz-me o plano, descreveu-me a architectura provavel da cidade, os templos, os palacios, genero etrusco, os ritos, os vasos, as roupas, os costumes...

Z

Era então doudo?

A

Originalão apenas. Odeio os carneiros de Panurgio, dizia elle, citando Rabelais: Comme vous sçaves estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um máu bife em mesa separada.

Z

Entretanto, gostava da sociedade.

A

Gostava da sociedade, mas não amava os socios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que elle respondeu? Respondeu com um apologo, em que cada socio figurava ser uma cuia d'agua, e a sociedade uma banheira.—Ora, eu não posso lavar-me em cuias d'agua, foi a sua conclusão.

Z

Nada modesto. Que lhe disse o Pires?

A

O Pires achou o apologo tão bonito que o metteu n'uma comedia, d'ahi a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apologo no theatro, e applaudiu-o muito, com enthusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me á explicação da actual miseria do Xavier.

Z

É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo...

A

Explica-se facilmente. Elle espalhava idéas á direita e á esquerda, como o céu chove, por uma necessidade physica, e ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente, não soffria a gestação indispensavel á obra escripta. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de cousas, que mal poderia fixar-se em qualquer dellas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo. As paginas que então fallava, os capitulos que lhe borbotavam da bocca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem paginas e capitulos excellentes, alguns admiraveis. Nem tudo era limpido; mas a porção limpida superava a porção turva, como a vigilia de Homero paga os seus cochillos. Espalhava tudo, ao acaso, ás mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cahir; algumas pegavam logo...

Z

Como a das cuias.

A

Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das cousas bellas, e, uma vez que a arvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos annos, despendendo á tôa, sem calculo, sem fructo, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro prodigo. Com tal regimen, que era a ausencia de regimen, não admira que ficasse pobre e miseravel. Meu amigo, a imaginação e o espirito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inexgotavel debaixo do sol, O Xavier não só perdeu as idéas que tinha, mas até exhauriu a faculdade de as crear; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? que sestercio de Horacio? que drachma de Pericles? Nada. Gasta o seu logar-commum, rafado das mãos dos outros, come á mesa redonda, fez-se trival, chôcho...

Z

Cuia, emfim.

A

Justamente: cuia.

Z

Pois muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus.

A

Vai a negocio?

Z

Vou a um negocio.

A

Dá-me dez minutos?

Z

Dou-lhe quinze.

V

Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a Praça? Vamos juntos. Um caso interessantissimo. Foi alli por 1869 ou 70, não me recordo; elle mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cerebro gasto, chupado, esteril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora,—«uma bonita rosa»; fallava do luar saudoso, do sacerdocio da imprensa, dos jantares opiparos, sem accrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começára a ficar hypocondriaco; e, um dia, estando á janella, triste, desabusado das cousas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavallo. De repente, o cavallo corcoveou, e o taful veiu quasi ao chão; mas sustentou-se, e metteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, elle teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavallo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do cavalleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavalleiro não tivesse animo nenhum; não quiz cahir diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavallo. E d'ahi veiu uma idéa: comparou a vida a um cavallo chucro ou manhoso; e accrescentou sentenciosamente: Quem não fôr cavalleiro, que o pareça. Realmente, não era uma idéa extraordinaria; mas a penuria do Xavier tocara a tal extremo, que esse crystal pareceu-lhe um diamante. Elle repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de varios modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como casa de pobre em dia de perú. De noite, sonhou que effectivamente montava um cavallo manhoso, que este pinoteava com elle e o sacudia a um brejo. Accordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; metteu-se a lêr e a scismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do annel de Polycrates?

Z

Francamente, não.

A

Nem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Potycrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a receiar alguma viravolta da Fortuna, e, para applacal-a antecipadamente, determinou fazer um grande sacrificio: deitar ao mar o annel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulal-o de obsequios, que o annel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou á posse do annel. Não affirmo nada a respeito d'esta anedocta; foi elle quem me contou, citando Plinio, citando...

Z

Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavallo, mas...

A

Nada d'isso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambotico do pobre diabo. Experimentemos a fortuna, disse elle; vejamos se a minha idéa, lançada ao mar, póde tornar ao meu poder, como o annel de Polycrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão.

Z

Ora essa!

A

Não é estrambotico? Polycrates experimentára a felicidade; o Xavier quiz tentar o caiporismo; intenções diversas, acção indentica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assumpto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavallo chucro ou manhoso, e quem não fôr cavalleiro que o pareça. Dita assim, esta phrase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos annos, o mallogro dos esforços, ou antes os effeitos da imprevidencia, e quando o peixe ficou de bocca aberta, digo, quando a commoção do amigo chegou ao cume, foi que elle lhe atirou o annel, e fugiu a metter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossivel; mas agora começa a juntar-se á realidade uma alta dóse de imaginação. Seja o que fôr, repito o que elle me disse. Cerca de tres semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma phrase sua, talvez com a troca de um adjectivo. «Meu pobre annel, disse elle, eis-te emfim no peixe de Polycrates.» Mas a idéa bateu as azas e voou, sem que elle pudesse guardal-a na memoria. Resignou-se. Dias depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distincção nobiliaria. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira de barão, a sua vida prospera, rigida, modelo, ouviu comparar o barão a um cavalleiro emerito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavallo. Mas o panegyrista explicou que a vida não é mais do que um cavallo chucro ou manhoso, sobre o qual ou se ha de ser cavalleiro ou parecel-o, e o barão era-o excellente. «—Entra, meu querido annel, disse o Xavier, entra no dedo de Polycrates.» Mas de novo a idéa bateu as azas, sem querer ouvil-o. Dias depois...

Z

Adivinho o resto: uma serie de encontros e fugas do mesmo genero.

A

Justo.

Z

Mas, emfim, apanhou-o um dia.

A

Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memoria. Tão contente que elle estava n'esse dia! Jurou-me que ia escrever, a proposito d'isto, um conto fantastico, á maneira de Edgard Poe, uma pagina fulgurante, pontuada de mysterios,—são as suas proprias expressões;—e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o annel fugira-lhe outra vez. «Meu caro A, disse-me elle, com um sorriso fino e sarcastico; tens em mim o Polycrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorario e gratuito.» D'ahi em diante foi sempre mesma coisa. Quando elle suppunha pôr a mão em cima da idéa, ella batia as azas, plas, plas, plas, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que elle me contou n'aquelle dia, quero dizer-lhe tres...

Z

Não posso; lá se vão os quinze minutos.

A

Conto-lhe só tres. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia emfim agarrar a fugitiva, e fincal-a perpetuamente no cerebro. Abriu um jornal de opposição, e leu estupefacto estas palavras: «O ministerio parece ignorar que a politica é, como a vida, um cavallo chucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavalleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é.» Ah! emfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir.» Mas, em vão! a idéa fugia-lhe, sem deixar outro vestigio mais do que uma confusa reminiscencia. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um theatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cumulo de beneficios: era uma comedia do Pires, uma comedia nova. Sentou-se ao pé do autor, applaudiu a obra com enthusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo acto, scena VIII, estremeceu. «D. Eugenia, diz o galan a uma senhora, o cavallo póde ser comparado á vida, que é também um cavallo chucro ou manhoso; quem não for bom cavalleiro, deve cuidar de parecer que o é.» O autor, com o olhar timido, espiava no rosto do Xavier o effeito d'aquella reflexão, emquanto o Xavier repetia a mesma supplica das outras vezes;—«Meu querido annel...

Z

Et nunc et semper... Venha o ultimo encontro, que são horas.

A

O ultimo foi primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmittira a idéa a um amigo. Uma semana depois da comedia cae o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava á morte. O Xavier corre a vel-o; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e tremula, cravar-lhe um longo olhar baço da ultima hora, e, com a voz sumida, echo do sepulchro, soluçar-lhe: «Cá voou, meu caro Xavier, o cavallo chucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão: se fui mau cavalleiro, não sei; mas forcejei por parecel-o bom.» Não se ria; elle contou-me isto com lagrimas. Contou-me tambem que a idéa ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadaver, faiscando as bellas azas de christal, que elle cria ser diamante; depois estalou um risinho de escarneo, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, mettendo-se no cerebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que alli estavam, tranzidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defuncto. Adeus.


[1]Em algumas linhas escriptas para dar o ultimo adeus a Arthur de Oliveira, meu triste amigo, disse que era elle o original deste personagem. Menos a vaidade, que não tinha, e salvo alguns rasgos mais accentuados, este Xavier era o Arthur. Para completal-o darei aqui mesmo aquellas linhas impressas na Estação de 31 de Agosto ultimo:

"Quem não tratou de perto este rapaz, morto a 21 do mez corrente, mal poderá entender a admiração e saudade que elle deixou.

"Conheci-o desde que chegou do Rio Grande do Sul, com dezesete ou dezoito annos de edade; e podem crer que era então o que foi aos trinta. Aos trinta lera muito, vivera muito; mas toda aquella pujança de espirito, todo esse raro temperamento litterario que lhe admiravamos, veiu com a flor da adolescencia; desabrochara com os primeiros dias. Era a mesma torrente de ideias, a mesma fulguração de imagens. Ha algumas semanas, em escripto que viu a luz na Gazeta de Noticias, defini a alma de um personagem com esta especie de hebraismo:—chamei-lhe um sacco de espantos. Esse personagem (posso agora dizel-o) era, em algumas partes, o nosso mesmo Arthur, com a sua poderosa loquella e extraordinaria fantazia. Um sacco de espantos. Mas, se o da minha invenção morreu exhausto de espirito, não aconteceu o mesmo a Arthur de Oliveira, que pôde alguma vez ficar prostrado, mas não exhauriu nunca a força genial que possuia.

