The Project Gutenberg EBook of As Minas de Salomão, by Rider Haggard

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Title: As Minas de Salomão

Author: Rider Haggard

Translator: Eça Queirós

Release Date: July 7, 2007 [EBook #22015]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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AS MINAS DE SALOMÃO

Porto--Typ. De A. J. da Silva Teixeira
Rua da Cancella Velha, 70

RIDER HAGGARD

AS MINAS DE SALOMÃO

Traducção revista

POR

EÇA DE QUEIROZ

PORTO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON Casa editora
LUGAN & GENELIOUX, Successores
1891

Todos os direitos reservados

INTRODUCÇÃO

Agora que este livro está impresso, e em vesperas de correr o mundo largo, começa a pesar fortemente sobre mim a desconfiança de que, para elle ser aceitavel, muito lhe falta como Estylo e como Historia.

Emquanto á Historia, realmente, não pretendi, nem tentei, metter n’estas paginas tudo o que fizemos e tudo o que vimos na nossa viagem á terra dos Kakuanas. Ha todavia n’esse estranho povo coisas que mereciam exame detalhado e lento:--a sua Fauna, a sua Flora, os seus costumes, o seu dialecto (tão aparentado com a lingua dos Zulús), o magnifico systema da sua organisação militar, a sua arte subtil em trabalhar os metaes... Que interessante estudo se faria, além d’isso, com as lendas que ouvi e colleccionei ácerca das armaduras de malha que nos salvaram na batalha de Lú! Que curiosa, tambem, a tradição que entre elles se tem perpetuado sobre os Silenciosos, os dois colossos que jazem á entrada das cavernas de Salomão! No emtanto pareceu-me (e assim pensaram o barão Curtis e o capitão John) que seria mais efficaz contar a historia a direito, e sêccamente, deixando todas estas particularidades sobre a região e sobre os homens para serem tratadas mais tarde, n’um tomo especial, com minudencia e largueza.

Resta-me pois implorar benevolencia para a minha tosca maneira de escrever. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a penna--e sempre me foi alheia a fina arte dos arrebiques e floreios litterarios. Talvez os livros necessitem esses floreios e ornatos: não sei, nem possuo auctoridade para o decidir: mas, na minha barbara idéa, as coisas simples são as mais impressionadoras--e mais facilmente se deve acreditar e estimar o livro, que venha escripto com séria e honesta singeleza. Lança aguda não precisa brilho, diz um proverbio dos Kakuanas: e, movido por este conselho da sabedoria negra, arrisco-me a apresentar a minha historia, núa, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem lhe pendurar por cima, para a tornar mais vistosa, os dourados galões da Eloquencia.

Allão Quartelmar.

AS MINAS DE SALOMÃO


CAPITULO I

ENCONTRO COM OS MEUS CAMARADAS

É bem estranho que n’esta minha idade, aos cincoenta e seis annos feitos, esteja eu aqui, de penna na mão, preparando-me a redigir uma historia!

Nunca imaginei que tão prodigiosa occorrencia se podesse dar na minha vida--vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bem longa... Sem duvida, por a ter começado tão cedo! Com effeito, na idade em que os outros rapazes ainda soletram nos bancos da escóla, já eu andava agenciando o meu pão por esta velha colonia do Cabo. E por aqui fiquei desde então, mettido em negocios, em serviços, em travessias, em guerras, em trabalhos--e n’essa dura profissão, que é a minha, a caça ao elephante e ao marfim. Pois, com toda esta diligencia, só ultimamente, ha oito mezes, arredondei o meu sacco. É um bom sacco. É um sacco graúdo, louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo sacco! E apesar d’isso, juro, que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos, não me arriscava a passar outra vez os transes d’este terrivel anno que lá vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pelle intacta e com o sacco cheio. Mas eu no fundo sou um timido, detesto violencias, e ando farto, refarto de aventuras!

Como dizia pois, é coisa estranhissima que assim me lance a escrever um livro. Não está nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras--ainda que, como outro qualquer, aprecio as bellezas da Santa Biblia e gózo com a Historia do Rei Arthur e da sua Tavola Redonda. No emtanto tenho razões, e razões consideraveis, para tomar a penna com esta mão inhabil que ha quasi cincoenta annos maneja a carabina. Em primeiro logar, os meus companheiros, o barão Curtis e o digno capitão da Armada Real John Good (a quem chamo por habito «o capitão John») pediram-me para relatar e publicar a nossa jornada ao Reino dos Kakuanas. Em segundo logar, estou aqui em Durban, estirado n’uma cadeira, inutilisado para umas semanas, com os meus achaques na perna. (Desde que aquelle infernal leão me traçou a côxa de lado a lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os annos, ordinariamente pelos fins do outono. Foi em fins de outono que apanhei a trincadella. É duro que depois de um homem matar, no decurso da sua honrada carreira, quarenta e cinco leões, seja justamente o ultimo, o quadragesimo sexto que o file e use d’elle como de tabaco que se masca. É duro! Quebra a rotina, a estimavel rotina--e para mim, pessoa d’ordem, qualquer surpreza me sabe peor do que fel). Em terceiro logar, além d’encher os meus ocios, componho esta historia para meu filho Henrique, que está em Londres, interno no hospital de S. Bartholomeu, estudando Medicina. É uma maneira de lhe mandar uma longuissima carta que o entretenha e que o prenda. Serviço de doentes, n’uma enfermaria abafada e lobrega, deve pesar intoleravelmente. Mesmo o retalhar cadaveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e tedio:--e assim esta historia, onde tudo ha menos tedio, vai por uns dias levar ao meu rapaz uma saudavel e alegre sensação de aventuras, de viagens, de força e de vida livre. E emfim, como ultima razão, escrevo esta chronica, por ser, sem duvida, a mais extraordinaria que conheço--na Realidade ou na Fabula. Digo «extraordinaria» mesmo para os Leitores profissionaes de Romances--apesar de n’ella não haver mulheres, além da pobre Fulata. Ha Gagula, sim. Mas esse monstro tinha cem annos, pouca fórma humana, e não sensibilisa. Em todas estas duzentas paginas, realmente, não passa uma saia. E todavia, assim escasso como é nas graças do Feminino, não creio que exista um caso mais raro e mais captivante.

A unica vez que tive de fazer publicamente uma narração foi diante dos Magistrados, no Natal, quando depuz como testemunha sobre a morte dos nossos serviçaes Khiva e Vanvogel. Por essa occasião comecei assim, muito dignamente, com approvação de todos, com louvores do periodico de Durban:--«Eu, Allão Quartelmar, residente em Durban, no Natal, gentleman, declaro e juro que...»--Não me parece porém que seja esta a adequada maneira de principiar um livro. Além d’isso posso eu affirmar, em typo de imprensa, que «sou um gentleman?» O que é um gentleman? O que é ser gentleman? Conheço aqui Cafres nús que o são: e conheço cavalheiros chegados de Inglaterra, com grandiosas malas e anneis d’armas nos dedos, que o não são. Eu, pelo menos, nasci gentleman--apesar de me ter volvido depois n’um pobre e simples caçador de elephantes. Ora, se n’essa carreira e nos acasos que ella me trouxe, permaneci sempre gentleman, não me compete a mim avaliar. Deus sabe que com valente esforço procurei conservar-me gentleman--como nascera. Tenho morto, é certo, muito homem: mas estas duas mãos, bem haja a minha fortuna, estão puras de sangue inutil. Matei para que me não matassem. O Senhor deu-nos as nossas vidas, como sagrados depositos que lhe pertencem e que devemos defender. Guiei-me sempre por este principio: e conto que o bom Deus, um dia, me dirá lá em cima--«Fizeste bem, Quartelmar!» Este mundo, meus amigos, é aspero de atravessar: e os destinos violentos impõem-se por vezes com uma logica inexoravel. Aqui estou eu, homem ordeiro, timido, bonacheirão, que, constantemente, desde creança, me acho envolvido em carnificinas! Felizmente nunca roubei. Uma occasião, é verdade, abalei com quatro vaccas que pertenciam a um Cafre. Mas o Cafre tinha-me rapinado sordidamente--e desde então essas quatro vaccas trago-as sempre na consciencia. Só quatro vaccas. Pois têm-me pesado mais que uma manada de gado!


Foi ha dezoito mezes, pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens que deviam ser meus companheiros n’esta aventura singular á terra dos Kakuanas. N’esse outono, eu andára n’uma grande batida aos elephantes, para lá do districto de Bamanguato. Tudo n’essa expedição me correu mal, e por fim apanhei as febres. Mal me pude ter nas pernas, larguei para as minas de Diamantes (as Diamanteiras), vendi o marfim que trazia, passei o carrão e o gado, debandei os caçadores, e tomei a diligencia para o Cabo. Ao fim d’uma semana, no Cabo, descobri que o Hotel me roubava infamemente: além d’isso já vira todas as curiosidades, desde o novo Jardim Botanico que ha de certamente conferir grandes beneficios á cidade, até ao novo Palacio do Parlamento que, tenho a certeza, não ha de conferir beneficios nenhuns: de sorte que decidi voltar para o Natal pelo Dunkeld, pequeno vapor costeiro que estava nas docas á espera do paquete de Inglaterra, o Edinburgh Castle. Tomei passagem, e fui para bordo. N’essa tarde chegou o Edinburgh Castle: os passageiros que trazia para o Natal transbordaram para o Dunkeld, e levantamos ferro ao pôr do sol.

Entre os passageiros de Inglaterra, que mudaram para o Dunkeld, havia dois que me despertaram logo certo interesse. Um d’elles, um homemzarrão de perto de trinta e cinco annos, tinha os hombros mais cheios e os braços mais musculosos que eu até ahi encontrára, mesmo em estatuas. Além d’isso cabellos ondeados e côr d’ouro; barbas ondeadas e côr d’ouro; feições aquilinas e de córte altivo; olhos pardos, cheios de firmeza e de honestidade. Varão esplendido que me fez pensar nos antigos Dinamarquezes. Para dizer a verdade, Dinamarquezes só conheci um, moderno, horrivelmente moderno, que me estafou dez libras: mas lembro-me de ter admirado um quadro, os Antigos Dinamarquezes, em que havia homens assim, de grandes barbas amarellas e olhos claros, bebendo n’um bosque de carvalhos por grandes cornos que empinavam á bôca. Este cavalheiro (vim a saber depois) era um Inglez, um fidalgo, um baronet. Chamava-se Curtis--o barão Curtis. E o que me feriu mais foi elle parecer-se extremamente com alguem, que eu encontrára no interior, para além de Bamanguato. Quem?... Não me podia lembrar.

O sujeito que vinha com elle pertencia a um typo absolutamente differente, baixo, reforçado, trigueiro, e todo rapado. Calculei logo pelas suas maneiras que tinhamos alli um official de marinha; e verifiquei depois, com effeito, que era um primeiro tenente da Armada Real, reformado em capitão-tenente, e por nome John Good. Esse impressionou-me pelo apuro. Nunca conheci ninguem mais escarolado, mais escanhoado, mais engommado, mais envernizado! Usava no olho direito um vidro, sem aro, sem cordel, e tão fixo que parecia natural como a palpebra. Nem um só momento o surprehendi sem aquelle vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia com elle cravado na orbita. Só muito tarde descobri que á noite o mettia no bolso das calças--no mesmo bolso em que guardava a dentadura postiça, a mais bella, a mais perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mesmo em annuncios de dentistas. E o capitão, d’estas, possuia duas!

Apenas nos fizemos ao largo, começou o mau tempo. Brisa forte, nevoa humida e fria. Depois cada solavanco (o Dunkeld, barco de fundo chato, não levava carga) que não se podia arriscar uma passada confortavel na tolda. De sorte que me recolhi para junto da machina, onde fazia um calorzinho sereno, e alli fiquei olhando para o pendulo, que marcava, com desvios largos, o angulo de balanço do Dunkeld.

--Pendulo errado, rosnou de repente uma voz ao meu lado, na sombra da noite que cahia.

Olhei. Era o official de marinha.

--Errado, hein?... Acha? Perguntei.

--Acho o que?... Se o vapor se inclinasse quanto marca o pendulo, não se tornava mais a levantar... Aqui está o que eu acho. Mas é sempre assim, com estes capitães de marinha mercante...

Felizmente, n’esse instante, tocou a sineta ao jantar, com immenso allivio meu--porque se ha, sob a cupula dos céos, uma coisa temerosa, é a loquacidade d’um official da marinha de guerra, desabafando sobre a inepcia dos officiaes da marinha mercante. Peor do que essa coisa temerosa--só a coisa inversa!

O capitão John e eu descemos juntos para o salão. O barão Curtis já lá estava, no topo da mesa, á direita do commandante do Dunkeld. John accommodou-se ao lado do seu companheiro: eu defronte, onde havia dois talheres desoccupados. Logo depois da sopa o commandante, com a lamentavel mania dos homens de mar, começou a fallar de caça. Primeiramente de caça miuda, de condores e de abutres. Depois passou a elephantes.

--Ah! Commandante (exclamou ao lado um patricio meu, de Durban), para elephantes temos presente uma grande auctoridade... Se ha homem em Africa que entenda de elephantes é aqui o nosso companheiro e amigo Allão Quartelmar.

Por acaso, n’esse momento, eu pousára os olhos no barão Curtis; e notei que o meu nome, assim pregoado com a minha profissão, lhe causára emoção e surpreza. John cravou tambem em mim o seu vidro, com uma curiosidade que faiscava. Por fim o barão inclinou-se, através da mesa, e n’uma voz grave e funda, bem propria do robusto peito d’onde sahia:

--Peço perdão, disse, mas é porventura ao snr. Allão Quartelmar que me estou agora dirigindo?

--A elle proprio.

O homemzarrão passou a mão pelas barbas,--e distinctamente, muito distinctamente, o ouvi murmurar: «Ainda bem!»

Não se passou mais nada até ao dôce. Mas fiquei ruminando aquelle espanto e aquelle «ainda bem!»

Depois do café, enchia o meu cachimbo para subir á tolda, quando o barão, com os seus modos sérios e lentos, se adiantou para mim, e me convidou «a passar ao seu beliche, tomar um grog, e conversar...» Aceitei. O barão occupava um camarote de tolda, o melhor do Dunkeld, espaçoso, arejado, com um sofá, espelhos, e duas largas cadeiras de verga. O capitão John viera tambem. Todos tres nos sentamos, accendendo os cachimbos, emquanto o moço corria pelos grogs.

Houve primeiramente um silencio. Outro creado entrou, a accender o candieiro. Por fim appareceram os grogs.

O barão Curtis então passou a mão pelas barbas, n’esse geito que lhe era costumado, e voltando-se bruscamente:

--Diga-me uma coisa, snr. Quartelmar... Aqui ha dois annos, por este tempo, esteve n’um sitio chamado Bamanguato, ao norte do Transwaal. Não é verdade?

--Perfeitamente, respondi eu, pasmado de que aquelle cavalheiro se achasse, no seu condado, em Inglaterra, tão bem informado das jornadas que eu fazia no sul d’Africa!

--A negocio, hein? Acudiu o capitão John.

--Sim, senhor, a negocio. Levei uma carregação de fazendas, acampei fóra da feitoria, e lá fiquei até liquidar.

O barão conservou durante um momento pregados em mim os seus olhos cinzentos e largos. Pareceu-me que havia n’elles anciedade e temor.

--E diga-me, encontrou ahi, em Bamanguato, um homem chamado Neville?

--Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a descançar o gado antes de metter para o norte. Aqui ha mezes recebi eu uma carta d’um procurador, perguntando-me se sabia o que era feito d’esse sujeito... Respondi como pude...

--Bem sei! Atalhou o barão. Li a sua resposta. Dizia o snr. Quartelmar que esse sujeito Neville partira de Bamanguato, no principio de maio, n’um carrão, com um serviçal e um caçador cafre chamado Jim, tencionando puxar até Inyati, ultima estação na terra dos Matabeles, para de lá seguir a pé, depois de vender o carrão. O snr. Quartelmar accrescentava que o carrão decerto o vendera elle, porque seis mezes depois vira-o em poder d’um portuguez. Esse portuguez não se lembrava bem do nome do homem a quem o comprára. Sabia só que era um branco, e que se mettera para o matto com um Cafre...

--É verdade, murmurei eu.

Houve outro silencio, que eu enchi com um sorvo ao grog. Por fim o barão proseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes e anciosos:

--O snr. Quartelmar não sabe quaes fossem as razões que levavam assim esse sujeito Neville para o norte?... Não sabe qual era o fim da jornada?

--Ouvi alguma coisa a esse respeito, murmurei.

E calei-me prudentemente, porque nos iamos avisinhando d’um ponto em que, por motivos antigos e graves, eu não desejava bolir.

O barão voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar. O outro, por entre a fumaraça do cachimbo, baixou a cabeça, n’um sim mudo. Então o meu homemzarrão, decidido, abriu os braços, desabafou:

--Snr. Quartelmar, vou-lhe fazer uma confidencia! Vou-lhe mesmo pedir o seu conselho, e talvez o seu auxilio... O agente que me remetteu a sua carta afiançou-me que eu podia confiar absolutamente no snr. Quartelmar, que é um homem de bem, discreto como poucos, e respeitado como nenhum em toda a colonia do Natal.

Dei um sorvo tremendo ao cognac, para esconder o meu embaraço--porque sou extremamente modesto.

--Snr. Quartelmar, concluiu o barão, esse sujeito chamado Neville era meu irmão.

--Ah! Exclamei.

Com effeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o barão se parecia! Era com esse Neville. Sómente o outro tinha menos corpo, e a barba escura. Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a mesma decisão.

--Era meu irmão, continuou o barão. Meu irmão mais novo, e unico. Até aqui ha cinco annos, vivemos sempre juntos. Depois um dia, desgraçadamente, tivemos uma questão, uma terrivel questão. E, para lhe dizer a verdade toda, snr. Quartelmar, eu comportei-me para com meu irmão da maneira mais injusta! Foi sob o impulso do despeito, da cólera, é certo... Mas em summa comportei-me injustamente.

--Cruelmente, murmurou do lado o capitão John, que fumava com os olhos cerrados.

--Cruelmente, com effeito. Como o snr. Quartelmar sabe, em Inglaterra, quando um homem morre sem testamento e não tem senão bens de raiz, tudo passa para o filho mais velho. Ora succedeu que meu pai morreu exactamente quando meu irmão Jorge e eu estavamos assim de mal. Herdei tudo; e meu irmão, que não tinha profissão, nem habilitações, ficou sem real. O meu dever, está claro, era crear-lhe uma situação independente. É o que todos os dias se faz em Inglaterra, n’esses casos. Mas por esse tempo a nossa questão estava em carne viva. Eu não lhe offereci nada. Elle tambem, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu. Assim ficámos, de longe, eu rico e elle pobre... Peço perdão de o fatigar com estes detalhes, snr. Quartelmar, mas preciso pôr as coisas bem claras... Não é verdade, John?

--Escrupulosamente claras! Acudiu o outro. De resto o nosso amigo Quartelmar guarda para si esta historia...

--Pudera! Exclamei.

--Pois bem, continuou o barão, meu irmão possuia de seu, n’essa época, umas duzentas ou trezentas libras. Um bello dia, agarra n’esta miseria, toma o nome de Neville, e abala para Africa a tentar fortuna! Eu só o soube tarde, mezes depois d’elle ter embarcado. Passaram tres annos. Noticias d’elle, nenhumas. Comecei a andar inquieto. Escrevi-lhe. Naturalmente as minhas cartas não lhe chegaram. E eu cada dia mais afflicto! Para o snr. Quartelmar comprehender tudo bem, deve saber que, desde pequeno, desde o berço, meu irmão foi a forte e grande affeição da minha vida. E por outro lado a nossa questão, assim amarga e aspera por sermos ambos muito novos e muito exaltados, nasceu de quê? D’uma mulher. D’uma mulher cujo nome já quasi me esqueceu. E meu pobre irmão, coitado, se ainda é vivo, não se lembrará mais que eu. Ora aqui tem! E já por isto o snr. Quartelmar comprehende...

--Perfeitamente, perfeitamente...

--Pois bem, descobrir meu irmão passou a ser a minha idéa constante, dia e noite. Mandei fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquizas. Um dos resultados, o mais importante, foi a sua carta, snr. Quartelmar. Importante porque me dava a certeza que, mezes antes, meu irmão estava na Africa, e vivo. Desde esse momento decidi vir eu mesmo, pessoalmente, continuar as pesquizas. Agentes, por mais dedicados, mais bem pagos, não têm o interesse de coração: é com o coração justamente que eu conto, com a perspicacia, a inspiração especial que elle ás vezes possue. De resto sempre tencionei visitar as nossas colonias d’Africa... E aqui tem o snr. Quartelmar a minha historia. O mais extraordinario, é que o tivessemos encontrado logo, a si, a pessoa justamente que viu meu irmão vivo, a pessoa justamente a quem eu me ia a dirigir apenas chegasse ao Natal. Quer que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo o caso, aqui estou, prompto para tudo, com o meu velho amigo, o capitão John, companheiro fiel de muitos annos, que teve a dedicação de me acompanhar.

O outro encolheu os hombros, sorrindo, com a sua esplendida dentadura.

--Não havia n’este momento nada interessante a fazer na velha Europa!... Gasta, insipidissima, a velha Europa!

Depois, reenchendo o cachimbo, accrescentou muito sério:

--E agora que o nosso amigo Quartelmar conhece os motivos que nos trazem á Africa, e o interesse que nos prende a esse homem chamado Neville, espero da sua lealdade que não terá duvida em nos dizer tudo o que sabe, ou tudo que ouviu, a respeito d’elle. Hein?

Impressionado, respondi:

--Não tenho duvida, por ser questão de sentimento.

CAPITULO II

PRIMEIRA NOTICIA DAS MINAS DE SALOMÃO

Sacudi a cinza do cachimbo na palma da mão, e comecei, muito devagar, para tudo pôr bem claro e bem exacto:

--Aqui está o que ouvi a respeito d’esse cavalheiro Neville. E isto, que me lembre, nunca, até ao dia d’hoje, o disse a ninguem. Ouvi que esse cavalheiro fôra para o interior á busca das minas de Salomão.

Os dois homens olharam para mim, com assombro:

--As minas de Salomão!? Que minas?... Onde são?

--Onde são, não sei. Sei apenas onde dizem que estão. Aqui ha annos vi de longe os dois picos dos montes que, segundo corre, lhes servem de muralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentas milhas de deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ninguem (quero dizer, homem branco) que o atravessasse, a não ser um, n’outras éras. Porque toda esta historia vem muito de traz, de ha seculos! Eu não tenho duvida em a contar, mas com uma condição: é que os cavalheiros não a hão de transmittir sem minha auctorisação. Tenho para isso razões, e fortes. Estão os cavalheiros de accôrdo?

--Com certeza!

Narrei então longamente tudo o que sabia, historia ou fabula, sobre as minas de Salomão. Foi ha trinta annos que pela primeira vez ouvi fallar d’estas minas a um caçador d’elephantes, um homem muito sério, muito indagador, que recolhera assim, nas suas jornadas através d’Africa, tradições e lendas singularmente curiosas. Tinha-me eu encontrado com elle na terra dos Matabeles, n’uma das minhas primeiras expedições ao interior, á busca do elephante e do marfim. Chamava-se Evans. Era um dos melhores caçadores d’Africa. Foi estupidamente morto por um bufalo, e está enterrado junto ás quedas do Zambeze.

Pois uma noite, sentados á fogueira, no matto, succedeu mencionar eu a esse Evans umas construcções extraordinarias com que casualmente dera, andando á caça do koodoo por aquella região que fórma hoje o districto de Lydenburg no Transwaal. Essas obras foram depois encontradas, e aproveitadas até, pela gente que veio trabalhar as minas d’ouro. Mas ninguem (quero dizer, nenhum branco) as tinha visto antes de mim. Era uma estrada enorme, magnifica, cortada na rocha viva, levando a uma galeria sem fim, mettida pela terra dentro, toda de tijolo, e com grandes pedregulhos de minerio d’ouro empilhados á entrada. Obra extraordinaria! E a raça que a fizera--desapparecera, sem deixar um nome, nem outro vestigio de si, além d’aquella estrada e d’aquella galeria, que revelavam um grande saber, uma grande industria e uma grande força!

--Curioso! Murmurou Evans. Mas conheço melhor!

E contou-me então que no interior, muito no interior, descobrira elle uma cidade antiquissima, toda em ruinas, que tinha a certeza de ser Ophir, a famosa Ophir da Biblia. Lembro-me bem a impressão e o assombro com que eu escutei a historia d’essa cidade phenicia perdida no sertão d’Africa, com os seus restos de palacios, de piscinas, templos, de columnas derrocadas!... Mas depois Evans ficára calado, scismando. De repente diz:

--Tu já ouviste fallar das serras de Suliman, umas grandes serras que ficam para além do territorio de Machukulumbe, a noroeste?

--Não, nunca ouvi.

--Pois, meu rapaz, ahi é que Salomão verdadeiramente tinha as suas minas, as suas minas de diamantes!