"Um organismo daquelles era naturalmente irrequieto. Minas o viu, pouco depois, no collegio dos padres do Caráça, começando os estudos, que interrompeu logo, para continual-os na Europa. Na Europa travou relações litterarias de muito peso; Theophilo Gauthier, entre outros, queria-lhe muito, apreciava-lhe a alta comprehensao artistica, a natureza impetuosa e luminosa, os deslumbramentos subitos de raio. Venez, père de la foudre! dizia-lhe elle, mal o Arthur assomava á porta. E o Arthur, assim definido familiarmente pelo grande artista, entrava no templo, palpitante da divindade, admirativo como tinha de ser até á morte. Sim, até á morte. Gauthier foi uma das religiões que o consolaram. Sete dias antes de o perdermos, isto é, a 14 deste mez, prostrado na cama, roido pelo dente cruel da tisica, escrevia-me elle a proposito de um prato do jantar. "O verde das couves espanejava-se em uma onda de pirão, cor de ouro. A palheta de Ruysdael, pelo incendido do ouro, não hesitaria um só instante, em assignar esse pirão mirabolante, como diria o grande e divino Theo..." Grande e divino! Vêde bem que esta admiração é de um moribundo, refere-se a um morto, e falla na intimidade da correspondencia particular. Onde outra mais sincera?

"Não escrevo uma biographia. A vida delle não é das que se escrevem; é das que são vividas, sentidas, amadas, sem jamais poderem converter-se á narração; tal qual os romances psychologicos, em que a urdidura dos factos é breve ou nenhuma. Ultimamente, exercia o professorado no Collegio de Pedro II; mas a doença tomou-o entre as suas tenazes, para não o deixar mais.

"Não o deixou mais: comeu-lhe a seiva toda; desfibrou-o com a paciencia dos grandes operarios. Elle, como vimos, prestes a tropeçar na cova, regalava-se ainda das reminiscencias litterarias, evocava a palheta de Ruysdael, olhando para a vida que lhe ia sobreviver, a vida da arte que elle amou com fé religiosa, sem proveito para si, sem calculo, sem odios, sem invejas, sem desfallecimento. A doença fel-o padecer muito; teve instantes de dôr cruel, não raro de desespero e de lagrimas; mas, em podendo, reagia. Encararia alguma vez o enigma da morte? Poucas horas antes de morrer (perdôem-me esta recordação pessoal; é necessaria), poucas horas antes de morrer, lia um livro meu, o das Memorias Posthumas de Braz Cubas, e dizia-me que interpretava agora melhor algumas de suas passagens. Talvez as que entendiam com a occasião... E dizia-me aquillo serenamente, com uma força de animo rara, uma resignação de granito. Foi ao sair de uma dessas visitas, que escrevi estes versos, recordando os arrojos d'elle comparados com o actual estado. Não lh'os mostrei; e dou-os aqui para os seus amigos:

"Sabes tu de um poeta enorme,
Que andar não usa
No chão, e cuja extranha musa,
Que nunca dorme,

"Calça o pé melindroso e leve,
Como uma pluma,
De folha e flôr, de sol e neve,
Cristal e espuma;

"E mergulha, como Leandro,
A fórma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara,
E no Scamandro;

"Ouve a Tupan e escuta a Momo,
Sem controversia,
E tanto adoro o estudo, como
Adora a inercia;

"Ora do fuste, ora da ogiva
Sair parece;
Ora o Deus do occidente esquece
Pelo deus Siva;

"Gosta do estrepito infinito,
Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
Das arapongas;

"E se ama o rapido besouro,
Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que succumbe
Na flamma de ouro,

"Vagalumes e borboletas
Da côr da chamma,
Roxas, brancas, rajadas, pretas,
Não menos ama

"Os hippopotamos tranquillos,
E os elephantes,
E mais os bufalos nadantes,
E os crocodillos,

"Como as girafas e as pantheras,
Onças, condores,
Toda a casta de bestas feras
E voadores.

"Se não sabes quem elle seja,
Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
A aguia negreja;

"Onde morre o clamor iniquo
Dos violentos;
Onde não chega o riso obliquo
Dos fraudulentos.

"Então olha, de cima posto,
Para o oceano;
Verás n'um longo rosto humano
Teu mesmo rosto;

"E has de rir, não do riso antigo,
Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo;
Mas de outro amargo,

"Como o riso de um deus enfermo,
Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
Tambem um termo...

"Os amigos delle apreciarão o sentido desses versos. O publico, em geral, nada tem com um homem que passou pela terra sem o convidar para cousa nenhuma, um forte engenho que apenas soube amar a arte, como tantos christãos obscuros amaram a Egreja, e amar tambem aos seus amigos, porque era meigo, generoso e bom."

FIM DO ANNEL DE POLYCRATES



O EMPRESTIMO

Vou divulgar uma anecdota, mas uma anecdota no genuino sentido do vocabulo, que o vulgo ampliou ás historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ella andou recondita, senão por falta de um espirito repousado, que lhe achasse a philosophia. Como deveis saber, ha em todas as cousas um sentido philosophico. Carlyle descobriu o dos colletes, ou, mais propriamente, o do vestuario; e ninguem ignora que os numeros, muito antes da loteria do Ypiranga, formavam o systema de Pythagoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de emprestimo; ides ver se me engano.

E, para começar, emendemos Seneca. Cada dia, ao parecer d'aquelle moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas porque não accrescentou elle, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma corôa de visconde, um baculo pastoral. Aos cincoenta annos, vamos achal-o simples apontador de alfandega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta annos, póde algum Balzac mette-lo em trezentas paginas; porque não hade a vida, que foi a mestra de Balzac, apertal-o em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartorio do tabellião Vaz Nunes, á rua do Rosario. Os escreventes deram ainda as ultimas pennadas: depois limparam as pennas de ganço na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papeis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletot á entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos sahiram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabellião era um dos homens mais perspicazes do seculo. Está morto: podemos elogial-o á vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Elle adivinhava o caracter das pessoas que o buscavam para escripturar os seus accordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava oculos, como todos os tabelliães de theatro; mas, não sendo myope, olhava por cima d'elles, quando queria ver, e através d'elles, se pretendia não ser visto. Finorio como elle só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circumspecto. Tinha cincoenta annos, era viuvo, sem filhos, e, para fallar como alguns outros serventuarios, roia muito caladinho os seus duzentos contos de reis.

—Quem é? perguntou elle de repente, olhando para a porta da rua.

Estava á porta, parado na soleira, um homem que elle não conheceu logo, e mal póde reconhecer dahi a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; elle obedeceu, comprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrario, parecia, que não vinha alli senão para dar ao tabellião alguma cousa preciosissima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.

—Não se lembra de mim?

—Não me lembro...

—Estivemos juntos uma noite, ha alguns mezes, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Theodorico, aquella grande ceia de Natal; por signal que lhe fiz uma saude... Veja se se lembra do Custodio.

—Ah!

Custodio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta annos. Vestia pobremente, mas escorado, apertado, correcto. Usara unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrario da pelle do rosto, que era agreste. Noticias minimas, e aliás necessarias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintem, parecia levar após si um exercito. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custodio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instincto das elegancias, o amor do superfluo, da boa chira, das bellas damas, dos tapetes finos, dos moveis raros, um voluptuoso, e, até certo ponto, um artista, capaz de reger a villa Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisara viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la necessité, redarguiu friamente o ministro. Ninguem dava essa resposta ao Custodio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil reis, e de taes esportulas é que elle principalmente tirava o albergue e a comida.

Digo que principalmente vivia d'ellas, porque o Custodio não recusava metter-se em alguns negocios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catastrophes. Entre vinte emprezas, adivinhava logo a insensata, e mettia hombros a ella, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigesima lhe estourasse nas mãos. Não importa; apparelhava-se para outra.

Agora, por exemplo, leu um annuncio de alguem que pedia um socio, com cinco contos de reis, para entrar em certo negocio, que promettia dar, nos primeiros seis mezes, oitenta a cem contos de lucro, Custodio foi ter com o annunciante. Era uma grande idéa, uma fabrica de agulhas, industria nova, de immenso futuro. E os planos, os desenhos da fabrica os relatorios de Birmingham, os mappas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquerito passavam diante dos olhos de Custodio, estrellados de algarismos, que elle não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmaticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu d'alli, cortejado, amimado pelo annunciante, que, ainda á porta, o afogou n'uma torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos doceis ou menos vagabundos que os cinco mil reis, saccudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de somno. Nada. Oito ou dez amigos, a quem fallou, disseram-lhe que nem dispunham agora da somma pedida, nem acreditavam na fabrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rozario e ler no portal de um cartorio o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabellião, as phrases com que elle lhe respondeu ao brinde, e disse comsigo, que este era o salvador da situação.

—Venho pedir-lhe uma escriptura...

Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou por cima dos oculos e esperou.

—Uma escriptura de gratidão, explicou o Custodio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensavel, e conto que o meu amigo...

—Se estiver nas minhas mãos...

—O negocio é excellente, note-se bem; um negocio magnifico. Nem eu me mettia a incommodar os outros sem certeza do resultado. A cousa está prompta; foram já encommendas para a Inglaterra; e é provavel que dentro de dois mezes esteja tudo montado, é uma industria nova. Somos tres socios; a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis mezes,—ou a tres, com juro modico...

—Cinco contos?

—Sim, senhor.

—Mas, Sr. Custodio, não posso, não disponho de tão grande quantia. Os negocios andam mal; e ainda que andassem muito hem, não poderia dispôr de tanto. Quem é que póde esperar cinco contos de um modesto tabellião de notas?

—Ora, se o senhor quizesse...

—Quero, de certo; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, accommodada aos meus recursos, não teria duvida em adiantal-a, Mas cinco contos! Creia que é impossivel.

A alma do Custodio cahiu de bruços. Subira pela escada de Jacob até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho biblico, rolou abaixo e cahiu de bruços. Era a ultima esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que elle suppoz que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regimen do eventual, o do Custodio era supersticioso. O pobre diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fabrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabellião continuasse, que se compadecesse, que lhe désse alguma aberta; mas o tabellião, que lia isso mesmo na alma do Custodio, estava tambem calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nazal e implicante. Custodio ensaiou todas as attitudes; ora pedinte, ora general. O tabellião não se mexia. Custodio ergueu-se.

—Bem, disse elle, com uma pontasinha de despeito, ha de perdoar o incomodo...

—Não ha que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servil-o, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, muito menos, não teria duvida; mas...

Estendeu a mão ao Custodio, que com a esquerda pegara machinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custodio exprimia a absorpção da alma d'elle, apenas convalecida da quéda, que lhe tirára as ultimas energias. Nenhuma escada mysteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabellião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomal-o outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precario, ao adventicio, ás velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos á laia de orelhas, que continuariam a fital-o e a ouvil-o, a ouvil-o e a fital-o, alongando para elle os algarismos implacaveis de fome. Que quéda! e que abysmo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéa subita clareou-lhe a noute do cerebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servil-o, e com prazer; porque não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empreza; mas não podia fazer o mesmo a uns alugueis atrazados, a dous ou tres credores, etc., e uma somma razoavel, quinhentos mil réis, por exemplo, uma vez que o tabellião tinha a boa vontade de emprestar-lh'os, vinham a ponto. A alma do Custodio impertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil réis, que elle ia ver surdir da algibeira do tabellião, como um alvará de liberdade.

—Pois bem, disse elle, veja o que me póde dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?

—Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma cousa muito modesta.

—Quinhentos mil réis?

—Não; não posso.

—Nem quinhentos mil réis?

—Nem isso, replicou firme o tabellião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com ellas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?

—Não, senhor.

—Olhe; dou-lhe cousa melhor do que quinhentos mil réis; fallarei ao ministro da justiça, tenho relações com elle, e...

Custodio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que elle teimou na supplica. Não podia dar quinhentos mil réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empreza, pois adoptava o conselho dos amigos: ia recusal-a. Os duzentos mil réis, visto que o tabellião estava disposto a ajudal-o, eram para uma necessidade urgente,—«tapar um buraco.» E então relatou tudo, respondeu á franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empreza, tivera em mente acudir tambem a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...

—Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, emfim, nem os duzentos mil réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças n'esta occasião. N'outra póde ser, e não tenho duvida, mas agora...

—Não imagina os apuros em que estou!

—Nem cem, repito. Tenho tido muitas difficuldades n'estes ultimos tempos. Sociedades, subscripções, maçonaria... Custa-lhe crêr, não é? Naturalmente: um proprietario. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os concertos, as pennas d'agua, as decimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da agua...

—Tivesse eu um pote! suspirou Custodio.

—Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despezas, e até credores... Creia o senhor que tambem eu tenho credores.

—Nem cem mil réis!

—Nem cem mil réis, peza-me dizel-o, mas é a verdade. Nem cem mil réis. Que horas são?

Levantou-se, e veiu ao meio da sala. Custodio veiu tambem, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabellião não tivesse ao menos cem mil réis. Quem é que não tem cem mil réis consigo? Cogitou uma scena pathetica, mas o cartorio abria para a rua; seria ridiculo. Olhou para fóra. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, á porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguez examinava o panno com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cincoenta mil réis podia dar-lhe o tabellião. Custodio sorriu;—não de desdem, não de raiva, mas de amargura e duvida; era impossivel que elle não tivesse cincoenta mil réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo; tudo mentira.

Custodio tirou o lenço, alisou a chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar mixto de esperança e despeito. Viera cerceando as azas á ambição, pluma a pluma; restava ainda uma pennugem curta e fina, que lhe mettia umas velleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relogio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciencia e fastio. Estavam a pingar as cinco; deram, emfim, e o tabellião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custodio viu esse utensilio problematico, apalpou-o com os olhos, invejou a alpaca, invejou a casimira, quiz ser algibeira, quiz ser o couro, a materia mesma do precioso receptaculo. Lá vae ella; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabellião abotoou-se. Nem vinte mil réis! Era impossivel que não levasse alli vinte mil réis, pensava elle; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...

—Prompto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.

Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabellião, um convite ao menos, para jantar; nada; findára tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas. Custodio sentiu toda força d'este logar-commum, e, subito, como um tiro, perguntou ao tabellião se não lhe podia dar ao menos dez mil réis.

—Quer ver?

E o tabellião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil réis.

—Não tenho mais, disse elle; o que posso fazer é repartil-os com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?

Custodio aceitou os cinco mil réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Asia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obsequio, despediu-se até breve,—um até breve cheio de affirmações implicitas. Depois sahiu; o pedinte esvaiu-se á porta do cartorio; o general é que foi por alli abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os inglezes do commercio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão limpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, elle apertava amorosamente os cinco mil réis, residuo de uma grande ambição, que ainda ha pouco sahira contra o sol, n'um impeto de aguia, e ora habita modestamente as azas de frango rasteiro.

FIM DO EMPRESTIMO



A SERENISSIMA REPUBLICA[1]

(CONFERENCIA DO CONEGO VARGAS)

Meus senhores,

Antes de communicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso paiz, deixai que vos agradeça a promptidão com que acudistes ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro tambem,—e fora ingratidão ignoral-o,—que um pouco de sympathia pessoal se mistura á vossa legitima curiosidade scientifica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.

Minha descoberta não é recente; data do fim do anno de 1876. Não a divulguei então,—e, a não ser o Globo, interessante diario d'esta capital, não a divulgaria ainda agora,—por uma razão que achará facil entrada no vosso espirito. Esta obra de que venho fallar-vos, carece de retoques ultimos, de verificações e experiencias complementares. Mas o Globo noticiou que um sabio inglez descobriu a linguagem phonica dos insectos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com anciedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aerea, invento do padre Bartholomeo, é glorificado o nome estrangeiro, emquanto o do nosso patricio mal se póde dizer lembrado dos seus naturaes, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, á face do universo, que muito antes d'quelle sabio, o fóra das ilhas britannicas, um modesto naturalista descobriu cousa identica, e fez com ella obra superior.

Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristoteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regimen social ás aranhas? Aristoteles responderia negativamente, com vós todos, porque é impossivel crer que jámais se chegasse a organisar socialmente esse articulado arisco, solitario, apenas disposto ao trabalho, e difficilmente ao amor. Pois bem, esse impossivel fil-o eu.

Ouço um riso, no meio do sussuro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezaes o gato e a gallinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a gallinha, não zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o somno como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso assucar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos afflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciencia, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não ha duas opiniões. Desde Plinio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só côro de admiração em torno d'esse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso creado destroe em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses juizos, se me sobrasse tempo; a materia, porém, excede o prazo, sou constrangido a abrevial-a. Tenho-os aqui, não todos, mas quasi todos; tenho, entre elles, esta excellente monographia de Buchner, que com tanta subtileza estudou a vida psychica dos animaes. Citando Darwin e Buchner, é claro que me restrinjo á homenagem cabida a dois sabios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as theorias gratuitas e erroneas do materialismo.

Sim, senhores, descobri uma especie araneida que dispõe do uso da falla; colligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organisei-os socialmente. O primeiro exemplar d'essa aranha maravilhosa appareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azues, transversaes, tão rapida nos movimentos, e ás vezes tão alegre, que de todo me captivou a attenção. No dia seguinte vieram mais tres, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chacara. Estudei-as longamente; achei-as admiraveis. Nada, porém, se póde comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma lingua, senhores, nada menos que uma lingua rica e variada, com a sua estructura syntaxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e fórmas onomatopaicas, uma lingua que estou grammaticando para uso das academias, como o fiz summariamente para meu proprio uso. E fil-o, notai bem, vencendo difficuldades asperrimas com uma paciencia extraordinaria. Vinte vezes desanimei; mas o amor da sciencia dava-me forças para arremetter a um trabalho, que hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem.

Guardo para outro recinto a descripção technica do meu arachnide, e a analyse da lingua. O objecto d'esta conferencia é, como disse, resalvar os direitos da sciencia brazileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior á do sabio de Inglaterra. Devo demonstral-o, e para este ponto chamo a vossa attenção.