--Como se sabe?

--Como se sabe!? Tem graça! Sabe-se perfeitamente. O que é Suliman senão uma corrupção de Salomão? O nome das serras, realmente, sempre foi serras de Salomão. Além d’isso, uma feiticeira do districto de Manica, uma velha de mais de cem annos, contou-me tudo... Isto é, contou-me que para lá das serras vive um povo que é da raça dos Zulús, e falla um dialecto zulú: mas como força, e corpulencia, e coragem, vale mais que os Zulús. Pois n’esse povo ha videntes, grandes feiticeiros, que de geração em geração têm trazido o segredo d’uma mina prodigiosa, que foi d’um rei branco, muito antigo, e que ainda hoje está cheia de pedras brancas que reluzem... De sorte que não ha duvida nenhuma.

Para mim havia toda a duvida. As minas d’Ophir interessavam-me, como da nossa crença e da Biblia: mas das minas de pedras brancas que reluzem, conhecidas em segredo por feiticeiros zulús, teria certamente rido se não fôra o respeito devido a um caçador tão digno como Evans. De madrugada Evans partiu, a acabar tristemente nas pontas d’um bufalo. E não pensei mais em Salomão, nem nas suas minas de diamantes.

Aqui ha vinte annos porém, n’um encontro muito singular que tive no districto de Manica, de novo ouvi fallar das minas de Salomão, e d’um modo que para sempre me devia impressionar. Era n’um sitio chamado a «aringa de Sitanda». Não ha peor em toda a Africa. Fructa nenhuma, caça nenhuma, tudo sêcco, tudo triste--e os pretos vendem os ossos d’um frango por fazenda que vale uma vacca.

Apanhei lá um ataque de febre, e estava fraquissimo, enfastiadissimo, quando me appareceu um dia um portuguez de Lourenço Marques, acompanhado por um serviçal mestiço. Entre os portuguezes de Lourenço Marques--ha soffrivel e ha pessimo. Mas este era dos melhores que eu vira--um homem muito alto e muito magro, de bellos olhos negros, os bigodes já grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras graves que me fizeram pensar nos velhos fidalgos portuguezes que aqui vieram ha seculos e de que tanto se lê nas historias. Conversámos bastante n’essa noite, porque elle fallava um bocado de mau inglez, eu um bocado de mau portuguez; e soube que se chamava José Silveira, e que possuia uma fazenda ao pé da cidade, em Lourenço Marques.

Na manhã seguinte, cedo, antes de partir com o mestiço acordou-me para se despedir, de chapéo na mão, cortez e grave como os antigos, os que tinham Dom.

--Até mais vêr, camarada!

--Boa viagem! Até mais vêr!

O homem conservava, pregados em mim, os grandes olhos negros que rebrilhavam. Depois accrescentou muito sério:

--Se nos tornarmos outra vez a encontrar, hei de ser a pessoa mais rica d’este mundo! E póde contar, camarada, que não me hei de esquecer de si!

Nem ri. Estava muito debilitado para rir. Fiquei estirado na manta olhando para o estranho homem que, a grandes passadas, com a cabeça alta e cheia de esperança, se mettia pelo matto dentro. v Passou uma semana, e melhorei da febre. Uma tarde achava-me sentado no chão defronte da barraca, rilhando a ultima perna d’um d’esses frangos que os pretos me vendiam por chita do valor d’uma vacca, e pasmando para o enorme disco do sol que descia ao fundo do deserto--quando de repente avistei, escura sobre a vermelhidão do poente, n’uma elevação de terreno, a figura d’um homem que era certamente europeu porque trazia um casacão comprido. No momento mesmo em que eu dera com os olhos n’elle, o homem oscilla, cae de bruços e começa a arrastar-se pelo chão, lentamente! Com um esforço desesperado, ainda se ergueu, e tentou pelo comoro abaixo alguns passos que cambaleavam. Por fim tombou de novo, e ficou estirado, como morto, contra um tufo de tojo alto. Gritei a um dos meus caçadores que acudisse. E quando elle voltou, amparando o homem nos braços--quem hei de eu vêr? O José Silveira!

José Silveira--ou antes o seu miseravel esqueleto, com todos os ossos rompendo para fóra da pelle, mais sêcca que pergaminho e amarella como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, á maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabello que eu lhe vira grisalho, vinha branco, todo branco como uma bella estriga de linho.

--Agua! Gemeu elle. Agua, pelas cinco chagas de Christo!

O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre elles a lingua pendia-lhe, toda inchada e toda negra! Dei-lhe agua com leite, de que bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi necessario arrancar-lhe a vasilha. Depois cahiu de costas, rompeu a delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes e o deserto!

Levei-o para dentro da tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia. O homem estava perdido. Rente da meia noite socegou. Eu, esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz, dou com elle (fórma sinistra!) de joelhos, á porta da barraca, de olhos cravados para o longe, para o deserto! N’esse instante, um raio de sol que nascia frechou através do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a cem milhas de nós, o pico mais alto das serras de Suliman. O homem soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braços de esqueleto:

--Lá estão ellas, Santo Deus, lá estão ellas!... E dizer que não pude lá chegar! Parecem tão perto! Logo alli, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ninguem mais póde lá ir!

De repente emmudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face livida e como esgazeada por uma idéa brusca.

--Ó camarada, onde está vossê?... Já o não distingo, vai-me a fugir a vista!

--Estou aqui; socegue, homem.

--Tenho tempo para socegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Vossê tem sido bom commigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguem se aproveita! Talvez vossê lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre creado, que me está a matar a mim...

Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma especie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exhausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarellado, com linhas escriptas, n’um tom antiquissimo, de côr de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.

--O papel, murmurou elle n’uma voz que se extinguia, é a cópia do que está escripto no trapo. Levou-me annos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portuguezes que vieram a Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá n’aquellas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos annos... Um escravo que ia com elle, e que ficára a esperar, do lado de cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com elle morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde então ficou guardado na nossa familia. Ha trezentos annos! E ninguem pensou em o decifrar até que eu me metti n’isso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, ás malditas serras! Será então o homem mais rico d’este mundo! O mais rico, o mais rico! Tente vossê, camarada... Não dê o papel a ninguem! Vá vossê!

As ultimas palavras sahiram como um debil sopro. Cahiu de costas, recomeçou a delirar. D’ahi a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua alma em descanço! Morreu serenamente, sem esforço e sem dôr. Por minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim não darão com elle os chacaes.

Foi ao pé da cova, onde o desgraçado jazia, que examinei o documento. Era, como disse, um farrapo de linho, rasgado d’uma fralda de camisa e do tamanho d’um palmo. No topo tinha os traços de um mappa, ou de um roteiro, rapidamente e toscamente lançados. Era pouco mais ou menos isto:


Por baixo vinham linhas escriptas, n’uma letra muito antiga e côr de ferrugem. Para mim eram inintelligiveis. Mas o papel continha a decifração, e dizia assim:

«Estou morrendo de fome, n’uma cova da banda norte d’um d’estes montes a que dei o nome de «Seios de Sabá», no que fica mais a sul. Sou D. José da Silveira, e escrevo isto no anno de 1590, com um pedaço d’osso, n’um farrapo da camisa, tendo por tinta o meu sangue. Se o meu escravo aqui voltar, reparar n’este escripto, e o levar para Lourenço Marques, que o meu amigo [aqui um nome illegivel], logo pela primeira nau que passar para o Reino, mande estas coisas ao conhecimento d’El-Rei, para que Elle remetta uma armada a Lourenço Marques, com um troço de gente, que se conseguir atravessar o deserto, vencer os Kakuanas que são valentes, e desfazer os seus feitiços (devem vir muitos missionarios) tornarão Sua Alteza o mais rico Rei da Christandade. Com meus proprios olhos vi os diamantes sem conto amontoados n’um subterraneo que era o deposito dos thesouros de Salomão, e que fica por traz d’uma figura da Morte. Mas por traição de Gagula, a feiticeira dos Kakuanas, nada pude trazer, apenas a vida! Quem vier siga o mappa que tracei, e trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sabá, o esquerdo, até chegar ao cimo, d’onde verá logo, para o lado norte, a grande calçada feita por Salomão. D’ahi siga sempre, e em tres dias de marcha encontrará a aringa do rei. Quem quer que venha que mate Gagula. Rezem pelo descanço da minha alma. Que El-Rei Nosso Senhor seja logo avisado. Adeus a todos n’esta vida!»

Tal era o extraordinario documento que textualmente li ao barão Curtis e ao capitão, porque trazia sempre commigo (e ainda trago) uma traducção d’elle, em inglez, na carteira.

Quando acabei, os dois amigos olhavam para mim, mudos de espanto. Por fim o capitão, com o leve suspiro de quem repousa d’uma prolongada emoção, bebeu um trago de grog--e mais sereno:

--O nosso amigo o snr. Quartelmar não nos tem estado a intrujar?

Metti com força o papel na algibeira, e, erguendo-me, repliquei sêccamente:

--Se os cavalheiros assim pensam, não me resta mais nada senão desejar-lhes muito boas noites!

O barão acudiu, pousando-me no hombro a sua larga mão:

--Pelo amor de Deus, snr. Quartelmar! Nem John, nem eu duvidamos da sua veracidade. Mas, emfim, tenho ouvido dizer que aqui na colonia é coisa corrente e bem aceita troçar um pouco os que chegam, os novatos d’Africa... E depois essa historia é tão extraordinaria!

Insisti, ainda offendido:

--O original escripto pelo velho fidalgo no farrapo de camisa, tenho-o em Durban! Será a primeira coisa que lhes hei de mostrar em chegando!... Não ha uma palavra...

O barão atalhou gravemente:

--Toda a palavra do snr. Quartelmar é coisa séria, e como tal a tomamos.

Durante um momento ficámos calados. Eu serenei. Por fim o barão, que dera sobre o tapete do beliche alguns passos pensativos, parou diante de mim:

--E meu irmão? Como soube o snr. Quartelmar que meu irmão tentou tambem essa jornada ás minas?

Narrei então o que me succedera com esse sujeito Neville, quando estavamos acampando, lado a lado, em Bamanguato. Eu não o conhecia; nem então começámos relações, apesar de termos o gado junto. Mas conhecia perfeitamente o serviçal que o acompanhava, um chamado Jim. Era um Bechuana, excellente caçador--e, para Bechuana, esperto, consideravelmente esperto! Na manhã em que Neville devia metter-se para o sertão, vi Jim, ao pé do meu carrão, cortando folhas de tabaco.

--Para onde é essa jornada, Jim? Perguntei eu, sem curiosidade, só para mostrar interesse ao rapaz. Ides a elephantes?

Jim mostrou os dentes todos, n’um riso vivo:

--Não, patrão. Vamos a coisa melhor que marfim.

--Melhor que marfim!? Ouro?

--Melhor que ouro! Murmurou elle, arreganhando mais a dentuça.

Calei-me, porque não convinha á minha dignidade de patrão e de branco revelar curiosidade diante d’um Bechuana. Confesso, porém, que fiquei intrigado. D’ahi a pouco Jim acabou de cortar o tabaco. Mas por alli se quedou, rondando, coçando devagar os cotovêlos, á espera, com os olhos em mim. Não dei attenção.

--Ó patrão! Murmurou elle, n’uma ancia de desabafar.

Permaneci indifferente, por dignidade. Elle tornou:

--Ó patrão!

--Que é, homem?

--Vamos á procura de diamantes, patrão! Atirou-me elle ao ouvido.

--Diamantes!? Boa! Então ides para o lado opposto. Devieis metter direito ao sul, para as Diamanteiras.

O Bechuana baixou mais a voz:

--Ó patrão! Já ouviu fallar das serras de Suliman? Pois lá é que estão os diamantes. O patrão nunca ouviu?

--Tenho ouvido muita tolice na minha vida, Jim.

--Não é tolice, patrão. Eu conheci uma mulher que veio de lá, com um filho, e que vivia no Natal. Morreu ha annos, o filho por lá anda. E foi ella que me disse tudo. Ha lá diamantes!

--Olha, Jim, o que te digo é que teu amo vai dar de comer aos abutres, que andam por lá esfomeados. E tu, essa pouca carne que tens nos ossos, tambem vai d’aqui direitinha aos abutres!

O homem teve outro riso fino:

--A gente tem de morrer, e eu não desgósto de experimentar terras novas. O elephante por aqui já não rende. O Bechuana cá vai para os diamantes, e o Bechuana vai cantando!

--Pois quando a morte te agarrar pelas guelas, veremos então se ainda canta o Bechuana!

Jim abalou. D’ahi a meia hora o carrão do snr. Neville poz-se em marcha para o norte. Mas não rodára ainda dez jardas, quando Jim voltou para traz, a correr.

--Adeus, patrão! Exclamou. Não me quiz ir de todo sem lhe dizer adeus, porque me parece que o patrão tem razão, e que nunca mais cá voltamos!

--Ouve cá, Jim, teu amo vai com effeito ás serras de Suliman, ou tudo isso é patranha?

O Bechuana jurou que não contava patranhas. O amo ia realmente em demanda das serras e das minas que estavam para além. Ainda na vespera o amo dissera que, para tentar fortuna na Africa, tanto montava ir em cata de diamantes, como de ouro ou de ferro. Tudo dependia da sorte, porque no torrão tudo havia. Assim elle ia aos diamantes, que era o mais rapido para enriquecer--ou para morrer.

Reflecti um momento.

--Escuta, Jim. Vou escrever umas palavras a teu amo. Mas has de prometter que não lh’as entregas senão em chegando a Inyati!

Inyati ficava d’ahi a umas quarenta leguas. O Bechuana prometteu.

Rasguei um bocado de papel da carteira, escrevi a lapis estas linhas: «Quem vier... trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sabá, o esquerdo, até chegar ao cimo, d’onde verá logo, para o lado norte, a grande calçada feita por Salomão».

--Bem! Ora agora, Jim, quando deres este papel a teu amo dize-lhe que lh’o manda quem sabe, e que siga bem a indicação! Mas ouviste? Só lh’o dás quando chegares a Inyati; que eu não quero que elle me volte para traz e me venha fazer perguntas! Entendeste? Então abala, madraço, que o carrão come caminho!

Jim agarrou o bilhete e largou a correr. D’ahi a pouco o carrão sumiu-se por traz das collinas. E isto, em verdade, era tudo o que eu sabia a respeito d’esse sujeito Neville.

Mal eu acabára, o barão, sem hesitar, e com perfeita simplicidade, disse:

--Snr. Quartelmar, vim á Africa procurar meu irmão. Desde que alguem o viu pondo-se em marcha para as serras de Suliman, o que devo a mim mesmo é marchar tambem para esse lado. Póde ser que o encontre; ou que venha a saber que morreu; ou que volte sem nada saber, na antiga incerteza; ou que não volte, como o velho fidalgo. Em todo o caso o meu dever, desde que me impuz esta tarefa, é tomar o caminho que meu irmão tomou. E agora pergunto eu: quer o snr. Quartelmar vir commigo?

Tambem não hesitei. Foi logo, de golpe:

--Muitissimo obrigado, snr. Barão! Se tentassemos atravessar as cordilheiras de Suliman, ficavamos lá como os dois Silveiras. Eis a minha candida convicção. Ora ha em Londres um pobre rapaz que anda nos seus estudos, que é meu filho, e que me não tem senão a mim n’este mundo. E por elle, se não já por mim, não me convém por ora morrer. Em todo o caso agradeço a sua lembrança. É de amigo!

O barão voltou-se para o seu companheiro, com um ar profundamente desconsolado, e que quasi commovia n’aquelle homem tão robusto e tão nobre. O outro murmurou:--«É pena, grande pena!»

--Snr. Quartelmar! Exclamou então o barão. Quando eu me metto n’uma empreza, tudo sacrifico para a levar a cabo. Eu tenho fortuna, uma grande fortuna, e necessito do seu auxilio. O snr. Quartelmar póde portanto pedir-me o que quizer pelos seus serviços, já não digo dentro do razoavel, mas dentro do possivel. Além d’isso, apenas chegarmos a Durban, vamos a um tabellião, e eu obrigo-me por uma escriptura a continuar a educação de seu filho, no caso de lhe acontecer a si um desastre, ou a deixar-lhe uma independencia, no caso de eu estourar tambem. Vê que estou prompto a tudo. Ainda mais. Se por acaso descobrissemos os diamantes, metade d’elles ficariam pertencendo ao snr. Quartelmar, outra metade ao capitão John. É verdade que nenhum de nós acredita nos diamantes, e portanto esta vantagem conta como zero. Mas podemos applicar a mesma regra a ouro ou marfim, qualquer fazenda que encontrarmos. Finalmente escuso de dizer que todas as despezas da expedição correm por minha conta. Creio que não posso fazer mais.

Eu olhava para elle, deslumbrado:

--Barão, essa proposta é a mais generosa que tenho recebido na minha vida! Mas tambem, que diabo, a empreza seria a mais arriscada em que me tenho mettido... Preciso pensar. E antes de chegar a Durban eu lhe darei a resposta. Por hoje ficamos aqui.

--Ficamos aqui por hoje! Acudiu o capitão, erguendo-se, e respirando com allivio.

Com effeito era tarde. Dei as boas-noites aos dois cavalheiros; e no meu beliche, até de madrugada, sonhei com o antigo D. José da Silveira, com El-Rei Salomão, e com montões de pedras que reluziam no fundo d’uma caverna.

CAPITULO III

O HOMEM CHAMADO UMBOPA

Durante o resto da jornada pensei constantemente na proposta do barão. Mas nem eu nem elle voltamos a fallar de Neville ou da travessia para as minas. Na tolda e no beliche as nossas conversas rolavam todas sobre caça, sobre aventuras de caça na Africa. Os dois, homens de grande sport, não se fartavam de escutar. E eu, velho palrador, cheio de memorias e já anecdotico, não me fartava de contar.

Finalmente, n’uma esplendida tarde de janeiro (que é aqui o mez mais quente do anno) avistámos a costa de Natal--com a esperança de dobrar a ponta de Durban ao sol-posto. Toda esta costa é adoravel, com as suas longas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de verdura clara, as alegres aringas dos Cafres espalhadas aqui e além, e a orla espumosa e alva do mar que rebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban, a região toma uma incomparavel riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas enxurradas de seculos, faiscam riachos innumeraveis: o verde do matto é mais intenso: os outros verdes de jardins entremeiam-se com as plantações d’assucar: e a espaços uma casa muito branca, sorrindo para a azul placidez do mar, põe uma linda nota, humana e domestica, na vastidão da paizagem.

Como disse, contavamos dobrar, antes do sol-posto, a ponta de Durban. Mas quando deitámos ancora já era crepusculo cerrado, tarde de mais para entrar a barra. Tinhamos ainda essa noite a bordo: e descemos ao salão, para um jantar quieto em aguas serenas, depois de vêr o salva-vidas remar para terra com as malas do correio.

Quando voltámos á tolda, a lua ia alta, e tão brilhante sobre mar e praia, que quasi offuscava os lampejos largos do pharol. De terra vinham, através do ar calmo, aquelles picantes e dôces aromas de especiarias, que, não sei por quê, me fazem sempre lembrar hymnos de egreja e missionarios. O bairro de Berea parecia em festa, com todas as varandas alumiadas. N’um grande brigue, ancorado ao lado, os marinheiros estavam cantando, ao som do banjo. Era uma noite d’encanto, como só as ha n’este abençoado sul d’Africa, que lançava sobre a alma uma infinita paz, infinita e suave como a luz que derramava a lua cheia. Até o bull-dog d’um passageiro irlandez, que não cessára de rosnar ferozmente durante toda a jornada, cedera emfim ás pacificadoras influencias do sul, e dormia, estirado no convés, com um ar de tregoa e de perdão aos homens.

O barão, o capitão John e eu, estavamos sentados junto á roda do leme, olhando e fumando em silencio.

--Então, snr. Quartelmar? Exclamou de repente o barão, sorrindo. Aqui estamos em Durban... Pensou nas nossas propostas?

--Vamos ou não vamos de companhia á busca do snr. Neville? Echoou do lado o amigo John.

Não tugi. Mas ergui-me, e fui devagar sacudir para fóra da amurada a cinza do meu cachimbo. A verdade é que, depois de muito matutar, eu ainda não tomára uma resolução,--ou antes a minha resolução permanecia vaga, informe, mal assente, necessitando um pequeno impulso exterior que a definisse e a fixasse. E foi justamente aquella exclamação risonha dos dois, o movimento de me erguer e de me abeirar da amurada, que tudo fixou e definiu no meu animo. Ainda a cinza não cahira na agua e já eu estava resolvido a partir.

--Pensei e vou! Declarei, voltando a sentar-me. E se os cavalheiros me dão licença, direi as razões por quê, e as condições com quê.

Expuz logo as condições, muito claramente:

O barão, em primeiro logar, corria com todas as despezas; e qualquer achado de valor, diamantes, ouro ou marfim, feito durante a expedição, seria irmãmente dividido entre mim e o capitão John. Em segundo logar, o barão pagar-me-hia em dinheiro de contado, antes de partirmos, quinhentas libras, compromettendo-me eu a acompanhal-o e fielmente servil-o até que a jornada terminasse ou por um triumpho, ou por um desastre, ou simplesmente por se reconhecer a sua inutilidade. Em terceiro logar, o barão obrigar-se-hia por uma escriptura a dar annualmente a meu filho, emquanto durassem os seus estudos, uma pensão de duzentas libras, no caso de eu morrer ou ficar inutilisado...

Ainda eu não findára, já o barão aceitára tudo, largamente, alegremente! «O que eu quero, seja por que preço fôr (dizia elle), é a sua companhia, snr. Quartelmar, é o soccorro da sua experiencia!»

--Muito bem. Pois agora, depois de dizer as condições em que vou, quero dizer as razões por que vou. É porque se nós tentarmos atravessar as serras de Suliman, não voltamos de lá vivos! O que succedeu ao velho Silveira, ao que tinha Dom, ha trezentos annos; o que succedeu ao outro, ao que não tinha Dom, aqui ha vinte; o que succedeu naturalmente ao snr. Neville, é o que nos vai succeder a nós! Não sahimos de lá vivos.

Olhei attentamente para os dois homens. O amigo John arripiou um bocado a face. O barão ficou impassivel, murmurando apenas:--«Corremos-lhe o risco!»

Eu prosegui:

--Agora dirão os cavalheiros: «Se julgas que não sahes de lá vivo, para que vaes lá?» Em primeiro logar, porque sou fatalista. Se Deus já decidiu que eu hei de morrer nas montanhas de Suliman, nas montanhas de Suliman hei de morrer ainda que lá não vá. E se Deus decidiu já o contrario, posso lá ir impunemente e de cara alegre. Isto é claro. Em segundo logar, estou velho, e já vivi tres vezes mais do que costuma viver na Africa um caçador de elephantes. De sorte que, continuando n’esta carreira, e desgraçadamente não tenho outra, que posso eu durar ainda? Uns annos. Ora se morresse agora, com as dividas que me pesam em cima, o meu pobre rapaz ficava n’uma situação má, coitado d’elle! Emquanto que assim, com quinhentas libras soantes, saldo as dividas; e se estourar, o meu rapaz tem diante de si duzentas libras por anno para acabar o curso e para se estabelecer. Ora aqui têm os cavalheiros a coisa em duas palavras.

O barão ergueu-se, excellente homem! E apertou-me as mãos com effusão.

--Essas razões, a ultima sobretudo, fazem-lhe immensa honra, snr. Quartelmar. Immensa honra! Emquanto a sahirmos vivos ou não da aventura, o tempo dirá. Eu por mim estou decidido a ir até ao cabo, seja qual fôr, triumpho ou morte! Em todo o caso se temos assim de morrer tão cedo, não me parecia mau que antes d’isso, pelo caminho, arranjassemos uma batida aos elephantes. Sempre desejei caçar o elephante, e com a perspectiva de deixar assim os ossos nas serras de Suliman, é prudente que me apresse... Não é verdade, John?

--Com certeza!... De resto, todos nós vimos já muitas vezes a morte diante dos olhos. É um detalhe; para que se ha de insistir n’elle? Viemos á Africa com certo fim. Ha perigos? Acabou-se. Deus é grande.

--Está tudo portanto decidido, conclui eu, e parece-me que chegou a occasião d’um grog.

Fomos ao grog.

No dia seguinte desembarcámos. Alojei os meus amigos n’uma «barraca» que possuo na Berea, e a que chamo em dias d’orgulho «a minha casa». É construida de tijolo, com um telhado de zinco que abriga tres quartos e uma cozinha. Em redor, porém, está plantado um bom jardim, com esplendidas arvores e flôres, que um dos meus caçadores, chamado Jack, traz lindamente tratadas. É um pobre homem a quem um bufalo esmigalhou a perna na terra dos Sikukunes. Já não póde seguir a caça; mas na sua qualidade de Griqua, jardina bem--coisa que um Zulú nunca faria decentemente. O Zulú tem horror ás artes da paz.