Dentro de um mez tinha commigo vinte aranhas; no mez seguinte cincoenta e cinco; em Março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente á empreza de as congregar:—o emprego da lingua d'ellas, desde que pude discernil-a um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o beneficio d'esta illusão. Como as acompanhasse com muita attenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus peccados, e fortaleceram-se ainda mais na pratica das virtudes. A flauta tambem foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, ellas são doudas por musica.

Não bastava associal-as; era preciso dar-lhes um governo idoneo. Hesitei na escolha; muitos dos actuaes pareciam-me bons, alguns excellentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma fórma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhal-a. Era-me preciso, ou achar uma fórma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adoptei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma republica, á maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epitheto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições geraes, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado,—o que era metter á prova as aptidões politicas da joven sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os differentes modos eleitoraes da antiga Veneza, figurava o do sacco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Mettiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no sacco, e extrahia-se annualmente um certo numero, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras publicas. Este systema fará rir aos doutores do suffragio; a mim não. Elle exclue os desvarios da paixão, os desazos da inepcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão eximio na fiação de suas teias, o uso do sacco eleitoral era de facil adaptação, quasi uma planta indigena.

A proposta foi acceita. Serenissima Republica pareceu-lhes um titulo magnifico, roçagante, expansivo, proprio a engrandecer a obra popular.

Não direi, senhores, que a obra chegou á perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupillos não são os solarios de Campanella ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não póde trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operario que ceda a outro a lima ou o alvião; elle fará mais e melhor do que as theorias do papel, validas no papel e mancas na pratica. O que posso affirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, elles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciaes á duração de um Estado. Uma d'ellas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciencia de Penelope, segundo vou mostrar vos.

Com effeito, desde que comprehenderam que no acto eleitoral estava a base da vida publica, trataram de o exercer com a maior attenção. O fabrico do sacco foi uma obra nacional. Era um sacco de cinco polegadas de altura e tres de largura, tecido com os melhores fios, obra solida e espessa. Para compol-o foram acclamadas dez damas principaes, que receberam o titulo de mães da republica, além de outros privilegios e fóros. Uma obra-prima, podeis crel-o. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escriptas por um official publico, denominado «das inscripções». No dia da eleição, as bolas são mettidas no sacco e tiradas pelo official das extracções. até perfazer o numero dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.

A eleição fez-se a principio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ella fora viciada, por terem entrado no sacco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléa verificou a exactidão da denuncia, e decretou que o sacco, até alli de tres pollegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do sacco, restringia-se o espaço á fraude, era o mesmo que supprimil-a. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscripto na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do official publico. Este declarou que não se lembrava de ter visto o illustre candidato, mas aecrescentou nobremente que não era impossivel que elle lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distracção. A assembléa, diante de um phenomeno psychologico ineluctavel, como é a distracção, não pôde castigar o official; mas, considerando que a estreiteza do sacco podia dar logar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as tres pollegadas.

N'esse interim, senhores, falleceu o primeiro magistrado, e tres cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas so dous importantes, Hazeroth e Magog, os proprios chefes do partido rectilineo e do partido curvilineo. Devo explicar-vos estas denominações. Como elles são principalmente geometras, é a geometria que os divide em politica. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios rectos, é o partido rectilineo;—outros pensam, ao contrario, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos,—é o partido curvilineo. Ha ainda um terceiro partido, mixto e central, com este postulado:—as teias devem ser urdidas de fios rectos e fios curvos; é o partido recto-curvilineo; e finalmente, uma quarta divisão politica, o partido anti-recto-curvilineo, que fez taboa rasa de todos os principios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não ha linhas de especie alguma. Como a geometria apenas puderia dividil-os, sem chegar a apaixonal-os, adoptaram uma symbolica. Para uns, a linha recta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constancia, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfidia, são perfeitamente curvos. Os adversarios respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modestia e da humildade; ao contrario, a ignorancia, a presumpção, a toleima, a parlapatice, são rectas, duramente rectas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exacta copia do mundo pliysico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.

Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas sahiram do sacco, é verdade, mas foram inutilisadas, a do primeiro por faltar a primeira lettra do nome, a do segundo por lhe faltar a ultima. O nome restante e triumphante era o de um argentario ambicioso, politico obscuro, que subiu logo á poltrona ducal, com espanto geral da republica. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o official das inscripções intencionalmente viciara a orthographia de seus nomes. O official confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples ellipse; delicto, se o era, puramente litterario. Não sendo possivel perseguir ninguem por defeitos de ortographia ou figuras de rhetorica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o sacco seria feito de um tecido de malhas, atravez das quaes as bolas pudessem ser lidas pelo, publico, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscripções.

Infelizmente, senhores, o commentario da lei é a eterna malicia. A mesma porta aberta á lealdade serviu á astucia de um certo Nabiga, que se conchavou com o official das extracções, para haver um logar na assembléa. A vaga era uma, os candidatos tres; o official extrahiu as bojas com os olhos no complice, que só deixou, de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condemnar a idéa das malhas. A assembléa, com exemplar paciencia, restaurou o tecido espesso do regimen anterior; mas, para evitar outras ellipses, decretou a vallidação das bolas cuja inscripção estivesse incorrecta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscripto o proprio nome do candidato.

Este novo estatuto deu logar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um collector de esportulas, funccionario encarregado de cobrar as rendas publicas, sob a fórma de esportulas voluntarias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extrahida foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a ultima letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da iei, que o eleito era o proprio e unico Nebraska da republica. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extrahida não trazia o nome de Nebraska, mas o delle. O juiz de paz deferiu ao peticionario. Veiu então um grande philologo,—talvez o primeiro da republica, além de bom metaphysico, e não vulgar mathemathico,—o qual provou a cousa nestes termos:

—Em primeiro logar, disse elle; deveis notar que não é fortuita a ausencia da ultima lettra do nome Nebraska. Porque motivo foi elle escripto incompletamente? Não se póde dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a ultima lettra, um simples a. Carencia de espaço? Tambem não; vede; ha ainda espaço para duas ou tres syllabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não póde ser outra senão chamar a attenção do leitor para a lettra k, ultima escripta, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um effeito mental, que nenhuma lei destruiu, a lettra reproduz-se no cerebro de dois modos, a fórma graphica, e a fórma sonica: k e ca. O defeito, pois, no nome escripto, chamando os olhos para a lettra final, incrusta desde logo no cerebro esta primeira syllaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espirito é ler o nome todo; volta-se ao principio, á inicial ne, do nome Nebrask.Cané.—Resta a syllaba do meio, bras, cuja reducção a esta outra syllaba ca, ultima do nome Caneca, é a cousa mais demonstravel do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessario ao entendimento da significação espiritual ou philosophica da syllaba, suas origens e effeitos, phases, modificações, consequencias logicas e syntaxicas, deductivas ou inductivas, symbolicas e outras. Mas, supposta a demonstração, ahi fica a ultima prova, evidente clara, da minha affirmação primeira pela annexação da syllaba ca ás duas Cane, dando este nome Caneca.

A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma innovação, o córte simultaneo de meia pollegada na altura e outra meia na largura do sacco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o sacco foi restituido ás dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a fórma triangular. Comprehendeis que esta fórma trazia consigo uma consequencia: ficavam muitas bolas no fundo. D'ahi a mudança para a fórma cylindrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triangulo, e então adoptou-se a fórma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desapparecer, e o restante terá egual destino, não inteiramente, de certo, pois a perfeição não é d'este mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais circumspectos cidadãos da minha republica, Erasmus, cujo ultimo discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a ultima resolução legislativa ás dez damas, incumbidas de urdir o sacco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fabula de Penelope, que fazia e desfazia a famosa teia, á espera do esposo Ulysses.

—Vós sois a Penelope da nossa republica, disse elle ao terminar; tendes a mesma castidade, paciencia e talentos. Refazei o sacco, amigas minhas, refazei o sacco, até que Ulysses, cançado de dar ás pernas, venha tomar entre nós o logar que lhe cabe. Ulysses é a Sapiencia.

[1]Este escripto, publicado primeiro na Gazeta de Noticias, como outros do livro, é o unico em que ha um sentido restricto:—as nossas alternativas eleitoraes. Creio que terão entendido isso mesmo, atravez da fórma allegorica.

FIM DA SERENISSIMA REPUBLICA



O ESPELHO

ESBOÇO DE UMA NOVA THEORIA DA ALMA HUMANA

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, varias questões de alta transcendencia, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espiritos. A casa ficava no morro de Santa Thereza, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se mysteriosamente com o luar que vinha de fóra. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrellas pestanejavam, atravez de uma atmosphera limpida e socegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metaphysicas, resolvendo amigavelmente os mais arduos problemas do universo.

Porque quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que fallavam; mas, além d'elles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja esportula no debate não passava de um o outro resmungo de approvação. Esse homem tinha a mesma edade dos companheiros, entre quarenta e cincoenta annos, era provinciano, capitalista, intelligente, não sem instrucção, e, ao que parece, astuto e caustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão era a fórma polida do instincto batalhador,. que jaz no homem, como uma herança bestial; e acerescentava que os seraphins e os cherubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como désse esta mesma resposta maquella noite, contestou-lh'a um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava elle) reflectiu um instante, e respondeu:

—Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, succedeu que este casmurro usou da palavra, e não dous ou tres minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veiu a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o accordo, mas a mesma discussão, tornou-se difficil, senão impossivel, pela multiplicidade de questões que se deduziram do tronco principal, e um pouco, talvez, pela inconsistencia dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião,—uma conjectura, ao menos.

—Nem conjectura, nem opinião, redarguiu elle; uma ou outra póde dar logar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que resalta a mais clara demonstração acerca da materia de que se trata. Em primeiro logar, não ha uma só alma, ha duas...

—Duas?

—Nada menos de duas almas. Cada creatura humana traz duas almas comsigo: uma que olha de dentro para fóra, outra que olha de fóra para dentro... Espantem-se á vontade; pódem ficar de bocca aberta, dar de hombros, tudo; não admitto replica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior póde ser um espirito, um fluido, um homem, muitos homens, um objecto, uma operação. Ha casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa;—e assim tambem a polka, o voltarete, um livro, uma machina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o officio dessa segunda alma é transmittir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metaphysicamente fallando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existencia; e casos ha, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existencia inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquelle judeu eram os seus ducados; perdel-os equivalia a morrer, «Nunca mais verei o meu ouro, diz elle a Tubal; é um punhal que me enterras no coração». Vejam bem esta phrase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para elle. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

—Não?

—Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não alludo a certas almas absorventes, como a patria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de Cesar e de Cromwell. São almas energicas e exclusivas; mas ha outras, embora energicas, de natureza mudavel. Ha cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros annos, foi um chocalho ou um cavallinho de páu, e mais tarde uma provedoria de irmandade, supponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora,—na verdade, gentilissima,—que muda de alma exterior cinco, seis vezes por anno. Durante a estação lyrica é a opera; cessando a estação, a alma exterior substitue-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petropolis...

—Perdão; essa senhora quem é?

—Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião... E assim outros muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado d'essas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episodio de que lhes fallei. Um episodio dos meus vinte e cinco annos...

Os quatro companheiros, anciosos de ouvir o caso promettido, esqueceram a controversia. Santa curiosidade! tu não és só a ama da civilisação, és tambem o pomo da concordia, fructa divina, de outro sabor que não aquelle pomo da mythologia. A sala, até ha pouco ruidosa de physica e metaphysica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memorias. Eis aqui como elle começou a narração:

—Tinha vinte e cinco annos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na villa, note-se bem, houve alguns despeitados; chôro e ranger de dentes, como na Escriptura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perderam. Supponho tambem que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distincção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam commigo, e passaram a olhar-me de revez, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viuva do capitão Peçanha, que morava a muitas leguas da villa, n'um sitio escuso e solitario, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ella e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pagem, que d'ahi á dias tornou á villa, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sitio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mez, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me tambem o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a provincia não havia outro que me puzesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãosinho, como d'antes; e ella abanava a cabeça, bradando que não, que era o «senhor alferes». Um cunhado d'ella, irmão do finado Peçanha, que alli morava, não me chamava de outra maneira. Era o «senhor alferes», não por gracejo, mas a serio, e á vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor logar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o enthusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnifica, que destoava do resto da casa, cuja mobilia era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdára da mãe, que o comprára a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia n'isso de verdade; era a tradicção. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos angulos superiores da moldura, uns enfeites de madreperola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

—Espelho, grande?

—Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do proposito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o «senhor alferes» merecia muito mais. O certo é que todas essas cousas, carinhos, attenções, obsequios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

—Não.

—O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse á outra; ficou-me uma parte minima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era d'antes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortezia e os rapapés da casa, tudo o que me fallava do posto, nada do que me fallava do homem. A unica parte do cidadão que ficou commigo foi aquella que entendia com o exercicio da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

—Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

—Vai entender. Os factos explicarão melhor os sentimentos; os factos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um philosopho antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos factos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciencia do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dôres humanas, as alegrias humanas se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apathica ou um sorriso de favor. No fim de tres semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma noticia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente d'alli a cinco leguas, estava mal e á morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ella, e a mim que tomasse conta do sitio. Creio que, se não fosse a afflicção, disporia o contrario; deixaria o cunhado, e iria commigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande oppressão, alguma cousa semelhante ao effeito de quatro paredes de um carcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espiritos boçaes. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciencia mais debil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortezias, que de certa maneira compensava a affeição dos parentes e a intimidade domestica interrompida. Notei mesmo, n'aquella noite, que elles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de minuto a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô alferes ha de ser coronel; nhô alferes ha de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e prophecias, que me deixou extatico. Ah! perfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

—Matal-o?

—Antes assim fosse.

—Cousa peior?

—Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento proprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguem, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum folego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguem, um molequinho que fosse. Gallos e gallinhas tão sómente, um par de mulas, que philosophavam a vida, sacudindo as moscas, e tres bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era peior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do damno causado á tia Marcolina; fiquei tambem um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ella, para lhe dar a triste noticia, ou ficar tomando conta da casa. Adoptei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia sómente augmentar a dor da mãe, sem remedio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse n'aquelle dia ou no outro, visto que tinham sahido havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestigio d'elle; e á tarde comecei a sentir uma sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a acção nervosa, e não tivesse consciencia da acção muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquella semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de seculo a seculo, no velho relogio da sala, cuja pendula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote continuo do eternidade. Quando, muitos annos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever!—For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me d'aquelles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relogio da tia Marcolina:—Never, for ever!—For ever, never! Não eram golpes de pendula, era um dialogo do abysmo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silencio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguem nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguem em parte nenhuma... Riem-se?

—Sim, parece que tinha um pouco de medo.

—Oh! fôra bom se eu podesse ter medo! Viveria. Mas o caracteristico d'aquella situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicavel. Era como um defuncto andando, um somnambulo, um boneco mecanico. Dormindo, era outra cousa. O somno dava-me allivio, não pela razão commum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse phenomeno:—o somno, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava actuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da familia e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e promettia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando accordava, dia claro, esvaia-se com o somno, a consciencia do meu ser novo e unico,—porque a alma interior perdia a acção exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu sahia fóra, a um lado e outro, a ver se descobria algum signal de regresso. Sœur Anne, sœur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, cousa nenhuma; tal qual como na lenda franceza. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janellas, assobiava. Em certa occasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um artigo politico, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e phrases soltas, para intercalar no estylo. Mas o estylo, como a tia Marcolina, deixava-se estar. Sœur Anne, sœur Anne... Cousa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

—Mas não comia?

—Comia mal, fructas, farinha, conservas, algumas raizes tostadas ao fogo, mas supportaria tudo alegremente, se não fora a terrivel situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, lyras de Gonzaga, oitavas de Camões, decimas, uma anthologia em trinta volumes. Ás vezes fazia gymnastica; outras dava beliscões nas pernas; mas o effeito era só uma sensação physica de dôr ou de cançaço, e mais nada. Tudo silencio, um silencio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pendula. Tic-tac, tic-tac...

—Na verdade, era de enlouquecer.

—Vão ouvir cousa peior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhára uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, n'aquella casa solitaria; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradicção humana, porque no fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O proprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nitida e inteira, mas vaga, esfumada, diffusa, sombra de sombra. A realidade das leis physicas não permitte negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; attribui o phenomeno á excitação nervosa em que andava; receiei ficar mais tempo, e enlouquecer.—Vou-me embora, disse commigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando commigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrepito, affligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma cousa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma diffusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicavel, por um impulso sem calculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéa...

—Diga.

—Estava a olhar para o vidro, com uma persistencia de desesperado, contemplando as proprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

—Mas, diga, diga.

—Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, apromptei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, emfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sitio, dispersa e fugida com os escravos, eil-a recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco emerge de um lethargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objectos, mas não conhece individualmente uns nem outros; emfim, sabe que este é Fulano, aquelle é Sicrano; aqui está uma cadeira, alli um sofá. Tudo volta ao que era antes do somno. Assim foi commigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um automato, era um ente animado. D'ahi em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, tres horas, despia-me outra vez. Com este regimen pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

FIM DO ESPELHO



UMA VISITA DE ALCIBIADES[1]

CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE POLICIA DA CORTE.

Corte, 20 de setembro de 1875.

Desculpe V. Ex. o tremido da lettra e o desgrenhado do estylo; entendel-os-ha d'aqui a pouco.

Hoje, á tardinha, acabado o jantar, em quanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarcho. V. Ex., que foi meu companheiro de estudos, ha de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex. lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e succedeu o que sempre se dá commigo quando leio alguma cousa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da acção ou da obra. Depois de jantar é excellente. Dentro de pouco acha-se a gente n'uma via romana, ao pé de um portico grego ou na loja de um grammatico. Desapparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão litteraria.

Foi o que se deu hoje. A pagina aberta acertou de ser a vida de Alcibiades. Deixei-me ir ao sabor da loquella attica; d'ahi a nada entrava nos jogos olympicos, admirava o mais guapo dos athenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os proprios sentidos. Imagine V. Ex. se vivi! Mas, o moleque entrou e accendeu o gaz; não foi preciso mais para fazer voar toda a archeologia da minha imaginação. Athenas volveu á historia, em quanto os olhos me cabiam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então reflecti commigo:

—Que impressão daria ao illustre atheniense o nosso vestuario moderno?