O barão e o seu amigo dormiram n’uma tenda que lhes armei no jardim (dentro de casa não havia espaço), no meio do laranjal. Aqui em Durban as laranjeiras têm ao mesmo tempo a flôr e o fructo: de sorte que com o perfume todo em torno, e o brilho das laranjas côr d’ouro, e o murmurio d’aguas correntes, o sitio era aprazivel e grato. Ha peor na Europa.

Logo no dia seguinte, sem mais tardança, começámos os preparativos. Antes de tudo fomos ao tabellião lavrar a escriptura em que o barão se obrigava a pensionar o meu rapaz: houve difficuldade por jazerem em Inglaterra as propriedades do barão: mas arranjou-se uma «tangente», e segura, graças ás artes de um Advogado, que pelos seus serviços apresentou a conta infame de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de quinhentas libras. Satisfeita assim a prudencia, passámos a comprar o carrão e as juntas de bois. Descobrimos um carrão excellente, com eixos de ferro, solido e leve, que já fizera uma excursão a Lourenço Marques--o que garantia a firmeza e resistencia das madeiras. Era um carrão dos que chamamos de meia-tenda--isto é, toldado sómente até ao meio, e aberto em frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofadões onde podiam dormir bem duas pessoas: além d’isso suspensões para as espingardas e bolsos de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco libras, e sahiu barato. As juntas de bois eram dez, magnificas. Ordinariamente para uma jornada atrellam-se oito juntas: mas para uma aventura d’estas, vinte bois não vão de mais. Todos eram de raça zulú, a mais pequena d’Africa, mas a melhor; e todos elles salgados. Chamamos aqui salgados aos bois já muito jornadeados pelo sul d’Africa, e á prova portanto da «agua vermelha»--que destroe ás vezes todas as juntas d’um carrão. Além d’isso, todos tinham sido vaccinados contra a maleita de pulmões, fórma horrivel de pneumonia, que é n’estas terras um flagello para o gado.

Em seguida organisámos provisões e remedios. Este detalhe demandava sciencia e cuidado, porque convinha, n’uma empreza tão accidentada, que nem faltasse o necessario, nem o carrão partisse abarrotado e carregado em demasia. Para os remedios foi-nos de grande utilidade o capitão John, que em tempos estudára para medico da Armada, e que (além de possuir, muito a proposito para nós, um estojo de cirurgia e uma pharmacia de viagem) conservára conhecimentos genericos e uma toleravel pratica. Durante a nossa estada em Durban cortou elle o dedo pollegar a um Cafre com uma maestria--que fazia appetite vêr! O que o perturbou foi o Cafre (que observára a operação em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pôr outro dedo novo.

Restava emfim a importante questão de creados e armas. Armas tinhamos por onde as escolher--entre as que eu possuia e a collecção esplendida que o barão trouxera de Inglaterra. Sete espingardas de dois canos para differentes cargas e differentes caças, tres carabinas Winchester, tres rewolvers Colts--assim ficou constituido o nosso armamento. Emquanto a creados, depois de muita consulta e reflexão, decidimos limitar o numero a cinco--um guia, um boieiro, e tres serviçaes. Boieiro e guia achámos nós facilmente em dois Zulús, que se chamavam--um Goza e outro Tom. Mas os serviçaes eram de mais difficil e delicada escolha. Da paciencia, da fidelidade, da coragem dos serviçaes poderiam muitas vezes depender as nossas pobres vidas n’esta aventura sem igual.

Finalmente arranjei dois, um Hottentote chamado Venvogel, e um rapazito zulú, de nome Khiva, que tinha o merito (consideravel para os meus companheiros) de fallar inglez com fluencia. O Hottentote já eu conhecia. Era um dos melhores «farejadores de caça» de toda a Africa. Ninguem mais rijo nem mais resistente. O seu defeito sério consistia na bebida. Mas como iamos para região onde não ha «aguas-ardentes» nem quasi aguas correntes, pouco importava esta fragilidade do digno Venvogel.

Tinhamos pois dois serviçaes. O terceiro parecia impossivel descortinar. Tentei, tentei--até que resolvemos partir sem elle, esperando encontrar, antes de mettermos para o deserto, algum homem aproveitavel entre Inyati e Zukanga. Na vespera porém da nossa partida estavamos jantando, quando Khiva, o rapaz zulú, veio annunciar que um homem se viera sentar no meu portal, á minha espera. Mandei entrar. Appareceu um rapagão muito esbelto, robusto, magnifico, apparentando trinta annos, e claro de mais para Zulú. Floreou no ar o cajado á maneira de saudação, encruzou-se sobre o soalho, a um canto, e ficou calado com singular dignidade. Não lhe dei logo attenção. Assim se deve proceder com os Zulús. Se o branco lhes falla com promptidão e agrado o Zulú conclue immediatamente que está tratando com pessoa de pouco commando. Observei no emtanto que este homem era um Keslha, um homem-de-annel--isto é, que trazia na cabeça aquella especie de rodilha, feita de gomma, e toda lustrosa de sebo, que elles entremeiam na grenha e usam, quando chegam a uma idade de respeito ou attingem nas suas aringas uma posição superior. Tambem me pareceu reconhecer aquella cara--realmente bella.

--Bem, disse por fim, como te chamas?

--Umbopa, respondeu o homem n’uma voz lenta e grave.

--Estou a pensar que já te vi algures.

--Já, Makumazan!

Makumazan é o meu nome cafre--e significa aquelle que se levanta pelo meio da noite para vigiar; ou antes, aquelle que conserva sempre os olhos bem abertos.

--Makumazan, continuou o Zulú, viu-me em Izand-luana, na vespera da batalha...

Lembrei-me então completamente. Eu fui um dos guias de Lord Chelmsford, na desgraçada guerra com os Zulús. Por acaso, na vespera da batalha de Izand-luana, que consummou o desastre das tropas inglezas, fui mandando levar para fóra do acampamento uns poucos de carrões de bagagens. Quando se estava atrellando o gado, este homem (que commandava um troço de Cafres, dos indigenas auxiliares) veio para mim, dizendo que o acampamento não estava seguro, que era certa uma surpreza, e que o vento trazia cheiro de inimigo. Respondi-lhe que «dobrasse a lingua», e deixasse a segurança do acampamento a melhores cabeças que a d’elle. Pois grande razão tinha o Zulú! Logo n’essa noite o acampamento foi terrivelmente assaltado... Tudo isso porém vem na Historia.

--Que queres tu? Perguntei. Lembro-me perfeitamente de ti. Dize o que queres.

--Quero isto. Correu aqui voz que Makumazan vai para o norte, n’uma grande expedição, com os chefes brancos que vieram d’além do mar. É verdadeira a voz?

--Verdadeira.

--Correu aqui tambem voz que Makumazan e os chefes iam para o rio Lukanga, que fica a um bom quarto de lua de jornada do districto de Manica. É verdade?

Franzi o sobr’olho, descontente de vêr assim tão conhecido o roteiro da nossa expedição.

--Para que queres tu saber? Que tens com isso?

--Tenho isto, oh brancos! Que se ides assim para tão longe, eu quereria ir comvosco.

Havia uma altivez nas maneiras d’este homem, e especialmente no seu emprego da expressão «oh brancos» em logar de «oh inkosis» (chefes), que me surprehendeu grandemente.

--Estás esquecendo a quem fallas! Repliquei. As palavras sahem-te demasiadas e imprudentes. Como é o teu nome? Onde é a tua aringa? É necessario saber quem temos diante de nós!

--O meu nome é Umbopa. Sou da raça dos Zulús, mas não sou Zulú. O sitio da minha tribu é muito longe, para o norte: os meus ficaram lá quando os Zulús desceram para aqui, ha muito, ha mais de mil annos, antes de Chaka ser rei. Não tenho aringa. Muitos annos vão que ando errante. Quando vim do norte era creança. Depois fui dos homens de Cetewayo no regimento de Nomabakosi. Por fim fugi dos Zulús, e vim para o Natal para vêr as artes dos brancos. Foi então que servi na guerra contra Cetewayo, e que te encontrei, Makumazan! Agora tenho trabalhado no Natal. Mas estou farto, quero ir para o norte. O meu logar não é aqui. Não peço soldada, mas sou valente, e valho bem o pão que comer. Eis as palavras que tinha a dizer.

Este homem e a sua grande maneira de fallar--intrigavam-me singularmente. Era certo para mim que só dissera a verdade: mas na côr, nos modos, differia muito do Zulú ordinario; e a sua offerta de vir comnosco sem soldada, extraordinaria n’um Africano, enchia-me de desconfiança.

Na duvida traduzi as estranhas fallas aos meus amigos, solicitei-lhes conselho. O barão pediu-me que mandasse pôr o homem de pé. Umbopa ergueu-se, deixando escorregar ao mesmo tempo o vasto casacão militar que o envolvia, e ficou diante de nós, mudo, erecto, soberbo, todo nú, com um simples pedaço de pano em torno dos rins e um fio de garras de leão enrolado ao pescoço. Era, realmente, um esplendido homem! Tinha mais de dois metros de altura, e largo em proporção, agil, admiravel de fórmas. Na luz da sala em que estavamos, a pelle parecia apenas muito trigueira, como a d’um arabe. Aqui e além, pelo corpo, conservava cicatrizes terriveis de antigos golpes de zagaia.

O barão foi direito a elle, e cravou-lhe os olhos nos olhos, que se não baixaram, e que rebrilharam:

--Gósto de ti, Umbopa, disse em inglez, e tomo-te ao meu serviço.

Umbopa evidentemente comprehendeu, porque murmurou em zulú:

--Está bem.

Depois, atirando um olhar para a grande estatura e força do branco, accrescentou:

--Somos dois homens, tu e eu!

CAPITULO IV

OS ELEPHANTES

Sahimos de Durban no fim de janeiro, e andadas quasi as trezentas leguas que vão d’aqui ao sitio em que se juntam os rios Lukanga e Kalukue, chegámos, pelos meados de maio, a Inyati, não longe da aringa de Sitanda, onde acampámos. Durante a jornada tivemos aventuras varias, mas d’aquellas que são usuaes em todas as travessias d’Africa e já muito contadas nos livros. Em Inyati, ultima estação mercante da terra dos Matabeles, onde Lobengula (esse atroz velhaco!) é rei, separámo-nos, com fundas saudades, do nosso confortavel carrão. Dos vinte bois que trouxeramos de Durban, só doze restavam. Um morrera da mordedura da cobra, tres da falta d’agua; um perdeu-se; os outros tres comeram uma herva venenosa, chamada tulipa. Os restantes deixámol-os com o wagon ao cuidado de Goza e de Tom (o boieiro e o guia), pedindo a um digno Missionario escossez que habita aquelle desterro, que caridosamente nos vigiasse o carrão, o gado e os homens. E no dia seguinte, acompanhados por Umbopa, Khiva, Venvogel, e meia duzia de carregadores que arranjámos em Inyati, largámos para o deserto, a pé, em seguimento da nossa temeraria aventura.

Era de madrugada; e lembrei-me que no momento de nos pôrmos em marcha estavamos todos tres bem commovidos! Cada um perguntava a si mesmo, decerto, se jámais tornaria a vêr o carrão, os bois e o Missionario. Eu por mim levava a certeza que não. Os primeiros passos foram lentos, dados em grave silencio. Mas de repente Umbopa, que marchava na frente, rompeu n’um grande canto--uma canção zulú, dizendo d’uns homens que, cansados da vida e da monotonia das coisas, se tinham mettido ao deserto, para achar occupação ou morrer, e que, para além dos sertões, subitamente, encontravam um paraiso cheio de raparigas moças, de gado, de caça, e de inimigos para matar! Esta canção pareceu-nos de boa promessa.

A quinze dias de marcha de Inyati começámos a atravessar uma região arborisada e farta em aguas. As collinas estavam espessamente cobertas de matto que os indigenas chamam idaro: e por toda a parte se estendiam bosques de machabelas, arvores que dão um fructo amarello, enorme, quasi todo caroço, mas deliciosamente fresco e dôce. As folhas e fructos d’estas arvores são o alimento querido dos elephantes; e decerto os immensos animaes andavam perto, porque a cada passo topavamos arbustos quebrados e desarraigados. O elephante por onde vai comendo, vai assolando.

Uma tarde, depois d’uma caminhada fatigante, chegámos a um sitio particularmente pittoresco e de amavel repouso. Era junto de um outeiro todo vestido d’arvoredo. Ao pé serpeava o leito sêcco d’um rio, conservando ainda aqui e além poças de agua crystallina e fria, espesinhadas em redor pelas largas pégadas de feras. Em frente verdejava um bello parque de mimosas, machabelas e outras arvores ainda, raras e cheias de flôr:--e em torno era o matto, o matto silencioso, denso, impenetravel.

Decidimos ficar alli e construir um scherm, a pouca distancia d’uma das poças d’agua. O scherm é uma especie de acampamento entrincheirado, que se faz cortando grande quantidade de matto espinhoso e armando-o circularmente n’uma vasta e rude sebe que fórma defeza. Todo o espaço interior se aplaina como uma arena: ao centro amontôa-se herva sêcca, um capim chamado tambouki, que serve de divan e de cama; aqui e além, em volta, accendem-se alegres fogueiras.

Quando acabámos de arranjar o scherm--vinha nascendo a lua. O jantar estava prompto. Bem parco era elle, composto dos tutanos e lombos d’uma girafa, que n’essa tarde, ao fim da sésta, fôra morta pelo capitão John com um tiro providencial. Mas depois de coração de elephante (a mais fina delicia que se póde ter), tutano e lombo de girafa são os petiscos superiores d’Africa, e grandemente os saboreámos sob o esplendor da lua cheia, que ia alta nos céos. Depois accendemos os cachimbos, e conversámos no vasto silencio em roda do lume.

Os meus companheiros não se fartavam de contemplar aquella scena de sertão, familiar para mim, com os meus quarenta annos d’Africa, mas que a elles só offerecia estranhezas--até na maneira por que as claridades alumiam, até na maneira por que a noite é silenciosa. Eu por mim, confesso, admirava sobretudo o nosso excellente capitão John. Alli estava elle, no interior da Terra-Negra, em pleno deserto, estirado em cima d’um sacco de couro,--tão apurado, tão correcto, tão bem pregado, como se viesse de passear n’um parque luxuoso de castello inglez, em dia de caça ao faisão. Tinha um facto completo de cheviote castanho, com chapéo da mesma fazenda, polainas irreprehensiveis, luvas amarellas de pelle de cão, a face escanhoada, monoculo no olho, os dentes postiços rebrilhando em gloria! Nunca o sertão africano vira decerto um homem mais catita. Até trazia collarinhos altos (collarinhos de gutta-percha), de que emmalára na mochila uma escandalosa porção--«por serem leves (dizia elle), faceis de lavar, e dar logo á gente um ar de asseio e distincção».

Pois assim estivemos muito tempo, sob o magnifico luar, conversando e observando os Cafres, que chupavam a dacca nos seus longos cachimbos feitos de cornos de eland, e que, um por um, se iam enrolando nas mantas e estirando á beira do lume. Só Umbopa por fim ficou acordado, longe dos Cafres (a quem geralmente não admittia familiaridades), com o queixo encostado ao punho, os olhos perdidos na lua, n’uma d’aquellas abstracções em que por vezes eu o surprehendera desde o começo da nossa jornada.

De repente, da profundidade do matto, por traz de nós, subiu no ar um longo e rouco rugido. «É um leão!» exclamei. Todos nos erguemos, a escutar. Quasi immediatamente, junto á poça d’agua pura, visinha do nosso scherm, resoou como em resposta a estridente trompa d’um elephante. «Unkungunlovo! Unkungunlovo[1], murmuram á uma os Cafres, levantando as cabeças das mantas:--e momentos depois avistámos uma fila de enormes e escuras fórmas, movendo-se devagar da beira da agua para o matto. O capitão, com um salto, agarrára a espingarda. Tive de o segurar pelo braço:

--É inutil, não se faz nada. Nada de barulho. Deixal-os ir.

--Em todo o caso, disse o barão excitado, este sitio para um caçador é um verdadeiro paraiso! Se aqui ficassemos um dia ou dois?...

Estranhei: porque até ahi o barão, impaciente, viera-nos sempre apressando para diante--sobretudo desde que soubera em Inyati, pelo Missionario, que dois annos antes um inglez, chamado Neville, vendera alli o carrão em que viera de Bamanguato e se internára no sertão com um Cafre por serviçal. Mas ouvira o leão, ouvira o elephante--e os seus instinctos de caçador dominavam, irresistivelmente.

--Pois muito bem, filhos meus, disse eu, uma vez que se quer um bocado de divertimento, ter-se-ha; mas ámanhã. Por agora é tratar de dormir, e erguer com o primeiro luzir do dia, para apanhar esse rico gado antes que elle vá aos seus negocios. Toca pois a accommodar.

O capitão John (extraordinario homem!) tirou o fato, sacudiu-o, metteu o monoculo e os dentes postiços dentro do bolso das calças, dobrou tudo cuidadosamente, guardou tudo ao abrigo do orvalho debaixo do seu makintosh, alisou o cabello, tomou um bochecho d’agua, e estirou-se de lado para dormir, com correcção e conforto. O barão e eu, depois de contemplar, rindo, estes requintes, embrulhámo-nos simplesmente n’um cobertor:--e d’ahi a pouco envolvia-nos aquelle somno profundo, absoluto, sem sonhos, sem movimentos, que é a recompensa e a consolação de quem moureja por estas terras negras.

Com o primeiro alvor da madrugada estavamos a pé, preparando para a acção. Tomámos as carabinas, munições abundantes, cantis cheios de chá frio (que é a melhor bebida, a unica, quando se caça), e partimos, depois de engolir de pé um almoço breve, acompanhados de Umbopa, de Khiva e de Venvogel.

Não tivemos difficuldade em achar o carreiro aberto e pisado pelos elephantes, que, segundo Venvogel declarou, deviam ser uns vinte ou trinta, a maior parte machos e todos crescidos. Mas o bando afastára-se durante a noite; e eram quasi nove horas, já o calor ardia em céo e terra, quando pelos arbustos quebrados, pelas cascas e folhas d’arvores esmagadas, e pelos montes de bosta fumegante, percebemos que os bichos andavam cerca--e seguros. D’ahi a instantes, effectivamente, avistámos o rebanho todo, uns vinte a trinta elephantes (como Venvogel calculára), parados n’uma cova de terreno, quietos, tendo decerto acabado o primeiro repasto, e sacudindo com lentidão e magestade as suas immensas orelhas. Era uma vista soberba! Só as ha assim na Africa!

Estavamos separados d’elles por umas cem jardas. Agarrei um punhado de capim e atirei-o ao ar para tomar a direcção do vento:--porque se um elephante nos farejasse, bem sabia eu que, antes de podermos pôr as carabinas á cara, o rebanho inteiro abalava. A aragem, se alguma corria, soprava para nós do lado dos bichos: de sorte que rastejámos cuidadosamente através do matto, mudos, sem respirar, até nos aproximarmos umas quarenta jardas mal medidas. Justamente diante de nós, e de ilharga para nós, estacionavam tres magnificos elephantes machos, um d’elles com enormes dentes e o ar supremo de um Patriarcha. Avisei, baixinho, os companheiros que me encarregava do animal do meio: o barão apontou ao mais pequeno, ao da esquerda: o capitão ao «Patriarcha».

--Agora! Murmurei.

Bum! Bum! Bum! O elephante do barão tombou redondo, varado no coração. O meu cahiu pesadamente sobre os joelhos; mas quando pensei que ia desabar para o lado, morto, vejo a enorme massa que se ergue e larga galopando por diante de mim. Metti-lhe segunda bala na ilharga, que o abateu. Á pressa, com dois cartuchos mais na carabina, corri para elle e findei-lhe misericordiosamente a agonia.

Voltei-me então para vêr o que se passára com o elephante do capitão, o «Patriarcha», que eu ouvira por traz de mim bramando de dôr e furia. Encontrei John excitadissimo. Ao que parece, o elephante, apenas ferido, rompera contra elle (que meramente teve tempo de se desviar com um salto), e seguira, furioso e sem vêr, para a banda do nosso acampamento. O resto do rebanho no emtanto, espavorido, rompera para o outro lado, através da espessura.

Durante um momento ficámos indecisos entre seguir o «Patriarcha» ferido ou o resto da manada. Por fim resolvemos bater atraz do bando. Seguil-os era facil, porque tinham aberto um caminho, mais largo e liso que uma estrada real, esmagando o matto espesso como se fosse relva de primavera. Achal-os, porém, era mais complicado: e tivemos, durante duas infindaveis horas, de marchar sob um sol faiscante, antes de os avistarmos. Lá estavam todos outra vez muito juntos (excepto um dos machos): e pela inquietação com que se mexiam, pelo constante erguer das trombas desconfiadas, farejando o ar--era claro que esperavam, temiam outro ataque. Um dos machos afastado, á laia de sentinella, vigiava para o nosso lado, de tromba ameaçadora e alta. Entre elle e nós mediavam umas sessenta jardas. Se este cavalheiro nos presentisse, dava signal e o rebanho abalava, tanto mais facilmente quanto nos achavamos, bichos e homens, em terreno descoberto. De sorte que todos tres lhe apontámos, todos tres lhe atirámos. Bum! Bum! Bum! Morto! Mas os outros partiram, n’uma desfilada, como collinas rolando.

Infelizmente para elles, logo adiante havia um nullah, isto é, uma ribeira sêcca, com as bordas abarrancadas do nosso lado e quasi a pique do lado fronteiro (sitio parecido áquelle em que o Principe Imperial foi morto na Zululandia). Para ahi justamente se atiraram os elephantes em tropel. Quando chegámos á borda, démos com elles em medonha confusão, esforçando-se por trepar a outra ribanceira (escarpada e hirta), empurrando-se uns aos outros, n’um furor e egoismo verdadeiramente humanos, e atroando os ares de bramidos. A nossa opportunidade era escandalosamente brilhante. Sem outra demora, disparando tão depressa como carregavamos, démos cabo de cinco elephantes; e teriamos dizimado o rebanho inteiro se elles de repente, abandonando a teima estupida de galgar a ribanceira, não largassem a fugir ao comprido do leito sêcco que se perdia ao longe na espessura. Estavamos cansados de mais para os perseguir, enjoados tambem d’essa vasta mortandade. Oito elephantes n’uma manhã, antes do lunch, é decente.

De sorte que, depois de descansarmos e vêrmos os Cafres cortar os corações a dois dos elephantes para servir á ceia, voltámos vagarosamente os passos para o acampamento, devagar, satisfeitos com a proeza, e calculando o valor do marfim, que no dia seguinte cedo os carregadores viriam serrar.

Ao passar no sitio em que o capitão tinha ferido o «Patriarcha», encontrámos um rebanho de elands. Não lhe atirámos, porque não ha nada no eland que valha dinheiro, e mantimentos já traziamos, deliciosos e abundantes. O bando passou ao nosso lado, ligeiro e trotando; depois, adiante, onde se erguia um tufo de arbustos em flôr, parou; e todos a um tempo se voltaram, a olhar para nós, espantados.

O capitão nunca vira um eland. Quiz aproveitar a occasião, deu a carabina a Umbopa, e seguido de Khiva adiantou-se, de monoculo fito, para o tufo de arbustos em flôr. O barão e eu sentámo-nos á espera, n’uma pedra.

O sol ia justamente descendo, n’um grande esplendor de vermelho e ouro. O barão e eu contemplavamos, calados, aquella belleza de céo e luz, quando de repente ouvimos o bramido d’um elephante e vimos, escura sobre a vermelhidão do poente, uma vasta fórma avançando a galope, de tromba erguida e cauda espetada. Logo immediatamente vimos outra coisa horrivel:--o capitão, e Khiva, o serviçal zulú, fugindo para nós n’uma carreira perdida, perseguidos pelo elephante! Era o grande bicho ferido, o «Patriarcha» que alli ficára, errando. Agarrámos n’um impeto as carabinas. Mas quê! Fera e homens, correndo para nós, vinham juntos! Se disparassemos, a bala podia varar John ou Khiva... E assim ficámos n’esta indecisão, com o coração a tremer, quando o pobre capitão escorrega n’aquelles infames botins de bezerro com que teimava em trilhar o sertão--e cae, estatelado, de face na terra, diante mesmo do enorme elephante que chegava bramindo!

Fugiu-nos a respiração! O pobre camarada estava perdido! Largámos ainda a correr para elle, desesperadamente. E o desastre veio, com effeito--mas d’um modo bem differente. Khiva, o Zulú (valente, heroico rapaz que era!), vendo o amo por terra, volta-se, e arremessa a zagaia a toda a força contra a tromba do elephante. A fera lança um uivo de dôr, arrebata o desgraçado Zulú, bate com elle no chão, põe-lhe uma immensa pata sobre as pernas, e enrodilhando-lhe a tromba no peito, rasga-o--litteralmente o rasga em dois.

Corremos, cheios de horror, fizemos fogo uma vez, outra vez, furiosamente--até que o elephante se abateu como um monte sobre os pedaços sangrentos do Zulú.

Foi um instante de indizivel consternação. Apesar de endurecido por quarenta annos de caça e carnificinas, eu proprio sentia um «nó na garganta», e creio que me fiz pallido. O barão tremia todo. E o pobre capitão torcia as mãos, na dôr de vêr assim despedaçado o servo valente que dera a vida por elle.

Só Umbopa teve a palavra serena que convinha á disciplina. Veio, com os seus passos altivos e leves, contemplar os restos de Khiva, n’uma poça de sangue, junto á massa enorme do elephante, moveu a mão no ar e disse:

--Morreu. Bem d’elle, que morreu como um homem!

CAPITULO V

A NOSSA ENTRADA NO DESERTO

Tinhamos morto nove elephantes. Dois longos dias levámos a serrar-lhe os dentes e a enterral-os com cuidado debaixo d’uma arvore enorme, que destacava isoladamente na vasta planicie, e formava um «signal» inesquecivel. Era um esplendido lote de marfim! Só os dentes do «Patriarcha» pesavam (tanto quanto pude avaliar) uns cento e setenta arrateis!

O pobre Khiva, esse, sepultámol-o ao pé da collina, com uma azagaia ao lado, para se defender dos Espiritos Malignos na sua difficil jornada para o Paraiso zulú. Ao romper do terceiro dia levantámos o acampamento--todos nós fazendo votos no silencio da nossa alma para que nos fosse dado voltar um dia! Eu, mentalmente, accrescentava:--«voltar e desenterrar este rico marfim!»

Depois d’uma fatigante marcha, cortada d’esses episodios africanos que todos os Africanistas experimentam, chegámos emfim á aringa de Sitanda, ao pé do rio Lukanga. Ahi era verdadeiramente o nosso «ponto de partida». Ahi começariam as nossas miserias.

Perfeitamente me lembro do sitio, e da nossa chegada. Para a direita descia, transmalhada, uma pequena povoação de negros, com curraes de gado murados de pedra solta, e leiras de terra cultivada ao comprido da agua clara. Por traz da aldeia ondulavam grandes pradarias de herva alta, onde a caça abundante esvoaçava. E para a esquerda era o escuro, silencioso, infindavel deserto.

O nosso acampamento ficou junto d’esse riacho alegre que corria entre arbustos em flôr. Defronte erguia-se um outeiro pedregoso. Apenas erguemos as tendas, subi lá com o barão. Era aquelle o sitio, aquelle o outeiro onde eu vira, havia vinte annos, n’uma tarde como esta, a figura do pobre Silveira, com o seu grande casacão comprido, apparecer cambaleando, toda escura na vermelhidão do poente. Como então, o globo do sol afogueado descia já rente da terra--e os seus raios flexavam obliquamente aquelle deserto coberto de tojo baixo, sombrio, sem agua, sem vida, terrivelmente mudo, que matára o pobre portuguez, que nos ia talvez matar a nós. Ficámos olhando para elle em silencio. O ar era d’uma admiravel finura e transparencia; e longe, muito ao longe, podiamos distinguir, recortada no horisonte, pallidamente azulada e com laivos brancos de neve, a cordilheira de Suliman. Mostrei-as ao meu companheiro:

--A entrada das minas de Salomão lá está... Chegaremos nós lá?

N’esse instante senti alguem por traz de nós respirando: era Umbopa, que trepára tambem ao comoro, e considerava o deserto com pensativa gravidade. Vendo que eu reparára n’elle, deu um passo lento, depois outro mais lento. E dirigindo-se ao barão (a quem parecia ter-se affeiçoado), apontando com a sua grande azagaia para o lado dos montes:

--É para aquella terra além que tu vaes, Incubú?

Incubú é uma palavra do dialecto zulú, que significa «elephante», e que servia, ente os Cafres, para designar o nosso chefe. Estranhei a audacia d’Umbopa, e perguntei-lhe asperamente que tosca maneira era essa de fallar a seu amo... Que o negro dê uma alcunha negra ao patrão, por lhe ser mais facilmente pronunciavel que o nome--vá! Que a um como eu, pobre caçador que ganha o seu pão, o negro se dirija sempre pela alcunha negra--vá ainda! Mas que a atire á face d’um senhor, d’um fidalgo--isso não!

--Falla assim aos teus iguaes, gritei eu. Falla assim aos que comtigo comem da mesma gamella!

O Zulú teve uma risadinha dôce que me enfureceu.

--Que sabes tu, accrescentou elle, se eu não sou igual ao amo que sirvo? Elle pertence a uma grande casta, pelo olhar se vê logo: mas talvez eu pertença a uma casta maior! Pelo menos sou tão forte como elle, e posso com elle repartir o que tenho no coração. Sê pois a minha bôca, oh Macumazan! Dize as minhas palavras ao Incubú meu amo! E attende-as tu tambem, porque em mim só ha verdade!

Fiquei perfeitamente indignado. Nunca um Cafre me fallára n’aquelle tremendo tom! Mas, não sei porque, o maldito Zulú tinha a arte de me impressionar. Além d’isso sentia uma viva curiosidade... De sorte que lhe traduzi as palavras,--accrescentando que a creatura me parecia impudente e ousada.

O barão, porém, homem de excellente paciencia, voltou-se sorrindo para o Zulú:

--É para as montanhas que vou com effeito, Umbopa! Vou em procura d’um homem da minha raça, d’um irmão meu, que atravessou este deserto, e que eu supponho estar além!

O Zulú moveu lentamente a cabeça:

--Assim é, assim é... Encontrei um homem no caminho que me disse: Ha dois annos que um branco se metteu tambem ao deserto como nós, levando um só serviçal... Nunca mais voltaram...

--Quem te disse? Perguntei, vivamente. Porque te sahem só agora essas palavras? Onde te disseram?

Antes de Inyati, um homem que elle encontrára no caminho. Contára-lhe que o branco se parecia com o chefe Incubú, mas tinha a barba escura: e que ia seguido por um caçador bechuana chamado Jim.

--São elles! Exclamei. Não ha duvida! São elles! Jim conhecia eu bem....

O barão ficou pensativo.

--Se meu irmão tinha decidido atravessar o deserto, murmurou por fim, ou o atravessou, ou morreu. Recuar ou mudar de fito não era da tempera d’elle. Ou não vive, ou está para lá das serras.

O Zulú, que lhe seguira as palavras com os grandes olhos brilhantes, tornou muito gravemente:

--É uma longa jornada, Incubú.

--Quartelmar, diga-lhe que não ha jornada que o homem não possa emprehender, replicou o barão (que evidentemente estimava e considerava aquelle singular Zulú). Nada ha que o homem não possa fazer; nem desertos que não possa atravessar, nem montanhas que não possa subir, se puzer n’isso alma e vontade. O essencial é contarmos a vida por coisa nenhuma, alegremente promptos a conserval-a ou a perdel-a, segundo Deus ordenar.

Quando o Zulú comprehendeu, toda a face se lhe illuminou:

--Grandes palavras, meu pai Incubú! Grandes, soberbas palavras que enchem bem a bôca d’um forte! Que é a vida, na verdade? É a semente da herva que o vento sopra aqui e além. Ás vezes cae em boa terra e fructifica; outras vezes, na rocha dura e definha... O homem nasce para morrer. Mais tarde ou mais cedo, que importa? É sempre a morte. Eu por mim irei comtigo, Incubú! Irei por montanha e deserto, e ser-te-hei sempre fiel...

Parou. E subitamente rompeu n’uma d’essas rajadas de poesia, frequentes nos Zulús, que tanto surprehendem os que pela primeira vez as testemunham, e que, apesar de nevoentas, redundantes, e decoradas de geração em geração, mostram que se a raça não é intelligente, é pelo menos imaginativa.

--Que é a vida (exclamava Umbopa, abrindo os braços, n’aquelle tom cantado que os Zulús tomam n’esses momentos de exaltação). Que é a vida? Dizei-me, oh brancos, vós que sabeis os segredos d’este mundo, e do mundo das estrellas que brilha por cima, e do outro mundo que está para além das estrellas! Dizei-me, oh brancos, dizei-me o segredo da vida! D’onde vem ella, para onde vai?... Não podeis, não sabeis! Escutai então! Nós sahimos da treva, e para a treva marchamos. Como um passaro acossado pela tormenta, nós sahimos do fundo da escuridão: durante um momento passamos, e as azas brilham-nos á luz das fogueiras: depois, de novo e para sempre mergulhamos na treva! A vida é o pyrilampo que fulgura de noite e de dia é negro! É o halito dos rebanhos no ar de inverno! É a sombra que corre sobre a relva, e que desapparece ao poente!...

Calára-se, com os braços ainda abertos, o olhar perdido nas alturas.

--És um homem bem singular, Umbopa! Exclamou o barão, que o escutára assombrado.

O outro pareceu acordar, sorriu:

--Creio que nos assemelhamos, Incubú. Talvez eu tambem vá procurando um irmão entre as gentes que estão para lá das montanhas.

Olhei para Umbopa, com o sobr’olho franzido.

--Que gentes? Que sabes tu das gentes que vivem para lá das montanhas?

--Pouco, Macumazan, muito pouco. Ha para além uma terra de feitiços, de jardins, de gente valente... Ha tambem uma grande estrada branca, toda de pedra. Assim ouvi. Mas de que vale dizer? Quem lá chegar, lá verá!

Aquelle homem evidentemente sabia alguma coisa que não queria revelar. Elle decerto percebeu a minha desconfiança--porque acudiu, espalmando as mãos:

--Não te arreceies, Macumazan! Não te arreceies! Não abro covas para que tu cáias dentro. Se chegarmos a atravessar o deserto, eu te contarei o que sei. Mas a Morte está lá com uma lança, á nossa espera. Melhor te fôra, Macumazan, voltar aos teus elephantes... Fallei o que tinha a fallar.

E meneando a azagaia á maneira de saudação, desceu o comoro, recolheu ao acampamento--onde d’ahi a instantes o encontrámos limpando uma carabina, attento, calado, como qualquer servo cafre vasio de pensamento e vontade.

--Homem extraordinario! Murmurou o barão.

--Extraordinario de mais! Não gósto nada d’aquelles mysterios... Mas, emfim, nós estamos mettidos n’uma aventura phantastica, e um Zulú mysterioso de mais ou de menos--não tira nem põe!

Na manhã seguinte começámos os preparativos para a marcha. Era impossivel naturalmente levar comnosco, através do deserto, todo o pesado armamento, e as cantinas. Fomos portanto forçados (depois de debandar os carregadores) a confiar tudo a um velho cafre, um atroz sacripante, que possuia alli uma aringa consideravel. Bem penoso me era abandonar as nossas magnificas armas á mercê d’aquelle velho malandro--cujos olhos se fixavam já nos nossos bens com um fulgor de cubiça e rapina. Tomei por isso as minhas precauções.

Comecei por carregar as espingardas. Depois declarei ao bandido, n’um tom cavo, que aquelles canos estavam enfeitiçados--e que se elle lhes tocasse «alli» (mostrei o gatilho), os demonios fugiriam de dentro despedindo um raio! Immediatamente (como eu calculára), o Cafre puxou o gatilho a uma carabina «Express». E o raio partiu. Partiu, com tanta felicidade, que matou uma vacca que pastava pacificamente a distancia, á beira d’agua--e atirou o velho de pernas ao ar, com a inesperada força do recúo. O pavor do malandro foi indizivel. Tremia todo, dava pulos em volta da vacca morta (que depois, mais tranquillo e com toda a impudencia, queria que eu lhe pagasse), olhava para o céo, olhava para o chão... Por fim rompeu aos berros:

--Tirem esses demonios que estoiram! Ponham-os lá em cima, sobre o colmo!... Ai, que não fica vivo um de nós!

Apenas elle serenou, continuei a minha predica. Affirmei-lhe, com olhares esgazeados, que se ao voltarmos, uma só arma d’aquellas faltasse, eu, que possuia as artes dos brancos, o mataria a elle e a toda a sua gente por meio de bruxarias sangrentas: e que se nós morressemos e elle tentasse apoderar-se do que era nosso, eu voltaria em espirito perseguil-o, puxar-lhe de noite pelos pés, tornar-lhe o gado bravo, dessorar-lhe o leito fresco, seccar-lhe a semente na terra,--e fazer a vida na aringa tão dura e terrivel que seus proprios filhos o amaldiçoariam... Emfim, dei-lhe uma idéa razoavel do Inferno, com horrores ineditos. O velho malandro, espavorido, jurou que olharia pelas nossas armas como se fossem os ossos de seu pai! Era um patife infinitamente supersticioso.

Em seguida combinámos o que nós cinco--o barão, o capitão John, eu, Umbopa e Venvogel--deviamos levar comnosco através do deserto. Muito calculámos, muito experimentámos. Não lográmos chegar a um peso menor de quarenta arrateis por homem. E havia escassamente o necessario! Eis aqui o que conduziamos:

Cinco espingardas--com a competente munição (quatrocentas cargas);

Tres rewolvers;

Cinco cantis d’agua, de cinco quartilhos cada um;

Cinco mantas;

Vinte e cinco arrateis de biltong-- que é uma especie de carne sêcca;

Dez arrateis de contas de vidro para presentes aos indigenas;

Navalhas, phosphoros, um compasso, um filtro d’algibeira, uma enxó, uma garrafa de cognac, tabaco--e os fatos que tinhamos no corpo.

Era tudo: e era pouco, como necessidade e conforto, n’uma semelhante empreza! Ainda assim peso consideravel para cinco homens acarretarem, por um sol terrivel, através d’um deserto esteril!

Depois, com immensas difficuldades, persuadimos tres negros da aldeola a acompanharem-nos durante vinte milhas, levando cada um ás costas uma larga cabaça d’agua fresca. O meu fim era podermos encher de novo os cantis, depois da primeira noite de marcha (porque decidiramos partir na frescura da noite). Os negros, a quem eu contára que iamos caçar o abestruz, não acreditaram: tinham por certo que morreriamos de sêde e de fome no grande sertão: elles proprios temiam a morte e os demonios que vagam no deserto: e só consentiram em nos seguir, a troco de tres facas de matto e d’uma manta vermelha.

Durante todo esse dia descançámos e dormimos. Ao pôr do sol celebrámos um grandioso jantar, de caça, de carne fresca e de chá--«o ultimo chá, observou John com melancolia, que naturalmente beberiamos por longos e longos mezes». Depois, apetrechadas as mochilas, esperámos que nascesse a lua. Perto das nove horas subiu ella, em toda a sua serena e pensativa gloria, inundando de luz branca e vaga todo o immenso deserto, que parecia tão mudo, solemne, impenetravel e virgem de pégadas humanas como o claro firmamento que por cima resplandecia. Com a lua que se erguia nos erguemos nós tambem. Tudo estava prompto, os negros de cajado na mão:--e todavia hesitavamos ainda, como o fraco homem hesita sempre perante o Irrevogavel. Lembro-me bem. Adiante de nós alguns passos, Umbopa, de azagaia na mão, com a carabina a tiracollo, olhava fixamente para o deserto: atraz de nós, n’um grupo, Venvogel, com os tres negros que levavam as cabaças d’agua, esperavam, direitos e mudos: e nós tres, os homens brancos, muito juntos, sentiamos bater forte o coração.

De repente, o barão tirou devagar o chapéo. E com profunda emoção:

--Amigos, vamos começar uma das mais estranhas jornadas que homens têm ousado tentar. O que será de nós, não sei: mas, para bem ou para mal, juntos estamos, juntos nos encontraremos sempre! E agora, antes de partir, ergamos o pensamento para Aquelle que tudo póde!

Escondeu a face entre as mãos, ficou immovel. O capitão John e eu baixámos tambem a cabeça, com reverencia, com humildade. Eu por mim, confesso, nunca fui homem de orações. Caçadores de elephantes, na dura vida d’Africa, raro se lembram de fallar a Deus. Em todo o caso, n’aquelle momento, rezei. Rezei com fervor; e senti-me depois mais alegre e mais leve. Creio que o capitão (religioso no fundo, apesar de praguejar medonhamente) tambem rezou. O barão esse era homem de piedade e crença... Quando destapou o rosto, olhou em redor, ergueu o braço,--e com um bello ar de resolução e de esperança:

--Prompto?... Larga!

Os bordões resoaram na terra dura,--e largámos.

Para nos guiar no deserto tinhamos apenas as distantes montanhas de Suliman, e o roteiro que o velho D. José da Silveira traçára no pedaço de camisa. Cada um de nós trazia na algibeira uma cópia d’esse mappa rude. Mas, considerando que essas linhas tinham sido riscadas por um homem meio morto, ha trezentos annos--era bem certa a sua utilidade? A nossa salvação, n’aquella jornada, seria encontrar a lagôa, ou poça de agua salobra que o velho fidalgo portuguez marcára a meio caminho entre a aldeia d’onde partiramos e as serras de Suliman. Se a não achassemos, tinhamos certa a morte, uma morte terrivel, a morte pela sêde. E, para mim, as probabilidades de descobrir uma lagôa de tres ou quatro metros n’aquella vastidão de areia e tojo, parecia-me minima, infinitesima. Mesmo suppondo que o Portuguez a marcára com exactidão--quem nos afiançava que n’esses trezentos annos ella não seccára ou não fôra coberta pelas areias movediças?

Era n’isto que eu pensava--emquanto silenciosamente, como sombras, iamos marchando sob o luar silencioso. O caminho não era facil: o tojo denso e espinhoso retardava-nos o passo: a areia mettia-se nos sapatos, e cada meia hora deviamos parar para os esvasiar: e, apesar da noite não estar quente, havia no ar alguma coisa de pesado e de espesso, que amollentava. Mas o que sobretudo nos opprimia era a solidão, o silencio--o infinito, terrivel silencio. John ainda tentou assobiar uma cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho de teus dôces olhos, parecia lugubre n’aquella severa immensidade. O engraçado homem emmudeceu. E seguimos n’uma fila muda através do matto mudo.

Perto da meia noite, sobreveio uma aventura que nos assustou--e depois nos divertiu immensamente. John, como marinheiro, levava a bussola, e marchava adiante, guiando. De repente ouvimos um berro--John desapparece! Ao mesmo tempo rompia em torno de nós uma balburdia medonha de roncos, bufos, grunhidos, sons de patas fugindo--e vemos fórmas, como garupas, galopando através do tojo, entre rolos d’areia. Os negros atiraram-se ao chão, gritando que eram «demonios acordados»! Eu proprio e o barão ficámos surprezos:--e o nosso assombro cresceu quando avistámos John, apparentemente montado n’um potro, fugindo aos galões para o lado dos montes, e ganindo como um desesperado. Um momento mais--e vêmol-o sacudir os braços no ar, e de novo desapparecer, no matto baixo, com um baque tremendo. Corremos para elle e percebemos o caso estranho: tinhamos ido cahir no meio d’um rebanho de zebras adormecidas: John estatelára-se exactamente sobre as costas d’uma, enorme: e o bicho, pulando espavorido, abalára com o nosso amigo nas ancas. Felizmente não se magoára no tombo final: fomos dar com elle sentado na areia, de monoculo firmemente cravado no olho, aturdido, indignado--mas intacto de pelle e osso.

Depois d’isto marchámos socegadamente até perto das duas horas da noite. Fizemos então uma paragem, bebemos uns goles d’agua (não muitos, nem largos, porque a agua passava a ser preciosa), e ao fim de trinta minutos de descanço recomeçámos a caminhar para diante, para diante sempre, até que o nascente se tingiu de laivos de rosa. Vimos as estrellas desmaiar, vivas barras alaranjadas alongarem-se ao rez do horisonte, a lua declinar mais livida que um cirio, longos raios de luz varar e colorir de fogo os nevoeiros, todo o deserto cobrir-se d’uma tremula refracção d’ouro--e ser dia!

Não parámos apesar de já cansados--pela certeza de que bem cedo o sol, nado e alto, nos impediria de dar um passo unico, sob o seu torrido esplendor. Com effeito, ás seis horas já ardia! Por felicidade avistámos então na planicie um montão de rochas. Para lá nos arrastámos, exhaustos. E por felicidade maior, uma enorme lasca de pedra pousada sobre grossos blocos fazia como um telheiro, cuja sombra cahia sobre um pedaço d’areia fina. Abrigo providencial! Alli nos aninhámos: e, depois de beber alguns goles d’agua bem contados e de comer uma lasca de biltong, adormecemos deliciosamente.

Ás tres horas acordámos. Os carregadores que tinham trazido as cabaças já se preparavam para voltar á sua aringa. De sorte que absorvemos uma farta tarraçada d’agua, enchemos de novo os cantis, e distribuimos pelos homens as facas de matto promettidas. D’ahi a instantes vimol-os (não sem uma vaga melancolia) voltar costas ao deserto e romper a marcha para o lado da sua aldeia, para o lado da frescura e da agua!

Ás quatro e meia mettemos de novo a caminho. A cada passo tudo de redor se parecia alargar em silencio e desolação. Ao principio ainda avistavamos, aqui e além, entre o matto, um abestruz. Depois, nem mesmo reptis topavamos na planicie arenosa. A nossa unica companhia era a mosca, a mosca ordinaria e caseira... Digno e veneravel animal! Em qualquer logar em que o homem penetre, deserto, montanha, caverna--a mosca lá está. Foi este decerto o primeiro dos sêres vivos que surgiu sobre a terra. Já havia moscas para pousar no nariz de Adão. O derradeiro homem ha de morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno á face. E talvez haja moscas no Paraiso.

Ao sol-posto parámos, esperando que nascesse a lua. Mais bella e serena que nunca surgiu ella ás dez horas--e toda a noite, sob o seu calmo e pensativo brilho, na mudez da vastidão, caminhámos, caminhámos... O sol nado pôz um termo á valente marcha. Sorvemos por conta uns goles d’agua dos cantis, atirámo-nos para cima da areia, e alli nos tomou o somno a todos quatro simultaneamente. Não havia necessidade que um velasse. Nada tinhamos a recear, nem de homem nem de fera, n’aquella immensidade despovoada. D’esta vez porém nenhuma rocha nos abrigava--e ás sete horas acordámos sob o sol faiscante, com a sensação que deve experimentar um bife de lombo achatado sobre a grelha. Estavamos sendo fritos! O sol por cima, a areia por baixo, seccavam-nos o sangue nas veias. Todos nos erguemos, de salto, quasi sem respiração.

--Santo Deus! Murmurou o barão, sacudindo os enxames de moscas.

--Póde-se chamar a isto calor! Gemeu do lado o capitão, que arquejava.

Podia-se chamar, na verdade. E eram apenas sete horas! Em toda a vasta extensão nem um abrigo! Só matto rasteiro--e por cima uma vibração radiante, tão viva e intensa que viamos tremer o ar.

--Que se ha de fazer? Exclamou o barão. É impossivel aguentar isto!

Olhámos uns para os outros, estupidamente.

--Se abrissemos uma cova? Lembrou John. Podiamos metter-nos dentro e cobrir-nos com tojo... É uma idéa.

Não brilhante! Mas era a unica:--de modo que, já com a enxó, já com as mãos, passámos a abrir uma cova do tamanho aproximado d’uma larga cama. Cortámos uma porção de matto; e alli nos sepultámos, collados como sardinhas n’uma caixa, todos quatro, o barão, John, eu e Umbopa,--porque Venvogel, como Hottentote, não sentia os ardores do sol. Foi elle que nos cobriu de matto. Realmente, assim, estavamos ao abrigo dos raios perpendiculares do sol:--mas que pavorosa ardencia a d’aquella fossa, em que cada torrão, junto do corpo, era como uma braza viva! Não comprehendo como nos desenterrámos vivos. Dormir, impossivel! Jaziamos estendidos, hirtos, sem ter já que suar, quasi cortidos, arquejando anciosamente. Só possuiamos o consolo de humedecer de vez em quando os beiços com uma gota d’agua muito medida! Esta avara medição da agua era o tormento maior. A cada instante necessitavamos recalcar a furiosa tentação de sorver d’um só trago os quatro cantis. Mas quê! Se a agua faltasse--breve viria a morte!

Tudo tem um fim n’este mundo, diz a Sabedoria oriental, comtanto que se possa esperar. Esperámos: a horrivel, interminavel manhã passou: e pelas tres horas preferimos encontrar a morte, andando (se a morte tinha de vir) a ser por ella lentamente envolvidos n’aquelle infame buraco. Reconfortámo-nos com um curto sorvo á nossa agua,--que diminuia terrivelmente, e subira já á temperatura do sangue. E com um esforço rompemos de novo através da planicie flammejante.

Tinhamos transposto umas dezesete leguas de ermo. Ora no roteiro do velho D. José da Silveira, a total extensão do deserto estava fixada em quarenta leguas; e a famosa poça de agua salobra vinha marcada a meio do deserto. A esse tempo, portanto, deviamos estar a umas tres leguas da agua--se a agua existia! Em toda a tarde, porém, fizemos pouco mais d’uma milha por hora. Ao pôr do sol parámos á espera da lua. Deixei-me cahir para o chão, como um morto, cerrei os olhos. Mas d’ahi a um instante Umbopa fez-me erguer e notar, á distancia de oito ou nove milhas, uma especie de outeiro redondo e liso que se erguia abruptamente na planicie rasa. Não parecia uma elevação natural de terreno, na sua semelhança estranha com uma metade de laranja. Quando me tornei a deitar adormeci logo, murmurando: «Que será?...»