Sou espiritista desde alguns mezes. Convencido de que todos os systemas são puras nihilidades, resolvi adoptar o mais recreativo d'elles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas tambem util á solução dos problemas historicos; é mais summario evocar o espirito dos mortos, do que gastar as forças criticas, e gastal-as em pura perda, porque não ha raciocinio nem documento que nos explique melhor a intenção de um acto do que o proprio autor do acto. E tal era o meu caso d'esta noite. Conjecturar qual fosse a impressão de Alcibiades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha propria habilidade. Determinei portanto, evocar o atheniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

E aqui começa o extraordinario da aventura. Não se demorou Alcibiades em acudir ao chamado; dous minutos depois estava alli, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpavel que eu cuidára ter evocado pelos methodos da nossa escola; era o proprio Alcibiades, carne e osso, vero homem, grego authentico, trajado á antiga, cheio d'quella gentileza e desgarre com que usava arengar ás grandes assembléas de Athenas, e tambem, um pouco, aos seus patáus. V. Ex., tão sabedor da historia, não ignora que tambem houve patáus em Athenas; sim, Athenas tambem os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex. que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse alli, em minha casa, não a sombra de Alcibiades, mas o proprio Alcibiades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquillo não fosse mais do que o effeito de uma digestão mal rematada, um simples effluvio do chylo, através da luneta de Plutarcho; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

—Que me queres? perguntou elle.

Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto fallava e fallava grego, o mais puro attico. Era elle, não havia duvidar que era elle mesmo, um morto de vinte seculos, restituido á vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Elle repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se n'uma poltrona. Como eu estivesse frio e tremulo (ainda o estou agora) elle que o percebeu, fallou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o socego e a confiança. Habil como outr'ora! Que mais direi a V. Ex.? No fim de poucos minutos conversavamos os dous, em grego antigo, elle repotreado e natural, eu pedindo a todos as santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessario,—de um incendio.

Escusado é dizer a V. Ex. que abri mão da idéa de o consultar ácerca do vestuario moderno; pedira um espectro, não um homem «de verdade», como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que elle queria; pediu-me noticias de Athenas, dei-lh'as; disse-lhe que ella era emfim a cabeça de uma só Grecia, narrei-lhe a dominação musulmana, a independencia, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha bocca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que á porta, do outro mundo afrouxavam muito os interesses d'este. Não vira Botzaris nem lord Byron,—em primeiro logar, porque é tanta e tantissima a multidão de espiritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo logar, porque elles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de indole, costume e profissão: assim é que elle Alcibiades, anda no grupo dos politicos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em seguida pediu-me noticias actuaes; relatei-lhe o que sabia, em resumo; fallei-lhe do parlamento hellenico e do methodo alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patricios, imitam Disraeli e Gladstone, revesando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso. Elle, que foi um magnifico orador, interrompeu-me:

—Bravo, athenienses!

Se entro n'estas minucias é para o fim de nada omittir do que possa dar a V. Ex. o conhecimento exacto do extraordinario caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibiades escutava-me com avidez; accrescentarei que era esperto e arguto; entendia as cousas sem largo dispendio de palavras. Era tambem sarcastico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral d'ella, mostrava-se simples, attento, correcto, sensivel e digno. E gamenho, note V. Ex., tão gamenho como outr'ora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas d'este seculo, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saia de certas attitudes esculpturaes.

—Vá, continúa, dizia-me elle, quando eu parava de lhe dar noticias.

Mas eu não podia mais. Entrado no inextricavel, no maravilhoso, achava tudo possivel, não atinava porque razão, assim, como elle vinha ter commigo ao tempo, não iria eu ter com elle á eternidade. Esta idéa gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o ultimo dos sarcasmos. Se pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

—Um baile? Que cousa é um baile?

Expliquei-lh'o.

—Ah! ver dansar a pyrrhica!

—Não, emendei eu, a pyrrhica já lá vai. Cada seculo, meu caro Alcibiades, muda de dansas como muda de ideias. Nos já não dansamos as mesmas cousas do seculo passado; provavelmente o seculo XX não dansará as d'este. A pyrrhica. foi-se, com os homens de Plutarcho e os numes de Hesiodo.

—Com os numes?

Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabára, que as academias do seculo passado ainda lhe deram abrigo, mas sem-convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcadicas,

Evohé! padre Bassareu!
Evohé! etc.

honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, accrescentei, um ou outro poeta, um o outro prosador allude aos restos da theogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a sciencia reduziu todo o Olympo a uma symbolica. Morto, tudo morto.

—Morto Zeus?

—Morto.

—Dyonisos, Aphrodita?...

—Tudo morto.

O homem de Plutarcho levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse comsigo, imitando o outro:—Ah! se lá estou com os meus athenienses!—Zeus, Dyonisos, Aphrodita... murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que elle fôra uma vez accusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo d'onde vinha aquella indignação posthuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me,—um devoto do grego!—esquecia-me que elle era tambem um refinado hypocrita, um illustre dissimulado. E quasi não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibiades, detendo-se repentinamente declarou-me que iria ao baile commigo.

—Ao baile? repeti attonito.

—Ao baile, vamos ao baile.

Fiquei atterrado, disse-lhe que não, que não era possivel, que não o admittiriam, com aquelle trajo; pareceria doudo; salvo se elle queria ir lá representar alguma comedia de Aristophanes, accrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixal-o, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava alli com as minhas calças, os meus sapatos e o meu seculo.

—Quero ir ao baile, repetiu elle. Já agora não vou sem comparar as dansas.

—Meu caro Alcibiades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos athenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossivel.

—Porque?

—Já disse; imaginarão que és um doudo ou um comediante, porque essa roupa...

—Que tem? A roupa muda-se. Irei á maneira do seculo. Não tens alguma roupa que me emprestes?

Ia a dizer que não; mas occorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.

—Pois bem, tornou elle levantando-se, irei á maneira do seculo. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

Levantei-me tambem, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para ellas com os olhos arregalados, a bocca aberta; emfim, perguntou por que motivo trazia aquelles canudos de panno. Respondi que por maior commodidade; accrescentei que o nosso seculo, mais recatado e util do que artista, determinára trajar de um modo compativel com o seu decóro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibiades. Creio que o lisongeei com isto; elle sorriu e deu de hombros.

—Emfim!

Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, ás pressas. Alcibiades sentou-se mollemente n'um divan, não sem elogial-o, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros.—Eu vestia-me, como digo, ás pressas, ancioso por sahir á rua, por metter-me no primeiro tilbury que passasse...

—Canudos pretos! exclamou elle.

Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escarneo, o que offendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex., ainda que o nosso tempo nos pareça digno de critica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar d'elle ás nossas barbas. Não respondi ao atheniense; franzi um pouco o sobr'olho e continuei a abotoar os suspensorios. Elle perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...

—Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do córte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.

E vendo que elle abanava a cabeça:

—Meu caro, disse-lhe, tu pódes certamente exigir que o Jupiter Olympico seja o emblema eterno da majestade: é o dominio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra cousa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e bello,—bello á nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rhapsodas recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os philosophos as suas philophias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...

—Desgraçado! bradou elle atirando-se a mim.

Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma illusão. Como eu passasse a gravata á volta do pescoço e tratasse de dar o laço. Alcibiades suppoz que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pallido, tremulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usassemos tambem gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que elle consentiu em restituir-m'a. Atei-a emfim, depois vesti o collete.

—Por Aphrodita! exclamou elle. És a cousa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite—uma noite com tres estrellas apenas—continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar immesamente melancholico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós eramos mais alegres; viviamos...

Não pode concluir a phrase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do atheniense foi indescriptivel. Cahiram-lhe os braços, ficou suffocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex. que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a sabida.

—Estás completo? perguntou-me elle.

—Não: falta o chapéu.

—Oh! venha alguma cousa que possa corrigir o resto! tornou Alcibiades com voz supplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegancia que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outra par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo d'essa cor enfadonha e negativa? Não não posso crel-o! Venha alguma cousa que corrija isso. O que é que falta, dizes tu?

—O chapéo.

—Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci; fui d'alli ao cabide, despendurei o chapéu, e pul-o na cabeça. Alcibiades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao illustre atheniense, para levantal-o, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex. se digne de expedir suas respeitaveis ordens para que o cadaver seja transportado ao necroterio, e se proceda ao corpo de delicto, relevando-me de não ir pessoalmente á casa de V. Ex. agora mesmo (dez da noite) em attenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.

[1]Este escripto teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde, não aproveitando mais do que a ideia. O primeiro foi dado com um pseudonymo e passou despercebido.

FIM DE UMA VISITA DE ALCIBIADES



VERBA TESTAMENTARIA

«... Item, é minha ultima vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, á rua da Alfandega. Desejo que elle tenha conhecimento d'esta disposição, que tambem será publica. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno da distincção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais honrados da nossa terra...»