Ao romper da lua de novo partimos, já alquebrados de cansaço e de sêde. O andar franco e firme acabára para nós. Era agora um arrastar de passos quasi cambaleantes, com paragens bruscas de meia em meia hora, em que cahiamos para cima da areia, sem força, de coração desmaiado. Nem animo nos restava para conversar. Até ahi ainda gracejavamos, heroicamente. John sobretudo--jovial camarada! Mas agora! Nem voz tinhamos para gemer!

Finalmente, perto das duas horas, vencidos de corpo e d’alma, chegámos ao pé do comoro estranho. Era uma especie de duna d’areia, escura, lisa, atarracada, da altura d’uns trinta metros, e cobrindo na base duas geiras de terreno. Parámos. E desesperados com a sêde, sorvemos o resto da agua. Tinhamos meio quartilho por bôca! Podiamos ter emborcado um almude!

Cada um em silencio se estendeu para dormir. Eu fechava os olhos, resvalava já dôcemente no esquecimento e no sonho, quando ouvi Umbopa ao meu lado murmurar para si proprio em zulú:

--O que é a vida! Se ámanhã não achamos agua, a lua ao nascer encontra aqui quatro mortos... Vida, sombra que passa! Vida, murmurio que finda!

Apesar do calor senti um arripio. Pois tanta era a fadiga, que confrontado por esta probabilidade (uma agonia de sêde n’um deserto d’areia!), adormeci profundamente.


Eram quatro da manhã quando acordei. E bruscamente entrou commigo a tortura da sêde! Estivera todo o tempo sonhando que passeava á beira d’um regato d’agua, muito puro e muito frio, bordado de relvas e de grandes arvores de fructas... Quando me ergui esfreguei a face com ambas as mãos; mãos e face pareceram-me mais sêccas e duras do que coiro; e as palpebras e os beiços estavam tão pegados, tão collados, que tive de os descerrar á força com os dedos, como se os unisse uma colla forte. A madrugada ainda vinha longe; mas não reinava no ar a natural frescura matutina, antes uma espessura molle e morna intoleravelmente pesada. Os outros dormiam... Fiquei callado, olhando em redor a desolada solidão. E pouco a pouco comecei a sentir de novo, junto de mim, o murmurio fresco do regato que corria, o ramalhar da verdura, pios d’aves, e toda uma sensação de paz, de sombra, de abundancia, que me fazia sorrir sósinho n’um immenso contentamento... Ao mesmo tempo tinha a certeza do deserto e da aridez que me envolvia. Creio na verdade que delirei!

Voltei a mim, quando os outros em redor se começaram a mexer, erguendo-se devagar sobre o cotovêlo, esfregando como eu as faces resequidas, separando á força como eu os labios sem saliva e mirrados. Já rompia a claridade. Apenas acordados todos, e conscientes, começámos a fallar da nossa situação--que era sombriamente desesperada. Não nos restava uma gota d’agua! Voltámos os cantis para baixo, chupámos-lhes os gargalos. Mais sêccos que ossos! O capitão John, que guardára a garrafa de cognac, sacou-a da mochila, consultou-nos com um sedento olhar.--Mas o barão arrancou-lh’a das mãos. Beber alcool, n’aquelle estado?... Era a morte.

--Mortos estamos nós (murmurou o capitão encolhendo os hombros) se d’aqui á noite não achamos agua!

--Se o roteiro do Portuguez estivesse exacto, disse eu suspirando, a poça d’agua devia apparecer por aqui, algures... Foi n’esta altura exactamente que elle a achou...

Os outros nem responderam. Realmente nenhum de nós tinha já confiança no roteiro do velho fidalgo. Mesmo que a poça existisse--como encontrar n’essa immensidão o sitio exacto e preciso onde ella estaria, mais pequena e perdida do que uma moeda de prata n’uma praia d’areia? Só por um «bamburrio»! Ou só se ella jazesse junto d’accidente do terreno, que, pela sua especial saliencia na vasta planicie, inevitavelmente attrahisse os olhares e os passos.

A claridade ia crescendo; e quando assim estavamos, lançando conjecturas, n’esta terrivel anciedade--reparei que o nosso Hottentote Venvogel andava a distancia, com os olhos no chão, lentamente, como quem procura um rasto... De repente parou, soltou um grito, com o braço espetado para a terra.

--Que é? Exclamámos todos.

E corremos alvoroçadamente.

--Pégadas de corço! Bradou elle em triumpho, apontando para o chão.

--E então?

--Corços nunca andam longe d’agua!

--É verdade! Gritei eu. E louvado por isso seja Deus!

Foi como se renascessemos á vida. Não era ainda a agua--mas a esperança d’ella, para breve! E n’uma crise afflictiva como a nossa, uma esperança, por mais vaga e tenue, vale sobretudo pela coragem de que enche logo a alma.

Venvogel no emtanto começára a andar em redor, com o nariz erguido (o seu largo nariz mais chato que o d’um bull-dog), sorvendo o ar quente, farejando.

--Cheiro agua! Dizia elle, cheiro agua!

E nós todos atraz d’elle, farejando tambem, quasi já viamos a agua--sabendo bem que estes Hottentotes, como todos os selvagens, possuem um faro maravilhoso. Mas n’esse instante os grandes raios do sol que nascia bateram-nos o rosto. E olhando, descobrimos uma tão grandiosa paizagem, que por um momento esquecemos a agua e os tormentos da sêde!

Diante de nós, a umas dez ou doze leguas, rebrilhando como prata nos primeiros raios do dia, erguiam-se os dois enormes montes que o portuguez chamára os «Seios de Sabá»; e de cada lado d’elles, estendendo-se sem fim, durante centenares de milhas, a vasta cordilheira de Suliman! Não é possivel transmittir, no verbo humano, a incomparavel grandeza e belleza d’aquelle quadro de montanha!

Alli estavam as duas enormes serras que não têm iguaes na Africa, nem creio que no resto do mundo, medindo pelo menos mais de quinze mil pés d’altura, emergindo da cordilheira infinita--brancas, mudas, de portentosa solemnidade, enchendo o céo até acima das nuvens. E o que esmagava a alma, era a assombrosa estructura. A cordilheira estendia-se como um muro disforme de granito, d’altura de mil pés: as duas serras formavam como os dois torreões d’uma porta, perdidos nas profundidades: a parte da serra que separava os dois montes, sendo talhada a pique, lisa e rigorosamente horisontal no alto, reproduzia a configuração d’uma porta prodigiosa:--e o aspecto todo era como o d’uma muralha cercando uma cidade fabulosa de sonho ou de lenda!

Bem justamente chamára o velho fidalgo portuguez aos dois montes «Seios de Sabá»! Tinham com effeito a fórma perfeita de dois peitos de mulher: as suas vastas faldas iam subindo da planicie, n’uma curva dôce e tumida, parecendo áquella distancia formosamente redondas e lisas: e no cimo de cada uma, um immenso outeiro sobreposto, todo coberto de neve, semelhava exactissimamente a ponta, o bico d’um peito. Prodigiosa estructura! Se a Terra, como pretendia a antiga Mythologia, é uma mulher, a enorme Cybele--ahi estavam decerto os seus peitos uberrimos! Mas á minha imaginação (nunca muito inventiva, mas perturbada e excitada n’esse momento pela fraqueza) aquillo tudo se afigurava uma muralha estupenda, cercando e defendendo uma região de infinito mysterio; e a cada instante me parecia que a porta de granito ia rolar, abrir-se com fragor, e desvendar algum segredo secular--o segredo talvez da Terra d’Africa! E o mais extraordinario foi que, emquanto assim contemplavamos assombrados, começaram a subir, a agglomerar-se em torno aos dois montes lentas e estranhas nevoas e nuvens, como para esconder aos nossos olhos mortaes a magestade d’aquelle ádito, que uma vontade divina nos deixára por um momento entrever. D’ahi a pouco os «Seios de Sabá» estavam envolvidos de todo, resguardados sob o mystico véo--através do qual só podiamos distinguir agora as suas linhas, formidavelmente espectraes!... Depois, mais tarde, descobrimos que esses montes, em tudo singulares, estavam ordinariamente velados por esta curiosa nevoa, como por uma cortina de Sacrario. Só a certas horas, ao romper do sol, a cortina se descerrava, como n’uma celebração, desvendando aos homens a maravilha sem par.

Passada a violenta surpreza, de novo nos considerámos com a mesma anciosa interrogação--«que fazer?» Venvogel insistia, convencido, que lhe cheirava a agua:--mas debalde buscavamos, trilhavamos o terreno em redor, esquadrinhavamos através do matto. Nada! Só a areia ondulando, com manchas de matagal. Démos a volta toda ao singular outeiro onde pararamos de noite. Avançámos para os lados, em todas as direcções do vento, com attentos e lentos passos, e olhos sôfregos que furavam a terra. Nada! Nenhum vestigio d’uma nascente, d’uma poça, d’um charco. Só areia, arido tojo.

--Idiota! Gritei eu desesperado com o Hottentote. Não ha, nunca houve aqui agua!

N’aquella aspera, arida immensidade não parecia, com effeito, haver possibilidade, nem sequer verosimilhança d’agua... E quanto tempo de resto poderia durar alli uma «poça salobra», como a que encontrára o velho fidalgo, sem ser chupada pelo sol ardente ou atulhada pelas areias movediças?

No emtanto Venvogel, o Hottentote, continuava a farejar, com as ventas erguidas e abertas:

--Eu sinto o cheiro d’agua, patrão. Sinto-a no ar!

--No ar não duvido. Ha agua que farte nas nuvens! Tambem não duvido que venha a cahir. Mas ha de ser para nos lavar os esqueletos!

O barão no emtanto cofiava a barba pensativamente:

--E todavia, murmurava elle, por aqui a encontrou o velho portuguez! O sitio é este. Foi aqui, em volta. A meio caminho exacto, na linha direita de norte a sul, da aringa de Sitanda ás Serras. É aqui. Aqui esteve agua!

Sim, mas ha trezentos annos! Em tres seculos muita agua brota e sécca! Quem nos afiançava de resto a exactidão do portuguez, esvaído de fome, meio delirado, no começo da sua agonia? Já não era pequena estranheza que elle a tivesse encontrado, n’esta deserta immensidade, justamente quando d’ella lhe dependia a vida!... A não ser que para ella fosse attrahido insensivelmente e naturalmente por algum accidente de terreno, muito saliente e muito visivel de longe--como um bosque, uma collina... Uma collina!

E quando eu assim pensava, eis que o barão grita, como echoando o meu pensamento:

--No alto da collina! Talvez a agua esteja no alto da collina!

--Tolice! Acudiu o capitão encolhendo os hombros. Agua no topo d’uma collina! Onde se viu isso?

--Procuremos! Disse eu, com um bater de coração que era todo de esperança.

Trepámos anciosamente pelo outeiro. Umbopa corria adiante. De repente estaca, com os braços no ar:

--Nanzie manzie! (agua aqui!)

Pulámos para junto d’elle:--e com effeito, mesmo no topo da collina, n’uma cova redonda como uma taça, lá estava agua, agua escura, agua lôbrega--mas agua! Agua! Agua! Gritavamos de puro gozo. E n’um momento, estirados de barriga no chão, com as faces na poça, sorviamos deliciosamente a grandes e rapidos sorvos aquelle liquido desappetitoso, que tão bem imitava agua. Céos! O que bebemos! E mal findámos de beber, arrancámos o fato, saltámos para o charco, e, sentados n’elle, ficámos horas a embeber-nos de frescura através da pelle--da nossa pobre pelle mais dura e mais sêcca que um pergaminho secular.

Quando nos erguemos, refrigerados e saciados, cahimos sobre a carne sêcca. Comemos a fartar. Uma longa cachimbada por cima completou aquella hora de consolação. E o somno que nos tomou até ao meio dia, deitados junto da poça e da sua humidade, foi profundo e bemdito!

Todo a quelle dia tardámos junto da agua, bebendo d’ella, mergulhando n’ella, olhando para ella--e dando louvores sem conta ao velho fidalgo que tão exactamente a marcára no mappa. Por fim, tendo enchido d’agua os estomagos e os cantis, continuámos a marcha, mais animados e ageis, ao erguer da lua cheia. Fizemos vinte e cinco milhas n’essa noite. Não tornámos a encontrar agua. Mas seguiamos confiados, com a certeza de a achar, abundante e fresca, nas faldas das serras. Quando o sol se ergueu e desfez as nevoas, avistámos de novo a cordilheira e os dois «Seios de Sabá» (agora afastados de nós apenas vinte milhas) tomando o céo com a sua magestade sublime. Essas vinte milhas cobrimol-as durante a noite. E ao outro alvorecer pisámos emfim as primeiras ladeiras do seio esquerdo de Sabá!

Com amargo espanto não encontrámos agua, e a nossa já ia findando! Não havia agora esperança de topar nascentes antes de chegarmos á linha de neve, que branquejava lá longe, no alto da serra: e já a sêde nos começava outra vez a torturar. Desconsoladamente fomos arrastando os passos por sobre o torrido chão de lava que formava a base do monte. Caminhada atroz! Pelas onze horas da manhã, apesar de curtos repousos, estavamos exhaustos--por causa sobretudo dos ladrilhos de lava asperos e rugosos que nos magoavam horrivelmente os pés. De sorte que, descobrindo a umas trezentas jardas acima grossos pedregulhos de lava, decidimos descançar umas fartas horas á sua sombra providencial. Para lá nos empurrámos, por lá nos abrigámos. E não foi pequena surpreza (se ainda nos restava a faculdade de experimentar surprezas!) avistar a pequena distancia, n’um planalto formando terraço sobre um barranco, uma extensa e fresca tira de verduras. Evidentemente a lava decompondo-se formára alli um chão de terra, onde as sementes trazidas por passaros tinham alastrado e verdejado... Démos, porém, pouca attenção a essas hervagens, porque não havia lá nem fructo nem agua--e de relva só Nabuchodonosor se conseguiu alimentar. Alli ficámos pois, estirados á sombra dos pedregulhos, sem força no corpo e sem esperança n’alma, pensando que nunca homens de senso se tinham arriscado a mais esteril, mais absurda aventura! Umbopa no emtanto, depois de considerar algum tempo em silencio a leira de verduras, caminhára para lá lentamente. E qual não é o meu assombro ao vêr aquelle individuo, ordinariamente tão composto e grave, romper em pulos phreneticos, brandindo na mão o quer que fosse de verde! Arremettemos para elle, na esperança anciosa de agua descoberta.

--É agua, Umbopa? Gritava eu pulando por sobre a lava.

--Agua e sustento, Macumazan! Exclamava elle agitando no ar a coisa verde, com effusivo triumpho.

Percebi emfim o que era. Era um melão! Tinhamos dado n’um meloal, um enorme meloal bravo, com milhares de melões, a cahir de maduros!

--Melões! Uivei eu para os companheiros que corriam atraz.

--Melões! Melões! Foi o berro victorioso que resoou nas quebradas.

N’um momento, cada um de nós tinha os dentes cravados n’um melão, sôfregamente. Comemos alli, entre todos, uns trinta melões; e apesar de mediocres creio que nunca nada na vida me soube tão deliciosamente. Mas o melão não alimenta--e refrescada a sêde não tardou a fome, mais intensa e aguda. Conservavamos ainda o biltong, a carne sêcca; mas já nos enjoava atrozmente: e além d’isso deviamos poupal-a com avaro cuidado, pela incerteza de encontrar outras provisões na longa ascensão da serra.

N’esse dia, porém, estavamos «em sorte decididamente», como disse John. Lançando os olhos para o deserto, emquanto conversavamos sobre esta terrivel evidencia, a fome--vi de repente uns oito ou dez grandes passaros voando em direcção a nós, lentamente.

--Atire, patrão, atire! Exclamou baixo o nosso servo hottentote, acaçapando-se immediatamente no chão.

Os outros agacharam-se tambem, para que, confundidos com a côr da lava, não fossemos avistados pelos passaros. Era um bando de enormes betardas, que no seu vôo direito e alto deviam passar a umas cincoentas jardas por cima das nossas cabeças. Tomei uma carabina Winchester, e esperei acocorado. Quando o bando vinha perto, ergui-me, com um grito e um salto. Assustados, os passaros juntaram-se todos precipitadamente em montão; e atirando á massa escura, pude facilmente abater um soberbo bicho, que pesava pelo menos vinte arrateis. Dentro de meia hora ardia uma fogueira de talos sêccos de melão: e o bicho aloirava em cima. Foi um banquete! Comemos aquella betarda toda, fóra carcassa e bico!

N’essa noite continuámos a ascensão do monte, á luz da lua, carregados de melões para a sêde. Á maneira que subiamos, o ar esfriava consoladoramente. Ao clarear do dia estavamos a umas doze milhas da linha de neve. Encontrámos mais melões: e a agua emfim, louvado Deus, já não nos inquietava, porque bem cedo penetrariamos nas regiões do gelo. No emtanto era immenso o nosso pasmo de não encontrar nascentes, quedas d’agua, um riacho corrente; porque decerto no verão as neves, derretendo, deviam encher d’agua aquellas encostas. Por onde corria a agua pois, para onde se sumia a agua? Só mais tarde descobrimos que (por uma causa ainda hoje para mim incomprehensivel) toda a agua, em riacho ou em queda, descia pela vertente norte da serra.

A subida cada vez se tornava mais aspera e custosa. Apenas faziamos uma milha por hora. A carne sêcca acabára. Melões, nenhuns mais encontrámos. O frio augmentava quasi a cada passada--o que nos permittia certamente caminhar de dia, mas nos regelava de noite terrivelmente! Havia agora muitas horas que não comiamos. A serra subia, subia diante de nós, cada vez mais desolada, mais núa de verdura ou vida. Os nossos momentos de repouso passavam n’um silencio sombrio e cheio de desesperança. Eu por mim ia já tão debilitado e confuso, que, d’esses tres dias que nos levou a ascensão da serra, não me recordo com bastante nitidez--e só poderia reconstruil-os pelos apontamentos do meu Diario. Na nota com data de 22 de maio encontro isto:--«Partimos ao nascer do sol. Vamos meio desmaiados de fraqueza. Só quatro milhas andadas. Comemos os pedaços de neve que começámos a encontrar. Frio intenso. Cada um de nós bebe uma gota de cognac. Para dormir amontoamo-nos uns sobre os outros: nem assim conservamos calor. Estamos verdadeiramente soffrendo de fome. Julguei que Venvogel, o nosso Hottentote, ia morrer esta noite».--Tudo isto é já terrivel. Mas o seguinte apontamento, datado de 23 de maio, recorda soffrimentos mais vivos:--«Estamos n’uma situação medonha. A não ser que encontremos que comer hoje, o nosso fim está proximo. O cognac acabou. Venvogel, que como todos os Hottentotes não póde aguentar frio, parece perdido. As ancias agudas da fome passaram. O que eu sinto (e os outros dizem que sentem o mesmo) é uma especie de adormecimento, de torpor no estomago. Estamos ao nivel da grande escarpa, que eu chamo a porta, o colossal muro de terra, lava e rocha, que liga os dois seios de Sabá. Para traz de nós estende-se o deserto que atravessamos... Para que o atravessamos nós?» Logo abaixo d’estas linhas ha outra, escripta decerto n’um dos momentos em que paravamos:--«Deus se amerceie de nós, que chegou o nosso fim!»

Esta linha não tem data, mas sem duvida foi traçada no dia 24. Depois os apontamentos falham; mas eu muito bem me recordo dos successos n’esse estranho dia. Iamos então caminhando através da neve, com paragens incessantes, impostas pela incomparavel fadiga. Tudo em redor era radiantemente, indescriptivelmente branco. E esta absoluta brancura, sob o absoluto silencio, tornava-se tanto mais desoladora, quanto evidenciava a ausencia de vida--e a impossibilidade de achar que comer, fosse animal ou planta. Quasi ao pôr do sol chegámos junto da «ponta do seio», d’essa enorme collina de neve dura, que, pousada no topo da montanha (da montanha que reproduzia a fórma perfeita d’um seio), parecia ella propria o bico d’esse peito descommunal. Apesar de exhaustos, prendemo-nos um instante na admiração d’aquelle esplendido cume de monte--mais esplendido ainda pela luz vermelha e côr de rosa em que os raios do sol poente o envolviam, dando-lhe um tom de carne, d’uma carne sobrenatural que de si irradiasse luz. Mas a admiração não podia durar em homens collocados como nós, a tão extrema visinhança da morte. O nosso mal era sobretudo o frio. Bem comidos, estimulados por um vinho generoso, ainda poderiamos aguentar a pavorosa temperatura d’aquellas neves eternas. Mas assim, moribundos de fome,--como resistir á noite que vinha cahindo? Quando o sol nos faltasse, como viveriamos, a menos de encontrar um abrigo? Abrigo!... Onde estava elle, n’essa branca e lisa vastidão de neve?

--A cova de que falla o portuguez, no papel, deve ser por aqui, murmurou o capitão John.

Pobre John! Tinha os olhos (como os outros, como eu decerto) encovados, esgazeados, rebrilhantes de febre, sobre a lividez da face hirsuta. Considerei um momento o pobre amigo encolhendo os hombros:

--Cova! Se tal cova existe... Na cova estamos nós, ou á beira d’ella.

O barão, porém, agora acreditava firmemente na escrupulosa exactidão do velho D. José da Silveira. «Se elle a achou (argumentava o barão, e com razão) é que essa cova está situada de tal sorte, tão saliente e tão visivel, que não póde deixar de attrahir os olhos, e logo os passos de quem fôr trepando a serra».

--Ainda a encontramos, e antes do sol posto! Affirmou elle com um grande gesto de esperança.

--Se a não encontramos (foi a minha consoladora replica) e a noite vier sobre nós, assim desabrigados, é o fim da nossa aventura. Em todo o caso, real ou metaphoricamente, é a cova!

Durante dez ou doze minutos arrastámos os passos n’um silencio mortal. Umbopa ia adiante, com os hombros abafados na manta curta, e um cinto de couro muito apertado, arrochado em volta da cinta «para encolher a fome». Eu seguia atraz, quasi vergado em dois. De repente tropecei n’elle que parára, e que me agarrou pelo braço:

--Macumazan, acolá! Exclamou surdamente, apontando com o cajado.

O que elle apontava era a linha abrupta onde começava, subindo, a primeira encosta do «bico do peito». E ahi na brancura da neve destacava uma mancha preta.

--É a caverna! Exclamou Umbopa.

Talvez fosse! Parecia, com effeito, a abertura negra d’um buraco. Para lá endireitámos os passos. E na realidade encontrámos uma gruta, de entrada baixa e lôbrega, que bem podia ser a que o velho D. José da Silveira marcára no seu roteiro. Em todo o caso alli estava um abrigo. E bemdito era o seu encontro--porque (como succede n’estas latitudes) o sol sumiu-se subitamente, e logo atraz d’elle, de golpe, sem crepusculo, sem gradação, a noite cahiu, gelada e negra. Enfiámos bem depressa para dentro da caverna, como animaes acossados. Aconchegámo-nos uns contra os outros, sentados no chão, costas com costas. E alli ficámos na treva, mudos, tiritando e procurando esquecer no somno a nossa extrema miseria. Mas o frio, intenso de mais, não nos consentia dormir. Estou convencido que n’aquella altura o thermometro marcaria regularmente quatorze ou quinze graus abaixo de zero! E era esta temperatura que tinhamos de affrontar, de todo alquebrados de fadiga, meio inanimados de fome!

Pois alli estivemos em montão, encolhidos uns nos outros, durante a infindavel noite, sentindo a cada instante, através do corpo, começos de congelação ora n’um pé, ora nos dedos, ora na orelha. Debalde nos apertavamos! Para quê! Nenhum tinha em si calor bastante para communicar á carcassa alheia. Ás vezes um conseguia dormitar durante momentos, mas para acordar logo em sobresalto, recomeçar a tremer. De resto, n’aquellas condições, o somno que se prolongasse--decerto se tornaria eterno. Foi uma noite angustiosa! Eu por mim creio que me conservei vivo por um violentissimo e teimosissimo esforço da vontade.

Um pouco antes da madrugada, Venvogel, o nosso pobre Hottentote, cujos dentes toda a noite tinham batido como castanholas, chamou baixo por mim, deu um pequeno suspiro, e ficou profundamente socegado, como se tivesse adormecido. As costas d’elle pousavam contra as minhas costas. Pareceu-me que as sentia pouco a pouco arrefecer. Por fim tornaram-se positivamente como uma grande pedra de gelo que me regelava. Duas vezes as repelli. Duas vezes a pedra se abateu sobre mim, mais fria. O ar no emtanto clareava. Á entrada da cova foi apparecendo como uma nevoa luminosa, feita da refracção do sol sobre a neve. Uma luz mais viva e fixa estendeu para dentro a sua brancura--e olhando então para traz descobri que o pobre Hottentote estava morto! Decerto morrera quando o ouvi suspirar. Pobre Venvogel! Não admirava que lhe tivesse sentido as costas cada vez mais frias, mais frias... A sua miseria findára. Alli estava agora, na mesma postura, com as mãos apertadas em torno dos joelhos, a cabeça cahida para baixo, gelado. Todos nos erguemos de salto, com horror. Já a esse tempo o dia penetrára na caverna, n’uma luz mortiça e vaga. De repente, ao meu lado, resoou um grito. Volto a cabeça, vivamente. E vejo--vejo ao fundo da gruta, que não tinha mais de quatro metros, uma fórma, uma figura humana, sentada n’uma pedra, com a cabeça toda descahida sobre o peito, os braços hirtos e pendentes para o chão! Aproximei-me mais, aterrado. E percebi que era tambem um morto. Peor ainda, percebi que era um branco!

Os nossos nervos, desorganisados já, não puderam com esta nova e brusca emoção. Tropeçando uns nos outros, largámos desesperadamente a fugir para fóra da caverna.


Mas depois, fóra, na plena luz, olhámos uns para os outros--envergonhados.

--Vou vêr outra vez, exclamou o barão terrivelmente pallido. Talvez a figura que vimos seja a de meu irmão.

Era possivel. E um por um, n’um silencio apavorado, atraz do barão, tornámos a penetrar na gruta. Ao principio, deslumbrados pela grande luz exterior e pela alvura da neve, nada distinguiamos na penumbra concava. Por fim a estranha, horrivel figura destacou, surgiu na sombra. Avançámos para ella. O barão ajoelhou, espreitou a face morta, teve um suspiro de allivio:

--Não, graças a Deus, não é elle!

Fui tambem olhar. Não, nem remotamente se parecia com esse sujeito chamado Neville, que eu encontrára em Bamanguato. O cadaver era o d’um homem alto, de meia idade, com feições aquilinas, cabello já grisalho, e longos bigodes negros. A pelle, perfeitamente amarella, estava toda esticada sobre os ossos. Não tinha fato, a não ser uns restos de meias altas, de lã, até aos joelhos. Do pescoço, preso por uma correntesinha, pendia-lhe um crucifixo de marfim. Todos os membros hirtos se lhe tinham petrificado.

--Quem poderá ser? Murmurei, assombrado.

O capitão John contemplava a figura pensativamente.

--Tenho uma idéa... Não póde ser senão elle! É o velho fidalgo! É D. José da Silveira!

Eu e o barão soltámos o mesmo grito de incredulidade:

--Impossivel! Ha trezentos annos!

Mas o capitão tinha as suas razões, e decisivas. N’uma temperatura como a da cova, que é a d’uma geleira, um corpo morto póde perfeitamente conservar-se trezentos annos--e mesmo tres mil... Essa temperatura de quinze a dezesete graus abaixo de zero nunca alli mudava; nenhum raio de sol entrára jámais n’aquella cova voltada para noroeste: não havia animaes que alli penetrassem e que destruissem o corpo. Que importavam tres seculos? A carne de açougue que vem da Nova-Zelandia para Londres dentro das geleiras artificiaes está fresca ao fim de trinta dias; e conservada em iguaes condições, não se deterioraria ao fim de trinta seculos. Naturalmente o escravo (de quem elle falla no papel) quando o encontrou morto, tirou-lhe o fato, não se deu ao trabalho de o enterrar, e abalou...

--E olhai! Accrescentou o capitão apanhando uma especie de osso da fórma d’um lapis, e aguçado, que jazia no chão, ao lado. Aqui está com que elle desenhou o mappa! Tirou sangue do braço, escreveu com esta ponta de osso!

Passámos o osso de mão em mão, em silencio, esquecendo as nossas proprias miserias no espanto d’aquelle encontro. Já não podia haver duvida. Alli estava elle pois, sentado n’uma pedra, frio e duro como ella, o homem cujo derradeiro escripto, traçado havia mais de trezentos annos, nos trouxera ao logar mesmo onde elle o escrevera--para o encontrar a elle proprio, na mesma attitude em que com seu sangue riscava o roteiro que d’além-tumulo nos guiava! Incomparavel maravilha! Alli tinha eu na mão a rude penna com que elle traçára essas linhas! E parecia que ante mim pouco a pouco resurgiam visiveis, redivivos, os momentos passados ha tres seculos:--o heroico fidalgo, morto de frio e de fome, procurando revelar ao seu Rei o segredo immenso que descobrira; a camisa rasgada, a veia aberta; as linhas tremulas anciosamente lançadas; a penna informe escorregando-lhe da mão; a treva da noite enchendo a cova; o derradeiro beijo pousado no crucifixo; um pensamento dado ainda aos seus, á terra d’onde partira n’um galeão, ao Rei que servia com indomada fé; por fim a morte, o lento e sereno resvalar para a morte, n’aquelle immenso silencio e na immensa solidão!

Por vezes mesmo, olhando para elle, parecia-me reconhecer as aquilinas e energicas feições do seu descendente, o pobre Silveira, que me morrera nos braços. Talvez imaginação. Em todo o caso elle alli estava, o primeiro, o antepassado, esse de quem o seu remoto neto me fallára, estendendo os olhos já embaciados para os distantes seios de Sabá. Alli estava; e provavelmente lá está ainda, lá estará, através dos seculos que hão de vir, para espantar outros aventurosos homens como nós, se jámais houver outros que cheguem a penetrar na sua espantosa e solitaria tumba!

--Vamos embora! Exclamou o barão, muito pallido.

Mas parou. E apontando para o corpo de Venvogel, que ficára na mesma postura, com os joelhos á bôca, os braços apertados em volta dos joelhos:

--Dêmos uma companhia ao pobre morto, para dormir n’este esquecimento.

Erguemos então o cadaver de Venvogel e collocámol-o sentado na pedra, junto do do velho fidalgo portuguez. Depois o barão quebrou a corrente que pendia do pescoço de D. José da Silveira, e guardou o crucifixo no seio. Eu proprio tomei o osso em fórma de lapis. Aqui o tenho ao meu lado, emquanto estas linhas escrevo. Ás vezes assigno com elle o meu nome.

Finalmente tendo-os deixado lado a lado, o altivo fidalgo d’outras eras e o pobre servo hottentote, a passar a sua eterna vigilia entre essas eternas neves, sahimos da caverna para a luz esplendida--e retomámos em fila o nosso triste caminho, pensando que bem cedo estariamos como elles, gelados e hirtos, n’um barranco da serra.

Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegámos emfim á extremidade do planalto do monte sobre o qual assentava o «bico do peito». E foi uma grande emoção. Por baixo de nós, adiante de nós, estava (devia estar) emfim essa região mysteriosa para além das serras, que nós vinhamos demandando:--mas toda ella se occultava sob um denso nevoeiro. Alli ficámos pois repousando, esperando. Pouco a pouco, as camadas mais altas da nevoa foram-se desfazendo. Avistámos então um pendor da serra, muito dôce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e appareceu aos nossos olhos famintos uma campina de herva verde, um regato correndo através, e á beira d’agua, deitados ou pastando, uns dez ou doze animaes que nos pareceram antilopes.

A nossa alegria--foi como a d’uma resurreição. Caça! Alli estava caça para comer, e deliciosa! Era a salvação, era a vida! A difficuldade era caçar--essa caça!... Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula--se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel--porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel--porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.

Emfim fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem par!--vemos um dos animaes por terra esperneando furiosamente. Berrámos de puro gozo. Estavamos salvos! Salvos! De fome já não morriamos! Corremos aos trambulhões pela neve abaixo:--e em poucos momentos tinhamos nas mãos os figados e o coração do animal, quentes e fumegando!

Mas surgia uma difficuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caça?

--Gente faminta não tem exigencias! Gritou excitadamente o capitão John. A ella, e crúa!

Não restava outra solução--e não nos pareceu repugnante. Arrefecemos as visceras na neve, lavámol-as na agua corrente--e devorámol-as com voracidade! Parece horrivel:--mas confesso que aquella carne crúa me soube divinamente! D’ahi a um quarto de hora, que mudança! Voltára-nos a vida, o vigor! O pulso batia outra vez, forte e regular. Eu por mim sentia positivamente o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias!

O barão apertou as mãos, e disse simplesmente:

--Louvado seja Deus por isto!

Ficámos olhando uns para os outros, muito tempo, sem falla, n’um sorriso mudo. E não havia em nós outra sensação--senão a de estarmos salvos, de estarmos vivos! Por fim adormecemos, envoltos dôcemente no sol, que subia macio e tepido. Quando acordámos, e esfregámos os olhos, o nevoeiro desapparecera. Toda a vasta região em baixo nos appareceu n’um relance. Demos um grande ah, lento e maravilhado! Nunca eu vira (nem outra vez verei!) terra mais deslumbrante! Mudo ainda, tonto da fadiga e da fome passada, parecia-me que morrera, que chegára ao Paraiso, e que o Senhor nos ia apparecer!

Estavamos no planalto d’um dos «Seios de Sabá», com um dos «bicos do peito» erguendo-se por traz de nós até ás nuvens, sublime e brilhante de neve. Logo por baixo desciam os vastos pendores da serra, n’uma profundidade de cinco mil pés; e para além das derradeiras faldas, a perder de vista, eram leguas e leguas d’uma terra esplendidamente fertil, de adoravel belleza. Viamol-a desdobrada ante nós como um immenso mappa em relevo; e os seus encantos differentes, assim abrangidos n’um relance, davam a impressão d’um paraiso resumido onde Deus prodigamente tivesse reunido as suas obras melhores. Escassamente se póde detalhar uma paizagem tão formosa e vária. Aqui alastrava-se uma vasta mancha de floresta; além um rio ondulava com vivos brilhos d’aço novo; para diante longas pradarias tapetavam o sólo de verde tenro e claro; mais longe era um lago que brilhava, grandes rebanhos que pastavam, ou uma collina onde a agua viva borbulhava e faiscava entre as rochas. As culturas abundavam, ricamente coloridas. A cada instante entre pomares e regatos avistavamos aldeias graciosas, com as cabanas coroadas por um tecto de colmo agudo. De tudo se elevava uma sensação prodigiosa de vida, de fartura, de paz. No horisonte surgiam picos de serras remotas, cobertas de neves. E um sol radiante derramava illimitadamente a alegria do seu fulgor d’ouro.

Duas coisas nos impressionaram. Primeiramente, que aquella região tão rica estivesse pelo menos cinco mil pés acima do nivel do deserto. E depois que toda a agua da serra corresse de sul para norte, do lado opposto ao sertão, indo unir-se ao magnifico rio que se perdia no horisonte azulado.

Nenhum de nós fallava, arrobados na contemplação d’aquella incomparavel natureza. Por fim o barão estendeu o braço:

--Ha uma estrada marcada no mappa, com o nome de estrada de Salomão, não é verdade? Pois lá está, além, para a direita...

E com effeito, para a direita, nos primeiros declives da serra, abaixo dos nossos pés, branquejava uma grande estrada! Tinhamos já perdido toda a faculdade de admirar. E a nenhum de nós pareceu estranho, que, no topo d’uma montanha, no centro d’Africa, a centos de leguas de toda a sciencia e civilisação, houvesse uma estrada, com as proporções e grandeza d’uma velha via romana, branca como neve, talhada sobre os abysmos.

--O melhor é descermos, disse simplesmente o capitão John.

A estrada ficava (como disse) á nossa direita, surgindo por traz de grossas penedias que se amontoavam no primeiro pendor da serra. Cortámos para lá, devagar, ora através de grandes espaços de neve, ora por sobre montes de lava. Quando dobrámos por fim as penedias, avistámol-a de repente em baixo, a algumas jardas. Era magnifica, toda cortada na rocha viva, e admiravelmente conservada! Mas, coisa extraordinaria, parecia começar alli, ao meio da serra, bruscamente. Continuámos a descida alvoroçados, pozemos emfim os pés sobre as suas fortes lages. Olhámos, explorámos em redor. A estranha via findava com effeito alli, na serra, entre umas rochas de lava entremeadas de neve!

--Extraordinario! Exclamou o barão. Porque começa esta estrada assim, ou porque acaba assim, de repente, no meio da serra?

Abanei a cabeça, em perfeita ignorancia.

--Parece-me que percebo, disse o capitão coçando o queixo. Esta estrada é simplesmente maravilhosa! Não acaba aqui. Antigamente galgava a cordilheira e seguia pelo deserto. Mas a parte que galgava a serra para além, foi coberta por montões de lava, n’alguma erupção: e a parte que cortava o deserto foi invadida pelas areias movediças. Não póde ser senão isto.

Talvez fosse. Em todo o caso largámos os passos por sobre essa surprehendente estrada que tinha o nome de Salomão. Esta suave descida por uma magnifica calçada, com as forças restauradas, e a abundancia a esperar-nos em baixo, nos ferteis campos cheios de gado,--era bem differente da subida pela neve acima, extenuados de fome e de fadiga, e com a afflictiva incerteza do que estaria para além. Na verdade, se não fosse a triste lembrança do pobre Venvogel e da sinistra cova, onde elle espectralmente ficára ao lado do velho fidalgo d’outras eras, poderiamos cantar de pura alegria. A cada milha que andavamos o ar cada vez se tornava mais macio e tepido:--e a região em torno parecia crescer para nós, a transbordar de abundancia e belleza. A estrada, essa, era positivamente portentosa. Affirmava o barão que tinha semelhanças com a estrada do Saint-Gothard sobre os Alpes. Eu por mim não vira maravilha maior! N’um certo sitio abria-se uma ravina medonha, d’uns trezentos pés de largura, d’uma profundidade de mais de cem pés: pois este abysmo estava vadeado por um colossal aqueducto, com arcos para a passagem das torrentes, sobre o qual a estrada seguia com soberba segurança. N’outros sitios cortada em zig-zags na rocha, contornava pavorosos precipicios, com parapeitos que a defendiam e formavam balcões sobre o abysmo. Mais adiante, perfurava um monte de rocha com um tunnel de trintas jardas.

Nas paredes d’este tunnel corriam singulares relevos representando guerreiros com cotas de malha, que retesavam arcos, guiavam carros de combate. Havia mesmo uma grande scena de batalha, com lanças em confusão, e captivos acorrentados.

--Tudo isto é obra egypcia, dizia o barão parando a cada instante. Tudo isto eu vi nos templos do alto Egypto. O nome da estrada virá de Salomão. Mas estas esculpturas são das mãos de egypcios.

Pela uma hora da tarde tinhamos descido a montanha até ás faldas baixas onde começava o arvoredo. Ao principio eram apenas raros arbustos silvestres. Depois a estrada penetrava n’um bosque de olmos, uns olmos cujas folhas brilham como prata, e que eu suppunha só existirem no Cabo.

--Estamos ao menos em terra de lenha! Exclamou enthusiasmado o capitão John. Vamos parar, e cozinhar um jantar. Eu por mim já digeri aquella carne crúa... Reentremos solemnemente na civilisação!

Todos com effeito tinhamos fome; e deixando a estrada, fomos em direcção a um regato que brilhava a distancia entre arvores e relvas. Bem depressa fizemos um fogo de ramos sêccos; e, cortando succulentos bifes do lombo da antilope que trouxeramos comnosco, assamol-os na ponta de espetos de pau, á velha maneira dos cafres. Ao fim do delicioso repasto accendemos os cachimbos--e estirados á sombra das frescas arvores, gozamos emfim, depois de tão longos e duros dias, um repouso perfeito.

O logar era adoravel. O regato, muito frio e muito puro, cantava sobre seixos que reluziam. As margens verdejavam, cobertas de fetos esplendidos entremeados com plumas de aspargos silvestres. Aqui e além cresciam tufos de flores. Uma brisa tépida e macia como velludo susurrava nas folhas dos olmos. Bandos de rolas arrulhavam meigamente. E de ramo em ramo faiscavam as azas de passaros mais brilhantes que joias.

Nenhum fallava, no enlevo d’aquella paz e d’aquella doçura. E por muito tempo nenhum de nós se moveu--até que o capitão John, surgindo de repente nú do leito espesso de fetos onde se enterrára, correu para o riacho, e mergulhou n’um longo e ruidoso banho. Deitado de costas, n’um bem-estar indizivel, occupei-me então a observar aquelle homem admiravel, que, apenas se achava n’uma região d’ordem, retomava os seus complicados habitos de asseio e de elegancia. Depois do banho, o nosso excellente amigo revestiu a camisa de flanella; e sentando-se á beira do regato, rompeu a lavar os seus collarinhos de gutta-percha. Finda esta barrela sacudiu, escovou, esticou as calças, o collete, o jaquetão, dobrou tudo cuidadosamente, e poz-lhe por cima pedras para acamar e desfazer os vincos. Em seguida, profundamente concentrado, passou ás botas, que esfregou com uma mão cheia de feto, e depois besuntou com gordura de antilope (que pozera de lado) até lhes dar uma apparencia comparativamente lustrosa e decente. Tendo-as examinado com cuidado, de monoculo fixo e cabeça á banda, encetou outras e mais delicadas operações. D’um pequeno sacco que trazia na mochila tirou um espelhinho e examinou cuidadosamente dentes, olhos, cabellos, barba--a barba já grossa d’oito dias. Este exame parecia humilhal-o, porque abanava a cabeça com desconsolação e tédio. Começou então pelas unhas que aparou e poliu; depois seguiu ao cabello que acamou e apartou... Mas de repente, com uma idéa, calçou as botas que puzera ao lado; e assim, de botas, com as pernas núas, e em camisa de flanella, ergueu-se para ir pendurar o espelhinho n’um ramo d’arvore. O arranjo não provou satisfatoriamente, porque voltou para a beira do regato, e com custo e arte equilibrou o espelho n’uma folha grossa de feto. Tornou logo a metter a mão no sacco e tirou uma navalha de barba... «Santo Deus! Pensei eu erguendo-me no cotovêlo, o homem irá fazer a barba?» Ia. Tomando outra vez o pedaço de gordura de antilope com que ensebára as botas, lavou-a escrupulosamente no regato, esfregou com ella desesperadamente a face e o queixo, e principiou a rapar o pêllo aspero de dez dias. Era porém uma operação difficil, porque cada movimento da navalha vinha acompanhado d’um angustioso gemido. Por fim conseguiu escanhoar a face esquerda e metade do queixo. Grande suspiro de allivio! E ia atacar a outra face--quando, de repente, vi uma coisa passar e lampejar por cima da cabeça.

John deu um pulo, com uma praga. Ergui-me tambem de salto--e na mesma margem do regato, a distancia d’uns trinta passos, dei com os olhos n’um bando de homens. Era uma gente de grande estatura, immensamente robusta, e côr de cobre.

Alguns d’elles traziam aos hombros pelles de leopardo, e na cabeça umas corôas de altas pennas, negras, direitas, que ondulavam na brisa. Em frente do bando, um rapaz d’uns dezesete annos conservava ainda o braço erguido e o corpo inclinado, na attitude graciosa d’uma estatua que eu vira no Cabo, um Ephebo grego que lança um dardo.

Evidentemente a coisa que passára e brilhára era um dardo--e fôra o moço airoso que o arremessára.

Quasi immediatamente, um velho, de ar erecto e marcial, sahiu d’entre o grupo, e, agarrando o braço do rapaz, fallou-lhe baixo como se o avisasse. Em seguida todos avançaram para nós.

O barão, John e Umbopa tinham logo agarrado e apontado as carabinas. Os homens todavia continuavam avançando, devagar, em grupo. Percebi logo que nunca tinham visto espingardas, pelo modo como affrontavam assim tranquillamente os tres canos erguidos. --Baixem as armas! Gritei aos outros.

Tinha comprehendido tambem que a nossa segurança entre essa gente selvagem dependia toda de conciliação e de ardil. Apenas pois os companheiros baixaram as armas, caminhei lentamente para o velho.

--Bem vindo! Exclamei em Zulú, ao acaso, sem saber que idioma entenderiam aquelles homens.

Com surpreza minha, o velho comprehendeu. E respondeu logo, não em Zulú, mas n’um outro dialecto, tão parecido com o Zulú, que Umbopa e eu o percebemos perfeitamente:

--Bem vindo!

Como viemos a saber depois, a lingua d’este povo era uma fórma antiquada da lingua Zulú--e estando para o Zulú do sul como o inglez do tempo dos Tudores está para o inglez polido do seculo XIX. No emtanto o velho avançára outro passo, erguendo a mão.

--D’onde vindes? Continuou elle. Quem sois? Porque tendes tres de vós as faces brancas, e o outro a pelle como nós e como os filhos de nossas mães?

E apontava para Umbopa--que na realidade, pela figura, pela côr, pelas feições, era muito semelhante áquelles homens formidaveis. Eu então repeti a saudação ao velho. E, muito espaçadamente, para que elle apanhasse bem o meu Zulú:

--Somos gente d’outros sitios, vimos em boa paz, e este homem é nosso servo.

O velho abanou lentamente a cabeça, ornada de immensas plumas negras que ondulavam.

--Mentes! A gente d’outros sitios não póde atravessar as montanhas, nem o deserto sem agua onde toda a vida acaba. Mas não importa que mintas... Se sois estranhos e vindes d’outros sitios, tendes de morrer, porque não é permittido a ninguem entrar na terra dos Kakuanas. É a vontade do nosso rei. Preparai-vos pois para morrer, oh gentes!

Fiquei um pouco perturbado--tanto mais que vi alguns dos selvagens levarem logo a mão ao cinto d’onde lhes pendiam umas armas em fórma de pesadas navalhas.

--Que diz esse malandro? Perguntou o capitão, percebendo o meu embaraço.

--Diz simplesmente que nos vai retalhar á faca.

--Santo Deus! Murmurou o nosso amigo.

E, como era seu costume, em frente d’um perigo ou d’uma crise, passou nervosamente a mão pelo queixo e pelos beiços. Alguma coisa decerto lhe succedeu então á dentadura postiça (que momentos antes tirára para lavar e que tornára a pôr), porque n’um relance lhe vi os dentes todos de fóra, e logo sumidos para dentro! Não percebi bem o caso. Mas qual é o meu espanto quando os Kakuanas soltam um grito de terror, e recuam para traz, em tropel!

--Que foi? Exclamei.

--Foram os dentes! Acudiu o barão, excitadamente. Os selvagens viram-lhe os dentes a mover-se... Tira-os de todo, John, tira-os de todo. Talvez os assustes.

O capitão promptamente comprehendeu, passou a mão devagar por sobre a bôca, e escamotou a dentadura. Os Kakuanas no emtanto, n’uma ancia de curiosidade, avançavam de novo, com os olhos arregalados para John. E foi o velho (evidentemente um chefe) que ergueu a voz e a mão, com solemnidade:

--Quem é este homem, oh gentes, que tem o corpo coberto, as pernas núas, cabello só em metade da cara, e um grande olho que reluz? Quem é elle que faz mexer assim á vontade os dentes para dentro e para fóra da bôca?

--Abra a bôca, John! Murmurei eu baixo para o capitão.

John arreganhou os beiços, e exhibiu duas gengivas muito vermelhas, desdentadas como as d’um recemnascido. Entre os selvagens passou um susurro d’espanto.

--Onde estão os dentes? Ainda agora tinha dentes! Exclamavam elles, entre si, com gestos apavorados.

Então John deu um movimento vagaroso á cabeça, passou a mão pela bôca com soberana indifferença, e desfranzindo de novo os beiços--mostrou duas esplendidas filas de dentes, muito fortes, muito sãos, que rebrilhavam.

No mesmo instante o rapaz que despedira o dardo arremessou-se para o chão, com gritos espavoridos. Todo o bando tapava as faces com as mãos, n’um terror. E o velho, que parecia o mais resoluto, tremia tanto, e tão encolhido, que lhe batiam os joelhos um contra o outro.

Só quem conhece selvagens e a mobilidade d’aquellas imaginações infantis póde comprehender como subitamente, em cada um d’elles, ao desejo de nos matar ia já succedendo o impulso de nos adorar... Quando o velho tornou a levantar a voz, foi muito humildemente e n’uma postura de supplica:

--Vós sois Espiritos! Bem vejo que sois Espiritos, oh gentes! Nunca houve homem nascido de mulher que tivesse só cabello n’um lado da cara, e um olho redondo e transparente, e dentes que se derretem e de repente crescem outra vez... Vós sois Espiritos. Perdoai-nos, senhores, perdoai-nos!

Aproveitei logo esta esplendida occasião. E estendendo o braço, com soberba magnanimidade:

--Estaes perdoados.