Cumpriu-se á risca esta verba testamentaria. Joaquim Soares fez o caixão em que foi mettido o corpo do pobre Nicoláu B. de C.; fabricou-o elle mesmo, con amore; e, no fim, por um movimento cordial, pediu licença para não receber nenhuma renumeração. Estava pago; o favor do defunto era em si mesmo um premio insigne. Só desejava uma cousa: a copia authentica da verba. Deram lh'a; elle mandou-a encaixilhar e pendurar de um prego, na loja. Os outros fabricantes de caixões, passado o assombro, chamaram que o testamento era um desproposito. Felizmente,—e esta é uma das vantatagens do estado social,—felizmente, todas as demais classes adiaram que aquella mão, saindo do abysmo para abençoar a obra de um operario modesto, praticára uma acção rara e magnanima. Era em 1855; a população estava mais conchegada; não se fallou de outra cousa. O nome do Nicoláu reboou por muitos dias na imprensada corte, d'onde passou á das provincias. Mas a vida universal é tão variada, os successos accumulam-se em tanta multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a memoria dos homens é tão fragil, que um dia chegou em que a acção de Nicoláu mergulhou de todo no olvido.

Não venha restaural-a. Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escripto. Obra de lapis e esponja. Não, não venho restaural-a. Ha milhares de acções tão bonitas, ou ainda mais bonitas do quo a do Nicoláu, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a verba testamentaria não é um effeito sem causa; venho mostrar uma das maiores curiosidades morbidas d'este seculo.

Sim, leitor amado, vamos entrar em plena pathologia. Esse menino que ahi vês, nos fins do seculo passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicoláu sessenta e oito annos), esse menino não é um producto são, não é um organismo perfeito.—Ao contrario, desde os mais tenros annos, manifestou por actos reiterados que ha n'elle algum vicio interior, alguma falha organica. Não se póde explicar de outro modo a obstinação com que elle corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são eguaes aos d'elle, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se comprehende que, nos casos em que o brinquedo é unico, ou somente raro, o joven Nicoláu console a victima com dons ou tres pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é obscuro. Culpa do pae não póde ser. O pae era um honrado negociante ou commissario (a maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome do commerciantes, dizia o marquez de Lavradio, nada são que uns simples commissarios), que viveu com certo luzimento, no ultimo quartel do seculo, homem rispido, austero, que admoestava o filho, e, sendo necessario, castigava-o. Mas nem admoestações, nem castigos, valiam nada. O impulso interior do Nicoláu era mais efficaz do que todos os bastões paternos; e, uma ou duas vezes por semana, o pequeno reincidia no mesmo delicto. Os desgostos da familia eram profundos. Deu-se mesmo um caso, que, por suas gravissimas consequencias, merece ser contado.

O vice-rei, que era então o conde de Rezende, andava preoccupado com a necessidade de construir um caes na praia de D. Manuel. Isto, que seria hoje um simples episodio municipal, era n'aquelle tempo, attentas as proporções escassas da cidade, uma empreza importante. Mas o vice-rei não tinha recursos; o cofre publico mal podia acudir ás urgencias ordinarias. Homem de estado, e provavelmente philosopho, engendrou um expediente não menos suave que proficuo: distribuir, a troco de donativos pecuniarios, postos de capitão, tenente e alferes. Divulgada a resolução, entendeu o pae do Nicoláu que era occasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do seculo, ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina brahmanica. Com effeito, está nas leis de Manú, que dos braços de Brahma nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores e commerciantes; o pae do Nicoláu, adquirindo o despacho de capitão, corrigia esse ponto da anatomia gentilica. Outro commerciante, que com elle competia em tudo, embora familiares e amigos, apenas teve noticia do despacho, foi tambem levar a sua pedra ao caes. Desgraçadamenteu o despeito de ter ficado atraz alguns dias, suggeriu-llie um arbitrio de máu gosto e, no nosso caso, funesto; foi assim que elle pediu ao vice-rei outro posto de official do caes (tal era o nome dado aos agraciados por aquelle motivo) para um filho de sete annos. O vice-rei hesitou; mas o pretendente, além de duplicar o donativo, metteu grandes empenhos, e o menino saiu nomeado alferes. Tudo correu em segredo; o pae de Nicoláu só teve noticia do caso no domingo proximo, na egreja do Carmo, ao ver os dous, pae e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe metteram no corpo. Nicoláu, que tambem alli estava, fez-se livido; depois, n'um impeto, atirou-se sobre o joven alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os paes pudessem acudir. Um escandalo. O reboliço do povo, a indignação dos devotos, as queixas do aggredido, interromperam por alguns instantes as ceremonias ecclesiasticas. Os paes trocaram algumas palavras acerbas, fóra, no adro, e ficaram brigados para todo o sempre.

—Este rapaz ha de ser a nossa desgraça! bradava o pae de Nicoláu, em casa, depois do episodio.

Nicoláu apanhou então muita pancada, curtiu muita dor, chorou, soluçou; mas de emenda cousa nenhuma. Os brinquedos dos outros meninos não ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer ás roupas. Os meninos mais ricos do bairro não sabiam fora senão com as mais modestas vestimentas caseiras, unico modo de escapar ás unhas de Nicoláu. Com o andar do tempo, estendeu elle a aversão ás proprias caras, quando eram bonitas, ou tidas como taes. A rua em que elle residia, contava um sem numero de caras quebradas, arranhadas, conspurcadas. As cousas chegaram a tal ponto, que o pae resolveu trancal-o em casa durante uns tres ou quatro mezes. Foi um palliativo, e, como tal, excellente. Emquanto durou a reclusão, Nicoláu mostrou-se nada menos que angelico; fóra d'aquelle séstro morbido, era meigo, docil, obediente, amigo da familia, pontual nas rezas. No fim dos quatro mezes, o pae soltou-o; era tempo de o metter com um professor de leitura e grammatica.

—Deixe-o commigo, disse o professor; deixe-o commigo, e com esta (apontava para a palmatoria)... Com esta, é duvidoso que elle tenha vontade de maltratar os companheiros.

Frivolo! tres vezes frivolo professor! Sim, não ha duvida, que elle conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicoláu; mas em que é que este sarou da molestia? Ao contrario, obrigado a conter-se, a engolir o impulso, padecia dobrado, fazia-se mais livido, com reflexos de verde bronze; em certos casos, era compellido a voltar os olhos ou fechal-os, para não arrebentar, dizia elle. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fóra, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, odios, taes eram os fructos da vida, para elle, além das dores crueis que padecia, e que a familia teimava em não entender. Se accrescentarmos que elle não pôde estudar nada seguidamente, mas a troncos, e mal, como os vagabundos comem, nada fixo, nada methodico, teremos visto algumas das dolorosas consequencias do facto morbido, occulto e desconhecido. O pae, que sonhava para o filho a Universidade, vendo-se obrigado a estrangular mais essa illusão, esteve prestes a amaldiçoal-o; foi a mãe que o salvou.

Saiu um seculo, entrou outro, sem desapparecer a lesão do Nicoláu. Morreu-lhe o pae em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um medico hollandez, treze mezes depois. Nicoláu passou a viver só. Tinha vinte e tres annos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais gentil de feições, ou portador de algum collete especial, sem padecer uma dor violenta, tão violenta, que o obrigava ás vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha occasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quasi imperceptivel de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicoláu ficava então rispido; em casa achava tudo máu, tudo incommodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se tambem, e perseguia os cães, a pontapés; não socegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Emfim dormia; e ainda bem que dormia. O somno reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarcha, beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por elles, dando-lhes do melhor que tinha, chamando aos escravos as cousas mais familiares e ternas. E tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da vespera, e acudiam ás vozes d'elle obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o outro.

Um dia, estando elle em casa da irmã, perguntou-lhe esta por que motivo não adoptava uma carreira qualquer, alguma cousa em que se oecupasse, e...

—Tens razão, vou ver, disse elle.

Interveiu o cunhado e opinou por um emprego na diplomacia. O cunhado principiava a desconfiar de alguma doença e suppunha que a mudança de clima bastava a restabelecel-o. Nicoláu arranjou uma carta de apresentação, e foi ter com o ministro de estrangeiros. Achou-o rodeado de alguns officiaes da secretaria, prestes a ir ao paço, levar a noticia da segunda quéda de Napoleão, noticia que chegára alguns minutos antes. A figura do ministro, as circumstancias do momento, as reverencias dos officiaes, tudo isso deu um tal rebate ao coração do Nicoláu, que elle não pôde encarar o ministro. Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da unica em que o conseguiu, fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguem, ou só uma sombra, um vulto, que lhe doia nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando verde. Nicoláu recuou, estendeu a mão tremula ao reposteiro, e fugiu.

—Não quero ser nada! disse elle á irmã, chegando á casa; fico com vocês e os meus amigos.

Os amigos eram os rapazes mais antipathicos da cidade, vulgares e infimos. Nicoláu escolhera-os de proposito. Viver segregado dos principaes era para elle um grande sacrificio; mas, como teria de padecer muito mais vivendo com elles, tragava a situação. Isto prova que elle tinha um certo conhecimento empirico do mal e do palliativo. A verdade é que, com esses companheiros, desappareciam todas as perturbações physiologicas do Nicoláu. Elle fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além d'isso, não só elles lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, senão deliciosa, tranquilla; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas do mundo, em attitudes captivas, ou com uma certa familiaridade inferior. Nicoláu amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes restituo a saúde; acariciva-as paternal mente, dava-lhes o louvor abundante e cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuia-lhes mimos, abria-lhes a alma...

Veiu o grito do Ypiranga; Nicoláu metteu-se na politica. Em 1823 vamos achal-o na Constituinte. Não ha que dizer ao modo por que elle cumpriu os deveres do cargo. Integro, desinteressado, patriota, não exercia de graça essas virtudes publicas, mas á custa de muita tempestade moral. Póde-se dizer, methaphoricamente, que a frequencia da camara custava-lhe sangue precioso. Não era só porque os debates lhe pareciam insupportaveis, mas tambem porque lhe era difficil encarar certos homens, especialmente em certos dias. Montezuma, por exemplo, parecia-lhe balofo, Vergueiro, massudo, os Andradas, execraveis. Cada discurso, não só dos principaes oradores, mas dos secundarios, era para o Nicoláu verdadeiro supplicio. E, não obstante, firme, pontual. Nunca a votação o achou ausente; nunca o nome delle soou sem echo pela augusta sala. Qualquer que fosse o seu desespero, sabia conter-se e pôr a idéa da patria acima do allivio proprio. Talvez applaudisse in petto o decreto da dissolução. Não affirmo; mas ha bons fundamentos para crer que o Nicoláu, apezar das mostras exteriores, gostou de ver dissolvida a assembléa. E se essa conjectura é verdadeira, não menos o será esta outra;—que a deportação de alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos publicos, veiu aguar-lhe aquelle prazer. Nicoláu, que padecera com os discursos delles, não menos padeceu com o exilio, posto lhes désse um certo relevo. Se elle também fosse exilado!

—Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.

—Não tenho noiva.

—Arranjo-lhe uma. Valeu?

Era um plano do marido. Na opinião d'este, a molestia do Nicoláu estava descoberta; era um verme do baço, que se nutria da dor do paciente, isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns factos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substancia chimica propria a destruil-o, restava o recurso de obstar á secreção, cuja ausencia daria egual resultado. Portanto, urgia casar o Nicoláu, com alguma moça bonita e prendada, separal-o do povoado, mettel-o em alguma fazenda, para onde levaria a melhor baixella, os melhores trastes, os mais reles amigos, etc.

—Todas as manhãs, continuou elle, receberá o Nicoláu um jornal que vou mandar imprimir com o unico fim de lhe dizer as cousas mais agradaveis do mundo, e dizel-as nominalmente, recordando os seus modestos, mas proficuos trabalhos da Constituinte, e attribuindo-lhe, muitas aventuras namoradas, agudezas de espirito, rasgos de coragem. Já fallei ao almirante hollandez para consentir que, de quando em quando, vá ter com o Nicoláu algum dos nossos officiaes dizer-lhe que não podia voltar para a Haya sem a honra de contemplar um cidadão tão eminente e sympathico, em quem se reunem qualidades raras, e, de ordinario, dispersas. Você, se puder alcançar de alguma modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicoláu em um chapeu ou mantelete, ajudará nmito a cura de seu mano. Cartas amorosas anonymas, enviadas pelo correio, são um recurso efficaz... Mas comecemos pelo principio, que é casal-o.

Nunca um plano foi mais conscienciosamente executado. A noiva escolhida era a mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da capital. Casou-os o proprio bispo. Recolhido á fazenda, foram com elle sómente alguns de seus mais triviaes amigos; fez-se o jornal, mandaram-se as cartas, peitaram-se as vistas. Durante tres mezes tudo caminhou ás mil maravilhas. Mas a natureza, apostada era lograr o homem, mostrou ainda desta vez que ella possue segredos inopinaveis. Um dos meios de agradar ao Nicoláu era elogiar a belleza, a elegancia e as virtudes da mulher; mas a molestia caminhara, e o que parecia remedio excellente foi simples aggravação do mal. Nicoláu, ao fim de certo tempo, achava ociosos e excessivos tantos elogios á mulher, e bastava isto a impaciental-o, e a impaciencia a produzir-lhe a fatal secreção. Parece masmo que chegou ao ponto de não poder encaral-a muito tempo, e a encaral-a mal; vieram algumas rixas, que seriam o principio de uma separação, se ella não morresse d'ahi a pouco. A dor do Nicoláu foi profunda e verdadeira; mas a cura interrompeu-se logo, porque elle desceu ao Rio de Janeiro, onde o vamos achar, tempos depois, entre os revolucionarios de 1831.

Comquanto pareça temerario dizer as causas que levaram o Nicoláu para o campo da Acclamação, na noite de 6 para 7 de abril, penso que não estará longe da verdade quem suppuzer que—foi o raciocinio de um atheniense celebre e anonymo. Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do imperador, tinham enchido as medidas ao Nicoláu. Esse homem, que inspirava enthusiasmos e odios, cujo nome era repetido onde quer que o Nicoláu estivesse, na rua, no theatro, nas casas alheias, tornou-se uma verdadeira perseguição morbida, d'ahi o fervor com elle metteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um allivio. Verdade é que a Regencia o achou dentro de pouco tempo ontre os seus adversarios; e ha quem affirme que elle se filiou ao partido caramurú ou restaurador, posto não ficasse prova do acto. O que é certo é que a vida publica do Nicoláu cessou com a Maioridade.

A doença apoderara-se definitivamente do organismo. Nicoláu ia, a pouco e pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas visitas, frequentar certas casas. O theatro mal chegava a distrahil-o. Era tão melindroso o estado dos seus orgãos auditicos, que o ruido dos applausos causava-lhe dores atrozes. O enthusiasmo da população fluminense para com a famosa Candiani e a Meréa, mas a Candiani principalmente, cujo carro puxaram alguns braços humanos, obsequio tanto mais insigne quanto que o não fariam ao proprio Platão, esse enthusiasmo foi uma das maiores mortificações do Nicoláu. Elle chegou ao ponto de não ir mais ao theatro, de achar a Candiani insupportavel, e preferir a Norma dos realejos á da prima-donna. Não era por exageração de patriota que elle gostava de ouvir o João Caetano, nos primeiros tempos; mas afinal deixou-o tambem, e quasi que inteiramente os theatros.

—Está perdido! pensou o cunhado. Se pudessemos dar-lhe um baço novo...

Como pensar em semelhante absurdo? Estava naturalmente perdido. Já não bastavam os recreios domesticos. As tarefas litterarias a que se deu, versos de familia, glosas a premio e odes politicas, não duraram muito tempo, e póde ser até que lhe dobrassem o mal. De facto, um dia, pareceu-lhe que essa occupação era a cousa mais ridicula do mundo, e os applausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe idéa de um Povo trivial e de máu gosto. Esse sentimento litterario, fructo de uma lesão organica, reagiu sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para-desterrar-lhe da casa todos os livros de certo porte.

Explica-se menos o desalinho com que d'ahi a mezes começou a vestir-se. Educado com habitos de elegancia, era antigo freguez de um dos principaes alfaiates da côrte, o Plum, não passando um só dia em que não fosse pentear-se ao Desmarais e Gérard, coiffeurs de la cour, á rua do Ouvidor. Parece que achou infatuada esta denominação de cabelleireiros do paço, e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro infimo. Quanto ao motivo que o levou a trocar de traje, repito que é inteiramente obscuro, e a não haver suggestão da edade, é inexplicavel. A despedida do cosinheiro é outro enigma. Nicoláu, por insinuação do cunhado, que o queria distrahir, dava dois jantares por semana; e os convivas eram unanimes em achar que o cozinheiro d'elle primava sobre todos os do capital. Realmente os pratos eram bons, alguns optimos, mas o elogio era um tanto emphatico, excessivo, para o fim justamente de ser agradavel ao Nicoláu, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um domingo, acabado o jantar, que fora magnifico, despedisse elle um varão tão insigne, causa indirecta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra? Mysterio impenetravel.

—Era um ladrão! foi a resposta que elle deu ao cunhado.

Nem os esforços d'este nem os da irmã e dos amigos, nem os bens, nada melhorou o nosso triste Nicoláu. A secreção do braço tornou-se perenne, e o verme reproduziu-se aos milhões, theoria que não sei se é verdadeira, mas emfim era a do cunhado. Os ultimos annos foram crudelissimos. Quasi se póde jurar que elle viveu então continuamente verde, irritado, olhos vesgos, padecendo comsigo ainda muito mais do que fazia padecer aos outros. A menor ou maior cousa triturava-lhe os nervos: um bom discurso, um artista habil, uma sege, uma gravata, um soneto, um dito, um sonho interessante, tudo dava de si uma crise.

Quiz elle deixar-se morrer? Assim se poderia suppor, ao ver a impassibilidade com que rejeitou os remedios dos principaes medicos da côrte; foi necessario recorrer á simulação, e dal-os, emfim, como receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A morte levou-o, ao cabo de duas semanas.

—Joaquim Soares? bradou attonito o cunhado, ao saber da verba testamentaria do defunto, ordenando que o caixão fosse fabricado por aquelle industrial. Mas os caixões d'esse sujeito não prestam para nada, e...

—Paciencia! interrompeu a mulher; a vontade do mano ha de comprir-se.

FIM DA VERBA TESTAMENTARIA


INDICE

ADVERTENCIA
O ALIENISTA
THEORIA DO MEDALHÃO
A CHINELA TURCA
NA ARCA
D. BENEDICTA
O SEGREDO DO BONZO
O ANNEL DE POLYCRATES
O EMPRESTIMO
A SERENISSIMA REPUBLICA
O ESPELHO
UMA VISITA DE ALCIBIADES
VERBA TESTAMENTARIA







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