Era porém necessario, para nossa salvação, que deslumbrassemos e inteiramente nos apoderassemos d’aquellas almas ferozes e simples. E para isso, n’Africa (como n’outras partes) o mais prompto instrumento é o sobrenatural. Não hesitei portanto (com vergonha o confesso) em me attribuir, a mim e aos meus companheiros, uma origem divina! De resto, com o negro da Africa Central, que pela primeira vez vê o branco, e assiste a alguns dos milagres que o branco póde realisar com os pequenos recursos da sua pequena civilisação, este procedimento é o mais seguro e o mais humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos por algum tempo) contido dentro do respeito, absolutamente razoavel e tratavel; e assim, poupando ao negro as traições, os brancos poupam a si proprios as represalias.

Ergui pois a mão, e disse, com vagar e magestade:

--Já que vos perdoei, porque sois ignorantes, condescendo tambem em vos dizer quem somos. Somos Espiritos! Vivemos além, por cima das nuvens, n’uma d’aquellas estrellas que vós vêdes de noite brilhar. E viemos visitar esta terra, mas em paz e para alegria de todos!

Entre os indigenas correram grandes ah! ah! Lentos e maravilhados.

Eu prosegui, mais grave:

--Nós conhecemos todos os reis e todas as gentes. E eu, que sou a voz dos outros, conheço todas as linguas.

--A nossa bem mal! Arriscou com timidez o velho guerreiro.

Dardejei-lhe um olhar chammejante que o estarreceu. E gritei logo, para fazer uma diversão brusca áquella observação tão justa e perigosa:

--Viemos em paz, é certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez devessemos castigar já o ultraje feito por esse moço, que sem provocação atirou uma faca ao Espirito divino cujos dentes de repente nascem e cahem.

--Oh não! Meu senhor! Gritou n’uma anciosa supplica o velho guerreiro. Poupai-o! Poupai-o, que é o filho do nosso rei! Eu sou seu tio, que o ajudei a crear. Só eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas veias!... Oh meu senhor, a clemencia vai bem aos Espiritos!

Affectei não comprehender a angustiosa prece,--e tornei, com superior indifferença:

--As nossas maneiras de castigar são simples e terriveis. N’um instante ides vêr... Tu, escravo que nos segues (e aqui encarei para Umbopa), dá-me a arma de feitiços que troveja.

Umbopa, que assistira absolutamente impassivel e serio a todas as minhas affirmações de divindade, e que (Zulú intelligente, afeito aos brancos e ás suas manhas) lhe percebera o alcance--estendeu-me uma carabina Winchester, com humilissima reverencia.

Justamente n’esse instante avistei, para além do riacho, a umas setenta jardas de distancia, um pequeno antilope, immovel sobre um montão de rochas.

--Vêdes aquelle gamo? Exclamei eu para os selvagens. Julgaes possivel que um simples homem, nascido do ventre da mulher, o mate d’aqui d’onde estou, só com fazer estalar um pequeno trovão?

--Não é possivel! Murmurou recuando o velho guerreiro. Não é possivel para homem nascido do ventre da mulher!

--Ides vêr.

Apontei. Bum! E subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou morto, immovel, estatelado nas pedras.

Um fundo murmurio de assombro, de terror, passou entre os Kakuanas... Eu accrescentei simplesmente:

--Ahi está. E se tendes fome, podeis ir buscar aquelle gamo!

O velho fez um signal. Dois homens correndo trouxeram a caça. E amontoados em volta d’ella, todos em silencio (n’um silencio que era religioso pelo pavor que continha), ficaram contemplando boqui-abertos o buraco da bala que lhe acertára entre os hombros.

--Se não estaes satisfeitos, volvi eu ainda, se em vez d’um gamo me quereis vêr matar um homem, que um de vós se colloque além sobre as pedras ou mais longe, e o raio irá ter com elle.

Houve um movimento geral dos Kakuanas, recuando e protestando.

--Não! Não! Gritaram alguns. Acreditámos, acreditámos... Não vale a pena gastar feitiços com nós outros, que acreditámos e que somos amigos!

O velho guerreiro interveio, com alacridade:

--Assim é! Nós somos amigos. E para que nos conheçaes bem, oh almas das estrellas, que trovejaes e mataes tão de longe, sabei que eu sou Infandós, filho de Kafa, antigo rei dos Kakuanas. Este moço é Scragga, filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o homem de mil mulheres, senhor dos Kakuanas, terror dos seus inimigos, sentinella da Grande-Estrada, sabedor das artes negras, chefe de cem mil guerreiros, Tuala o supremo, Tuala o d’um-só-olho...

--Basta, interrompi sobranceiramente. Leva-nos então ao rei Tuala. Porque, nas nossas jornadas pelo mundo, nós só fallamos a reis!

--Certamente, meu senhor, certamente... Mas nós andavamos caçando n’estes sitios, e estamos a tres dias de jornada da aringa do rei. São tres dias que tendes de caminhar.

--Caminharemos. Escuta tu, porém, Infandós, e tu, Scragga, filho de Tuala! Se por acaso tentardes no caminho armar-nos uma traição, ou se essa idéa vos atravessar sequer a cabeça, nós, que tudo adivinhámos, tomaremos de vós tal vingança que fará ainda estremecer os filhos de vossos filhos. Aquelle cujo olho reluz, e cujos dentes vão e vêm, incendiará todas as vossas searas com a chamma do seu olho, e despedaçará todas as vossas carnes com as pontas das suas presas! E nós faremos resoar os canos que trovejam d’uma maneira que será pavorosa! Toda a agua seccará. Todo o gado morrerá. E os espiritos maus virão, á nossa voz, dispersar os vossos ossos... E agora a caminho.

Esta tremenda falla era quasi superflua--porque os nossos novos amigos acreditavam superabundantemente nos nossos poderes sobrenaturaes. Ainda assim o velho Infandós saudou-nos com uma reverencia mais funda e mais servil, repetindo tres vezes estas palavras: Krum! Krum! Krum! Como depois soubemos, é esta a maneira kakuana de saudar o rei. Corresponde ao Bayète! Dos Zulús.

Depois o velho atirou um gesto aos seus, que immediatamente carregaram ás costas as nossas mochilas, cantinas, mantas e outras miudezas--excepto as espingardas, de que elles se afastavam em grandes voltas e com olhares de terror.

Um d’elles lançou mão ao fato do capitão John, ainda cuidadosamente dobrado á beira d’agua. O excellente John deu logo um pulo para as calças. E rompeu então uma immensa altercação.

--Não, meu senhor, gritava Infandós, não consentirei que o meu senhor carregue com essas coisas!

--Mas é que eu quero pôr as calças! Berrava John.

--Todos somos aqui seus escravos para servir e carregar...

--Mas as calças...

--Meu senhor!...

--Larga as calças, malandro!

Tive de intervir, suffocado de riso.

--Escute, John. O caso é mais serio do que parece. Um dos motivos do terror que estamos inspirando é a sua luneta, a sua cara meia barbada e meia rapada, os seus dentes postiços, e essas pernas brancas á mostra... Tudo isso espanta as imaginações de selvagens. E se o amigo quer que não nos percam o medo, é necessario continuar a apparecer-lhes n’essa figura. Se o amigo lhes surgir ámanhã d’outro modo, tomam-nos por impostores, e a nossa vida não vale mais um pataco. Assim o viram n’esta terra, assim n’ella tem de ficar.

John, inquieto, hesitante, voltou os olhos para o barão:

--O amigo Quartelmar tem razão, affirmou o barão. E dá graças a Deus que já estavas de botas, e que a temperatura é tão dôce.

John teve um suspiro de furiosa resignação. E, durante a nossa estada na terra dos Kakuanas, foi assim que John se mostrou sempre e praticou notaveis feitos--de botas, de pernas núas, com uma metade da cara rapada, outra coberta de barba, e a fralda voando ao vento!

CAPITULO VI

PENETRAMOS NO REINO DOS KAKUANAS

Toda essa tarde trilhamos a larga, magnifica estrada que seguia infindavelmente para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos) como vedetas. Outros seguiam levando as nossas bagagens. Nós iamos no meio, entre Infandós e Scragga.

Pouco a pouco, Infandós e eu descahimos n’uma palestra familiar e amigavel. O velho era esperto e loquaz.

--Quem fez esta estrada, Infandós?

--Foi feita ha muito tempo, meu senhor. Ninguem sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo sabe, Gagula, que tem vivido através de gerações... Já ninguem póde fazer estradas assim... Mas o rei não consente que se desmanche, nem que lhe cresça a herva por cima.

--E ha quanto tempo vivem aqui os Kakuanas, Infandós?

--A nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que estão para além (indicava o Norte) ha mais de dez mil milhares de luas. Para baixo não puderam seguir, segundo diziam nossos avós, que o disseram a nossos paes, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe. Não puderam por causa das altas montanhas que estão em redor, e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era fertil, aqui assentaram; e tantos e tão fortes se tornaram que agora, quando Tuala, nosso rei, chama os seus regimentos, o chão treme todo com o seu peso, e até onde a vista alcança só se vêem plumas de guerreiros e lanças.

--Mas se a terra está murada de montanhas, e se não tendes visinhos, para que são tantos soldados?

--A terra está aberta para além (e indicava o Norte). E ás vezes descem de lá multidões, que não sabemos quem são, e que nós destruimos. Já correu a terça parte d’uma vida de homem desde a ultima guerra. Depois houve outra guerra, mas foi entre nós, irmão contra irmão.

--Como foi isso, Infandós?

Infandós começou então uma d’essas historias de pretendentes e de guerras dynasticas, que abundam em todos os continentes. O pae d’elle, Kapa, que era o rei dos Kakuanas, tivera por primeiros filhos, da primeira mulher (elle, Infandós, era filho d’uma concubina) dois gemeos. Ora a lei dos Kakuanas manda que de dois gemeos reaes o mais fraco seja sempre destruido. Mas a mãe, por piedade e amor, escondeu o gemeo mais fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em segredo n’uma caverna. Quando Kapa morreu, o gemeo mais velho, que se chamava Imotú, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um filho por nome Ignosi. Ora por esse tempo passára a guerra com os povos do Norte: os campos não tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande miseria e dôr entre o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os olhos sangrentos alguma coisa em redor para despedaçar. Foi então que Gagula, a mulher que tudo sabe e que não morre, rompeu a dizer que os males todos provinham de que Imotú reinava sem ser rei. Imotú a esse tempo estava doente na sua cubata, com uma ferida. Começou a correr um clamor entre o povo. Por fim, Gagula um dia reune os soldados, vai buscar Tuala, o gemeo mais novo que ella e a mãe tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe a cinta, e mostra a marca real com que entre os Kakuanas os reis são marcados ao nascer--uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca em torno do ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabeça e o rabo. E ao mesmo tempo, Gagula gritava: «Eis o vosso verdadeiro rei, que eu salvei e que escondi, para elle vos vir salvar agora!» O povo, tonto de fome, ignorando a verdade, espantado com a evidencia da marca real, largou a bradar: «Este é o rei! Este é o rei!» Alguns sabiam bem que não--e que n’este só havia impostura. Mas n’esse momento, ouvindo os alaridos, o rei Imotú sae doente e tropego da sua cubata, com a mulher e com o filho que tinha tres annos, a saber porque vinham tantos brados e porque pediam elles «o rei!» Immediatamente Tuala, o irmão, corre para elle e crava-lhe uma faca no coração! E o povo, que as acções decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: «Tuala é rei! Tuala provou que é rei!» Diante d’isto a pobre mulher de Imotú agarrou o filho, o seu Ignosi, e fugiu. Ainda appareceu, passados dias, n’uma aringa, pedindo de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos montes e nunca mais voltou.

--De modo, observei eu interessado por esta pagina de historia negra, que Tuala não é o verdadeiro rei.

O velho respondeu com prudencia:

--Tuala, o grande, é rei. Mas se Ignosi vivesse ainda, só esse tinha o legitimo direito de reinar sobre os Kakuanas. A cobra sagrada foi-lhe marcada em torno da cinta. O rei é elle. Sómente decerto ha muito que Ignosi morreu...

Casualmente n’esse instante, voltando-me para fallar aos camaradas que marchavam atraz--esbarrei com Umbopa, que quasi me pisava os calcanhares, absorto n’aquella historia de Imotú e de Ignosi, com uma curiosidade, um interesse que lhe punham nos olhos um brilhar desusado, lhe davam a expressão de quem de repente lembra coisas vagas, remotas, semi-esquecidas, perturbadoras. N’essa occasião permaneci indifferente. Mas, depois, através da jornada, muitas vezes pensei n’aquella anciosa, esgazeada curiosidade do Zulú.


No emtanto já trilharamos algumas fortes milhas d’estrada. As montanhas de Sabá ficavam para traz envoltas nos seus mysticos véos de nevoa. E o paiz cada vez se offerecia mais formoso e mais rico.

Ao começo da tarde avistámos emfim uma grande povoação,--que, segundo Infandós nos declarou, pertencia ao seu commando militar e continha uma vasta guarnição. O velho guerreiro mandára mensageiros adiante, correndo, n’um passo de gazella, a annunciar a nossa vinda. E quando nos aproximámos da aldêa, descobrimos com effeito, sahindo das portas e marchando ao nosso encontro, densas companhias de soldados.

O barão tocou-me no braço, com um receio que «as coisas se apresentassem desagradavelmente». Infandós decerto comprehendeu, pelo tom, pelo franzir de sobrancelhas do barão, o sobresalto que o tomára (e a mim), porque acudiu anciosamente, com redobrada reverencia:

--Que os meus senhores não suspeitem de mim! Aquelle é um dos regimentos que eu commando! Mandei-o sahir e desfilar, para prestar as honras aos que vêm do mundo das estrellas...

Esbocei um gesto e um sorriso de soberana indifferença. Realmente estava bem inquieto!

A povoação ficava á direita da estrada, separada d’ella por um declive de terreno areado e bem pisado, onde o regimento se formára em parada. Havia alli talvez uns tres mil homens. E quando nos acercámos, podémos vêr com admiração e assombro, de que esplendida, de que formidavel raça eram estes guerreiros kakuanas! Nenhum media menos de seis pés d’altura; e todos eram veteranos de quarenta annos, ageis, experientes, prodigiosamente robustos, endurecidos por exercicios perpetuos. Sobre a cabeça todos traziam a corôa d’altas e pesadas plumas negras, sempre tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um saião feito de rabos de boi, muito juntos uns aos outros e brancos; e no braço esquerdo sustentavam escudos redondos de ferro, recobertos de couro pintado de branco. Por armas tinham uma azagaia semelhante á dos Zulús--e tres facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo), facas enormes que elles chamam tollas e que arremessam a distancias de cincoenta jardas e mais, com uma certeza terrivel.

As companhias conservavam-se mais immoveis que estatuas de bronze. Mas, á medida que iamos passando em frente d’ellas, cada official (que se distinguia por uma capa de pelle de leopardo) dava um signal: e os homens, brandindo a azagaia no ar, soltavam a saudação real, a grande voz: «krum! Krum! Krum!»

Assim penetrámos na povoação ao rumor de acclamações. A aldêa devia ter uma milha de circumferencia; e era defendida por um largo fosso e por uma alta estacada feita de troncos d’arvores. Na porta central, do lado da estrada, havia uma ponte levadiça.

Parecia uma aldêa admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre arvores, corria uma ampla, extensa rua, cortada em angulos rectos por outras mais estreitas, formando séries de quarteirões, cada um dos quaes alojava uma companhia. As cubatas, redondas, feitas d’uma grossa verga entrelaçada, findavam á maneira das dos Zulús por tectos de colmo em fórma de zimborio agudo: mas, differentes n’isto das dos Zulús, tinham uma porta, larga e facil, e eram cercadas por uma varanda, cujo chão de cal dura rebrilhava ao sol. Os dois lados da grande rua apinhavam-se de mulheres, que tinham corrido de todas as cubatas para nos admirar. Era uma bella raça de mulheres--altas, airosas, esplendidamente feitas, com o cabello mais ondeado que encarapinhado, as feições por vezes aquilinas, e os beiços sempre finos. Mas o que mais nos impressionou foi o seu ar grave e serio. Nem pasmo selvagem, nem risos, nem injurias, ao vêrem-nos desfilar, tão estranhos e differentes de todos os homens que até ahi tinham encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou uma exclamação: apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as pernas niveas do pobre amigo, que, roído de vergonha, praguejava baixo.

Quando chegámos ao centro da aldêa, Infandós parou em frente d’uma espaçosa e rica cubata, cercada de dependencias menores, entre arvoredo. E com palavras grandiosas, á maneira dos Zulús, offereceu-nos a hospitalidade:

--Aqui habitareis, meus senhores. E não tereis de apertar o ventre com fome! Em breve vos traremos mel, leite, uma ou duas vaccas, alguns carneiros. Não é muito, oh Espiritos! Mas é dado por corações, que se regosijam de vos vêr.

--Bem, bem, Infandós, murmurei eu. O que precisamos sobretudo é descançar, fatigados da nossa descida através dos espaços e dos reinos do ar...

A cubata era muito confortavel, com herva aromatica espalhada no chão, grandes pelles servindo de leitos, e vistosos cantaros para a agua. D’ahi a pouco, entre cantos e risos, appareceu á porta um bando de raparigas trazendo leite, mel em covilhetes, fructas em cestos:--e atraz dois rapazes seguiam, arrastando um vitello pelos cornos. Um dos rapazes, tirando a faca do cinto, matou o vitello de um golpe: e logo o outro, agil e destramente, o esfolou e retalhou.

Ajudado por uma das raparigas (que era extremamente bonita), Umbopa passou a cozer a carne n’uma panella de barro, sobre uma alegre fogueira accesa á porta da cubata: e nós mandamos convidar Infandós e Scragga para partilhar do nosso repasto. Quando entraram, notei que, para comer, se não encruzavam no chão á maneira dos Zulús--mas se sentavam em pequenos bancos, que abundavam na cubata encostados ás paredes. O jantar foi longo e affavel. O velho guerreiro todo elle exhibia doçura e respeito. Mas o rapaz Scragga parecia olhar para nós, e para cada um dos nossos gestos, com singular desconfiança. Talvez, ao vêr que nós comiamos, bebiamos, e tinhamos as necessidades de qualquer kakuana, começava a suspeitar da nossa origem divina. Não me agradou este sentimento, tão real e logico. Que nos poderia assegurar as vidas, perdidos entre aquellas turbas negras, senão o terror supersticioso?

Depois de jantar accendemos os cachimbos--o que encheu os nossos amigos d’espanto. Na terra dos Kakuanas, como na dos Zulús, a planta do tabaco cresce em abundancia--mas elles só a sabem usar torrada e sêcca, pulverisada. Só conhecem o rapé.

No emtanto conversamos a respeito da nossa jornada. Infandós já tudo organisára para que ella continuasse na madrugada seguinte, mandando adiante emissarios a prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala estava então na sua grande cidade de Lú, preparando-se para a revista de tropas, a dança das flores, e «caça aos feiticeiros», que constituem a maior solemnidade religiosa e militar dos Kakuanas, na primeira semana de junho. E segundo affirmava Infandós, nós deviamos (a não ser que nos detivessem os rios transbordados) entrar as portas de Lú ao fim de dois dias de marcha.

Depois, como começavam a luzir as estrellas e a aldêa ia cahindo em silencio, os nossos amigos deixaram a cubata. E tres de nós atiraram-se logo para cima dos leitos de pelles, emquanto outro, com as carabinas carregadas, velava, no seu turno de sentinella, para prevenir as traições.

Mas essa primeira noite na terra dos Kakuanas foi muito calma e segura.

CAPITULO VII

O REI TUALA

Não me dilatarei nos incidentes da nossa jornada até Lú--que nem foram consideraveis nem pittorescos. Durante dois longos dias trilhámos a estrada de Salomão, por entre ricas terras cultivadas, e alegres povoações que nos encantavam pelo seu ar florescente e calmo. A cada instante passavam por nós troços de gente armada, regimentos emplumados marchando tambem para a cidade, para o grande festival sagrado. No segundo dia, ao pôr do sol, parámos n’uma collina, que a estrada galgava por entre dois renques d’arvores em flôr:--e em baixo, n’uma planicie deliciosamente fertil, avistámos emfim Lú, a capital dos Kakuanas.

Para cidade d’Africa era enorme,--com seis milhas talvez de circumferencia, toda ella defendida por estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado por pontes. Para o norte, a duas milhas, erguia-se uma collina, que offerecia a fórma singular d’uma ferradura: e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam bruscamente da planicie, em triangulo, tres serras isoladas, escarpadas, todas cobertas de neve.

--A estrada (explicou Infandós, vendo que contemplavamos com estranheza os tres montes) acaba além n’essas serras, que se chamam as Tres Feiticeiras.

--E porque acaba além, Infandós?

--Quem sabe! Murmurou o velho encolhendo os hombros. As tres montanhas estão todas furadas por cavernas. Ha no meio d’ellas uma cova immensa. É lá que se sepultam agora os nossos reis. E era alli que os homens antigos, que sabiam tudo, vinham buscar certas coisas...

--Que coisas, Infandós? Exclamei eu, cravando n’elle um olhar que o sondava.

O velho sorriu, com uma grossa malicia de negro:

--Os Espiritos que vêm das estrellas sabem decerto mais do que um Kakuana...

--Com effeito! Acudi eu, n’um tom sciente e profundo. E por isso te posso dizer, Infandós, que esses homens antigamente vinham procurar um ferro amarello que rebrilha, e umas pedras brancas que faiscam.

--Talvez fosse, talvez fosse! Balbuciou Infandós, embaraçado, afastando-se bruscamente para lançar uma ordem aos carregadores da bagagem.

--Acolá, disse eu aos companheiros mostrando as Tres Feiticeiras, estão as minas de Salomão!

Todos tres, commovidos, ficámos a olhar aquelles montes tão proximos, onde jaziam ainda talvez (se o velho D. José da Silveira contára a verdade) os mais ricos thesouros da terra... A que prodigioso momento chegára a nossa aventura!

De repente, quando assim pasmavamos, o sol desappareceu--e a noite cahiu, sem transição, visivelmente, como uma coisa tangivel. N’aquellas latitudes não ha crepusculo. A luz acaba como a chamma d’um bico de gaz que se fecha: e, n’um instante, a terra toda fica envolta n’uma cortina de treva.

N’essa occasião porém, durou pouco a escuridão, porque bem cedo a mais larga e esplendida lua que me lembro de ter visto subiu magestosamente ao céo, derramando uma tão sublime refulgencia, tão divinamente serena, que, sem saber porquê, cada um de nós tirou o chapéo, como n’um templo, ante uma imagem sagrada.

Infandós, porém, quebrou a nossa contemplação, dando o signal de descer para a cidade, que agora, batida de luar, cheia de lumes, parecia infindavel através da planicie.

E d’ahi a uma hora, tendo passado a ponte levadiça, entre piquetes de sentinellas a quem Infandós deu baixo o santo e senha, seguiamos calados pela rua central de Lú, toda ladeada de sombras d’arvores e de senzalas onde se cozinhava. Levou uma hora antes de chegarmos á grade d’um pateo redondo, com o chão muito batido e duro, todo caiado de branco. Em volta erguiam-se cubatas espaçosas, cobertas de colmo. Eram alli (segundo declarou Infandós) os nossos «humildes pousos».

Cada um de nós tinha, só para si, uma cubata. Havia dentro um grande asseio. Os leitos eram feitos com pelles estendidas sobre enxergões de herva aromatica. Uma esteira tapetava o sólo. Tripeças pintadas alternavam com frescas vasilhas d’agua. Não podiamos esperar mais cuidadosa hospedagem! E apenas nos lavámos, sacudimos o pó, appareceu logo um bando de raparigas, das mais bellas que até ahi encontraramos no paiz, trazendo leite, carnes assadas e bolos de milho em vistosos pratos de madeira.

Depois da ceia fizemos reunir todas as quatro camas na maior das cubatas (precaução que encheu de riso as raparigas),--e não tardamos em adormecer com grata tranquillidade. Acordámos quando o sol ia nado--e a primeira e aprazivel impressão que recebemos foi a do bando das raparigas, acocoradas no chão, a um canto, á espera que despertassemos «para nos ajudar a lavar e a vestir».

Quando uma d’ellas, a mais alta (e que figura! Que braços!) fez esta amavel offerta, o capitão John teve uma exclamação, um gesto d’atroz desespero:

--Vestir! É bom de dizer! Quando uma pessoa não tem senão uma camisa e um par de botas!... E com estas raparigas todas, bonitas raparigas, ahi por essa cidade... Não! Isto não póde continuar! Eu não arredo pé d’aqui da cubata, senão de calças! Quero as calças!

Vi o meu amigo tão decidido, que reclamei as calças. Mas uma das raparigas voltou d’ahi a momentos declarando que essas sagradas e maravilhosas reliquias tinham sido já mandadas ao rei!

O furor do nosso John foi immenso. Teve de se contentar em barbear a face direita; porque na esquerda não consentimos nós que elle eliminasse um só pêllo á farta suissa que já lhe crescêra. Aquella cara espantosa, rapada d’um lado, barbuda do outro, era uma das evidencias da nossa raça sobrenatural. Todos nós, de resto, tinhamos aspectos estranhos. Os cabellos do barão, amarellos e sempre longos, desciam-lhe agora até aos hombros, n’uma juba rude, que lhe dava o ar d’um barbaro dos tempos do rei Olloff.

O almoço já esperava, fóra, no terreiro, em caçoulas que fumegavam. Mas, primeiramente, quizemos tomar o nosso tub, atirar pelas costas alguns frios baldes d’agua. E o assombro, a desconsolação das raparigas foi consideravel, quando lhe pedimos pudicamente que se retirassem, cerrando a porta de vime...

Logo depois do almoço, Infandós appareceu annunciando que el-rei Tuala nos mandava muito saudar, e esperava a nossa comparencia em Palacio. Declarei immediatamente, com indifferença e altivez, que ainda nos achavamos cançados, tinhamos ainda um cachimbo a fumar, etc., etc.

Convém sempre, tratando com potentados negros, não mostrar pressa nem respeito. Tomam invariavelmente a polidez por pavor. De sorte que, apesar da nossa anciedade em vêr o terrivel Tuala, retardámos nas cubatas uma farta hora, preparando, ao mesmo tempo, os escassos presentes que destinavamos ao rei e á côrte: a espingarda do pobre Venvogel, um bocado de sêda, alguns fios de contas de vidro.

Afinal partimos, guiados por Infandós--e seguidos por Umbopa que levava as dadivas.


Ao fim d’um curto kilometro, chegámos a um immenso terreiro, com o chão duro e caiado de branco como o das nossas moradas, e cercado por uma estacada baixa. Em redor, fóra da estacada, corria uma fileira de cubatas, que (segundo nos informou Infandós) pertenciam ás mulheres do rei: e ao fundo, fronteira á porta por onde entraramos, estendia-se uma construcção, uma cubata enorme, com varas e plumas espetadas no tecto de colmo, que era o palacio real. No recinto não crescia uma arvore: e todo elle estava n’esse dia cheio de regimentos em fórma, perfilados, immoveis, verdadeiramente magnificos, com os seus altos pennachos, os escudos brancos, as lanças a rebrilhar.

Em frente á cubata real ficava um espaço vasio, com uns poucos de escabellos de madeira. A convite do bom Infandós occupámos tres d’esses assentos privilegiados, tendo Umbopa por traz, de pé: e assim ficámos á espera, no meio d’um silencio absoluto, sentindo cravados sobre nós oito mil pares d’olhos sofregos. Finalmente a porta da cubata rangeu--e surgiu d’ella uma figura gigantesca, com um esplendido manto de pelles de tigre lançado sobre o hombro, e uma azagaia na mão. Atraz d’elle vinha Scragga e uma outra creatura estranha, equivoca, que nos pareceu uma macaca--uma macaca velhissima e friorenta, toda embrulhada em pelles. A figura gigantesca abateu-se pesadamente sobre uma das tripeças de pau. Scragga permaneceu de pé, por traz, apoiado á lança. A velha macaca arrastou-se para a sombra que lançava a cubata real, e alli se acocorou lentamente.

O mesmo silencio continuava no emtanto oppressivo, afflictivo.

Então a figura gigantesca arrojou o manto que a envolvia, e ergueu-se, offerecendo ás vistas a sua real pessoa, verdadeiramente terrifica! Nunca em minha longa vida encarei um homem mais repulsivo. E ainda ás vezes revejo, ante mim, aquella face horrivel com os beiços muito grossos ressudando sensualidade, as ventas enormes e chatas de fera, e o olho unico (porque o outro era apenas um buraco negro) atrozmente brilhante, d’um brilho frio e cruel. Uma cota de malha reluzente cobria-lhe o corpo formidavel. Da cinta pendia-lhe o saião d’uniforme, feito de rabos brancos de boi. Ao pescoço trazia uma gargalheira d’ouro: e da testa, onde luzia um enorme diamante bruto, subia-lhe, ondeando no ar, um tufo esplendido de plumas d’abestruz.

O silencio ainda pesou, mais profundo, diante d’aquella presença assustadora! Mas de repente o monstro (que logo comprehendemos ser Tuala, o rei) levantou a lança no ar. Oito mil lanças faiscaram ao sol. E de oito mil peitos rompeu, atroando o céo, a grande acclamação real:--Krum! Krum! Krum!

Depois, no silencio que recahira, vibrou uma voz, agudissima, estridula, horripilante, e que parecia vir da macaca agachada á sombra:

--Treme e adora, oh povo! É o rei!

E oito mil peitos de novo atroaram o céo, bradando:

--É o rei! É o rei! Treme e adora, oh povo!

E tudo de novo emmudeceu. Mas quasi immediatamente, ao nosso lado, houve um ruido de ferro batendo sobre pedra. Era um soldado que deixára cahir o escudo.

Tuala dardejou logo o olho cruel para o sitio onde o som retinira:

--Avança tu! Berrou, n’um tom trovejante.

Um soberbo rapagão sahiu da fileira, ficou perfilado.

--Cão infernal! Rugiu o rei. Foste tu que deixaste cahir o escudo? Queres que eu, teu chefe, seja escarnecido pelas gentes que vêm das estrellas!

--Foi sem querer, oh mestre das artes negras! Acudiu o rapaz cuja pelle fusca parecia empallidecer.

--Pois, tambem sem querer, vaes morrer!

O soldado baixou a cabeça e murmurou simplesmente:

--Eu sou a rez do rei!

--Scragga! Bramiu Tuala. Mostra como sabes usar bem a lança. Vara-me aquelle cão!

O odioso Scragga deu um passo para diante, com um sorrisinho feroz, e levantou o dardo. O desgraçado tapou a face, e esperou, immovel. Nós nem respiravamos, petrificados.

«Um, dois, tres!» Scragga soltou a lança. O soldado atirou os braços ao ar, cahiu morto.

D’entre os regimentos subiu então um longo murmurio que rolou, ondulou, se esvaiu por fim no silencio.

O barão, livido de indignação, agarrára a espingarda das mãos d’Umbopa. E eu, afflicto, tive de o agarrar a elle, lembrar que as nossas vidas estavam á mercê do rei, e que eramos quatro contra todo um reino.

Tuala, no emtanto, sorria sinistramente:

--O golpe foi bom. Arrastem para fóra o cão morto.

Quatro homens sahiram da fileira, levaram o corpo.

E então a mesma voz esganiçada, sibilante, horrivel (que evidentemente era da macaca) cortou o ar:

--A palavra do rei foi dita! A vontade do rei foi feita! Treme e adora, oh povo! E cobri bem depressa as manchas de sangue. A palavra foi dita, a vontade foi feita!

Uma rapariga sahiu de traz da cubata real com um vaso de louça, e, atirando d’elle cal ás mãos cheias, escondeu as nodoas horriveis. Tuala permanecia immovel, como um idolo.

Por fim, lentamente, voltou para nós a face medonha.

--Gente branca! Disse elle. Gente branca, que vindes não sei d’onde, nem sei a quê, sêde bemvinda!

--Bem estejas, rei dos Kakuanas! Respondi eu, com dignidade.

Houve um silencio, através do qual ficamos immoveis, sentados, com os olhos cravados no monstro.

--Gente branca, volveu elle, que vindes vós procurar aqui?

--Vimos do mundo das estrellas, oh rei! Não indagues como, nem para quê. São coisas muito altas para ti, Tuala.

O rei franziu a face, d’um modo inquietador:

--Altas me parecem as vossas palavras, gentes das estrellas!... Não esqueçaes que as estrellas estão longe e a minha vontade está perto... Póde bem ser que saiaes d’aqui como aquelle que agora levaram.

Era necessario ostentar um soberbo desdem da ameaça. Comecei por lançar uma risada, muito cantada (e na verdade muito forçada):

--Oh rei, tem cautela! Não caminhes sobre brazas que pódes escaldar os pés! Toca n’um só dos nossos cabellos e a tua destruição está certa. Não te disseram estes (e apontei para Infandós e para Scragga), que especie de homens nós somos, e que grandes artes temos? Viste tu alguem como nós, entre os filhos dos homens?

--Nunca vi, murmurou elle.

--Não te contaram esses como nós damos a morte de longe, através d’um trovão?

--Não creio! Exclamou Tuala, batendo fortemente o joelho. Mostrai-me primeiro, vós mesmos, a vossa arte. Matai um d’esses homens que estão além (apontava uma companhia de soldados magnificos junto á porta da aringa) e eu prometto acreditar!

Repliquei que não derramavamos nunca sangue de homem, senão em justo castigo. Mas que o rei soltasse um boi para dentro do pateo, através dos soldados, e antes d’elle correr vinte passos, cahiria morto, de chofre. O rei rompeu a rir.

--Um boi! Um boi!... Não, matai um homem para eu acreditar!

--Perfeitamente! Exclamei eu, com tranquillidade. Ergue-te tu, oh rei, caminha através do pateo, e antes de chegares ao portal da aringa rolarás morto no chão. Ou, se não queres ir tu mesmo, manda teu filho Scragga.

A isto, Scragga deu um grito, lançou um pulo, e fugiu para dentro da aringa real.

Perante a estranha audacia com que lhe propunhamos para mostrar as nossas Artes Magicas matar um principe ou um boi, á sua escolha--Tuala ficou esgazeadamente perplexo. O seu olho coruscante ora se poisava em nós, ora no chão. Depois, n’um tom surdo:

--Bem, que enxotem uma vacca para dentro do pateo!

Dois homens, immediatamente, largaram correndo.

--Barão, disse eu ao nosso amigo, chegou a sua vez. Mate a vacca. Não quero que imaginem que só eu sei fazer as maravilhas.

O barão tomou a carabina «Express», e esperou, no fundo silencio que se alargára. Por fim, á porta da aringa houve um ruido; e vimos entrar por ella, correndo, enxotada, uma grande vacca russa. Ao avistar a multidão, o animal estacou, olhou estupidamente, deu uma volta lenta, e mugiu.

--Agora! Gritei ao barão, vendo a vacca de lado e em bom alvo.

Bum! O tiro partiu, a vacca tombou, varada no coração. De toda a enorme soldadesca se exhalou um murmurio de admiração e terror.

--Então menti, rei Tuala? Exclamei eu, fitando o monstro com altivez.

--Não, é verdade, rosnou elle.

Baixára o olho cruel, parecia atemorisado. Eu continuei, com soberana confiança:

--Escuta, Tuala! Na arte magica de destruir ninguem nos vence. Destruimos de longe a vida dos homens e a vida dos animaes... E as proprias armas, os ferros mais duros, reduzimol-os de longe a estilhaços. Escuta! Manda cravar além no chão, com a ponta do ferro voltada para cima, essa lança que tens na mão, a tua propria lança, que nunca foi vencida, oh Tuala! Manda, e eu te mostrarei!

Espantado, o rei cedeu. Um soldado cravou no chão, ao fundo da aringa, a lança real, com a ponta faiscando no ar, sob um raio de sol.

--Bem, disse eu. Agora vê em que estilhas vai ficar a tua lança invencivel.

Apontei, disparei:--a bala bateu na folha da lança e separou-a em bocados. Um susurro maior, de assombro, rolou através do terreiro.

Dei então um passo para o rei, com a carabina na mão.

--Tuala, este tubo magico que troveja e destroe é um presente que te fazemos. Se te mostrares leal comnosco ensinar-te-hemos o segredo de o usar e de vencer com elle. Mas se descobrirmos traição em ti, esse proprio tubo se voltará contra o teu peito, e serás como a vacca morta ou como a lança partida. Aqui tens.

E estendi-lhe a arma. Elle tomou-a com desconfiança, com uma sêcca antipathia, e pôl-a no chão, aos pés, devagar.

N’esse instante aquella figura estranha que o acompanhára, e que me parecera uma velha macaca, deu um guincho e surgiu da sombra da cubata real, onde permanecera agachada. Muito devagar, muito devagar, vinha caminhando nas quatro patas:--mas quando chegou defronte do rei, ergueu-se subitamente, arrojou de si a longa cobertura de pelles que a envolvia, e mostrou aos nossos olhos attonitos um vulto extraordinariamente sinistro e quasi phantastico. Era uma mulher evidentemente, uma mulher velhissima, tendo passado todos os limites conhecidos da vida humana. A face que voltou para nós estava reduzida ao tamanho d’uma facesinha de creança, d’uma creança d’um anno, toda em rugas profundas, resequidas, duras e amarellas, como se fossem entalhadas em marfim. A bôca já se não via, de sumida, entre o queixo sahido para fóra e extremamente agudo--e a testa proeminente, livida, com duas sobrancelhas ainda espessas e todas brancas. A cabeça de facto pareceria a d’um cadaver cortido ao sol, se os olhos grandes não refulgissem com intenso fogo e vida. Mas a hediondez principal d’aquelle semblante estava no craneo, todo nú, pellado, liso como uma bola, e a que ella fazia mover e enrugar a pelle como as cobras contrahem e movem o capello.

Não se podia contemplar aquella creatura sem um arripio de horror. Durante um momento, o estranho monstro permaneceu immovel--depois estendeu lentamente um braço descarnado, a mão sêcca de Parca, verdadeira garra armada de unhas longas e recurvas, e começou, n’uma voz silvante que regelava:

--Rei Tuala, escuta! Povo, escuta! Montes, rios, céos, coisas vivas e coisas mortas, escutai! Escutai, escutai, que o Espirito desceu dentro de mim e eu vou prophetisar!

As syllabas findaram n’um uivo longo e triste. Toda a multidão que enchia a aringa parecia gelada de terror. E eu mesmo, que vira tantas vezes na Africa os esgares e as declamações das feiticeiras, senti não sei que peso no coração. A velha era decerto terrifica.

--Som de passos, som de passos que vem! Proseguiu ella, com a garra tremula no ar. São os passos da gente branca que vem de longe! É a terra que treme sob os passos dos brancos. Cheiro a sangue, cheiro a sangue! São rios de sangue que vão correr. Eu já os vejo, já os sinto. Toda a terra está vermelha, todo o céo fica vermelho! Os leões lambem sangue por toda a parte! Os abutres batem as azas de alegria!

Parou um momento. Os olhos rebrilhavam-lhe como lumes. Depois soltou um grito longo, como uma ululação sepulchral.

--Sou velha! Velha! Velha! Tenho visto correr muito sangue. E hei de vêr correr muito ainda, e dançar de gozo! Que idade pensaes vós que eu tenho? Os vossos paes já me conheceram; e os paes dos vossos paes; e os outros paes que geraram a esses. Tenho visto muitas coisas, aprendi muitas coisas. Já vi o branco, e sei o desejo que elle tem no coração. Quem fez a grande estrada, que desce dos montes? Quem gravou as figuras nas rochas? Não sabeis. Mas eu sei! Foi um povo branco, que estava aqui antes de vós virdes, que voltará e vos destruirá, e ficará aqui quando vos fôrdes como a nuvem de pó que passou!

E de repente, deu um passo, com os dois braços, as duas garras recurvas estendidas para nós:

--Que vindes aqui fazer, gente branca? Vindes das estrellas? Das estrellas! Ah, ah! Vindes procurar um como vós? Não está aqui. E o que veio, ha muito, ha muito, veio só para morrer. São as pedras que brilham que vós procuraes? Eu conheço o vil desejo do coração do branco. Procurai, procurai! Talvez as acheis quando o sangue seccar. Mas voltareis vós ás estrellas, ou ficareis aqui commigo?

Depois com um arremesso terrivel, voltando-se para Umbopa, que as suas garras estendidas pareciam querer despedaçar:

--E tu, tu que tens a pelle escura, quem és, que procuras aqui? Não as pedras que brilham, nem o metal que reluz! Ah, parece-me bem que te conheço! Oh céos! Oh montes! Serás tu?... Eu conheço, eu conheço pelo cheiro o sangue que tens nas veias! Desaperta essa cintura...

Um momento, ficou como esgazeada em face d’Umbopa. E subitamente, batendo os braços no ar, cahiu no chão, como morta.

Um bando de raparigas surdiu da cubata, levou nos braços a feiticeira. Tuala erguera-se sombriamente. Todo elle tremia. Lançou um gesto:--e uns após outros os regimentos começaram a desfilar, até que todo o pateo ficou vasio e rebrilhando ao sol.

Então Tuala voltou-se para nós, com a face pavorosamente franzida:

--Gente branca! Gagula annunciou males estranhos! Está-me a parecer que vos devo matar.

Eu sorri, com superioridade.

--Oh rei, tu viste a vacca. Queres tu ser como a vacca?

--Oh gentes, vós ameaçaes o rei! Volveu elle, cerrando os punhos.

--Não ameaço. Digo só que tão facil é ás nossas Artes matar uma vacca como matar um rei. Pensa e treme, Tuala!

O enorme bruto levou os dedos á testa, reflectindo.

--Ide em paz! Disse por fim. Esta noite é a Grande Dança. Vireis e vereis. Não tenhaes medo que eu vos arme ciladas. E ámanhã decidirei.

--Está bem, Tuala, gritei eu, com um grande gesto.

E acompanhados por Infandós, recolhemos á nossa aringa.

Quando chegamos ás cubatas, depuz n’um escabello o rewolver, e voltando-me para Infandós que entrára comnosco:

--O teu rei Tuala é um monstro, Infandós!

O velho guerreiro teve um suspiro.

--Ai de mim! Toda a nação geme com as suas crueldades, meu senhor! Vereis esta noite. É a grande caça aos feitiços; vem Gagula e as suas farejadoras farejar, adivinhar quem são, d’entre os guerreiros e o povo, os que meditam ou já commetteram feitiços e maleficios. Se o rei appetece o gado de um visinho, ou o detesta, ou teme que elle se lhe torne infiel, Gagula ou uma das farejadoras aponta para esse homem, e o homem é logo morto... Quem sabe? Talvez hoje mesmo me chegue a minha vez. Até aqui Tuala tem-me poupado em respeito á minha experiencia das armas, e porque os soldados me amam. Mas quem sabe? Tuala é cruel, a terra toda soffre e está cançada d’elle!

--Mas, pela luz das estrellas, porque não depondes vós ou mataes essa féra?

Infandós encolheu os hombros:

--É o rei!... E o filho que lhe succederia, Scragga, tem ainda o coração mais negro, pesaria sobre nós com mais furor. Se Imotú não tivesse sido morto, e se Ignosi, o filhinho d’elle, não tivesse acabado tambem no deserto com a mãe, então havia uma esperança no reino! Mas assim...

De repente (e ainda me parece incrivel que eu tivesse assistido a lance tão romanesco, tão semelhante aos que se lêem nos contos de grande enredo)---de repente ergueu-se uma voz da sombra da cubata:

--E quem te diz a ti que Ignosi morreu?

Todos nos voltamos, espantados. Era Umbopa.

--Que queres tu dizer? Que tens tu a fallar, rapaz? Gritou Infandós que, como velho chefe de sangue real, detestava familiaridades.

Umbopa deu para nós um passo lento:

--Escuta, Infandós. Não é verdade que o rei Imotú foi morto, e que a mulher e o filho desappareceram? Não é verdade que correu então voz de ambos se terem perdido e morrido nas montanhas?

Com um gesto, Infandós concordou.

--Escuta! Nem a mãe nem o filho morreram. Galgaram as montanhas, atravessaram as grandes areias guiados por uma turba errante, entraram de novo em terras de relva e agua, viajaram durante muitas luas, e foram ter a um povo dos Amazulus que é da raça dos Kakuanas. Escuta ainda! O filho cresceu, a mãe morreu. O filho cresceu, e serviu nas guerras dos Amazulus. Depois foi ao paiz dos brancos e aprendeu as artes dos brancos: trabalhou com as suas mãos, meditou dentro do seu coração: e sabendo que homens fortes vinham para o norte, tomou serviço com elles, atravessou outra vez as grandes areias, galgou de novo as serras de neve, pisou terra dos Kakuanas--e está na tua presença, Infandós!

E subitamente, arrancando a tanga que o cobria, ficou nú diante de nós, com os braços abertos, gritando:

--Sou Ignosi, legitimo rei dos Kakuanas!

Infandós precipitára-se sobre elle, com os olhos fóra das orbitas, a examinar-lhe o ventre onde corria, n’uma tatuagem azul, o desenho d’uma cobra que lhe dava volta á cinta e juntava a bôca com o rabo logo abaixo do umbigo. Esta tatuagem é a marca, o emblema real, que se grava a tinta azul, logo ao nascer, no legitimo herdeiro do reino. E a evidencia lá estava, certamente irrecusavel, porque Infandós cahiu sobre os joelhos, bradando:

--Krum! Krum! É o filho de Imotú! É o rei! É o rei!

Umbopa acudiu:

--Ergue-te, meu tio Infandós, que ainda não sou rei! Mas com a tua ajuda, e a d’estes homens fortes com quem vim, posso ser rei! Dize pois. Queres pôr a tua mão na minha e ser o meu homem? Queres correr commigo os perigos que haja a correr para derrubar Tuala o usurpador, o coração de féra? Dize.

O velho Infandós pousou dois dedos na testa e pensou. Depois tornou a ajoelhar diante de Ignosi, pôz a sua larga mão na mão d’elle, e murmurou, lentamente, como na formula de um ceremonial:

--Ignosi, legitimo rei dos Kakuanas, ponho a minha mão na tua mão, e até morrer sou teu homem!

Nós, de pé, em redor, ficaramos verdadeiramente attonitos! O barão e o capitão John só muito vagamente comprehendiam o maravilhoso lance. Tive de lhes traduzir, desenrolar os detalhes. E ambos exhalavam o seu assombro em exclamações, contemplando Umbopa--quando elle nos interpellou, com um gesto que começava a ser regio:

--E vós, homens brancos de quem comi o pão? Quereis vós ajudar-me tambem? Nada tenho que vos offerecer em troco do vosso braço forte. Mas essas pedras brancas que reluzem, e que vós amaes, se, como rei, eu as vier a possuir, podereis leval-as, tantas quantas quizerdes... Basta isto?

Traduzi de novo aos meus amigos esta deslumbrante offerta. O barão franziu o sobr’olho:

--Quartelmar, diga-lhe que um inglez não se vende por diamantes. Mas de graça, porque sempre o achei leal, porque gosto d’elle, e porque me appetece derrubar esse monstro de Tuala, estou prompto a ajudar Umbopa com o pouco que posso, que é o meu braço. E tu John?

O capitão encolheu os hombros:

--Que lhe havemos nós de fazer? Além d’isso homem que não briga enferruja. Em todo o caso ponho uma condição: quero as calças.

Communiquei estas adhesões a Umbopa--que apertou ardentemente as mãos dos meus dois amigos.

--E tu, Macumazan, mestre da caça, olho vigilante, mais fino que o bufalo, estarás tu tambem por mim?

Cocei a cabeça, pensativamente:

--Eu te digo, Umbopa, ou Ignosi, ou o que és; eu não gosto de revoluções... Sou um homem de ordem e demais a mais um cobarde. Escusas de te rires, sei perfeitamente o que digo, sou um cobarde. Por outro lado, tenho por costume ser fiel a quem me foi fiel; e tu, n’esta jornada, andaste sempre como um servo dedicado e bravo. Portanto, ás ordens! Mas ha uma coisa. Eu sou um pobre caçador de elephantes e tenho de ganhar a minha vida. Tu fallaste ahi nos diamantes. Eu aceito os diamantes. Se lhe pudérmos lançar mão, aceito-os, e quantos mais e mais graúdos melhor! Não é que eu acredite muito n’elles. Mas, se apparecerem, desde já te prometto que, com licença tua, hei de abarrotar as algibeiras...

--Tantos quantos puderes levar! Exclamou Umbopa radiante.

E já se voltava para Infandós, n’aquelle triumphal enthusiasmo de pretendente a quem as adhesões affluem--quando eu o interrompi vivamente:

--Alto! Temos ainda outra, Ignosi. Nós viemos, como tu sabes perfeitamente, á procura do irmão do Incubú (era a alcunha do barão, em Zulú). Quero que me promettas que has de fazer tudo o que puderes como rei para nos ajudar a encontral-o... Começa por te informar agora com teu tio Infandós.

Ignosi pousou os olhos em Infandós, com singular magestade:

--Meu tio Infandós, em nome do emblema sagrado que me envolve a cinta, e como teu rei legitimo, intimo-te a que me digas a verdade. Houve já algum homem branco que, antes d’estes, tivesse vindo á terra aos Kakuanas?

--Nunca, meu senhor!

--E poderia algum ter vindo, sem que tu o soubesses?

--Nenhum poderia ter vindo sem que eu o soubesse.

O barão deu um longo suspiro.

--Bem! Bem! Exclamei logo, para lhe não matar de todo a esperança, e cortar os tristes pensamentos. Quando Ignosi fôr rei teremos então mais facilidade de procurar o irmão do Incubú, até aos confins do reino, e nas terras que estão além! Agora vamos ao que urge. Que plano tens tu, Ignosi, para recuperar a corôa? Porque emfim, meu rapaz, é bom ser rei de direito divino, mas...

--Não tenho plano. E tu, meu tio Infandós?

Infandós pensou um instante, com a barba sobre o peito.

--Esta noite, disse elle por fim, é a caça aos feitiços. Muitos vão morrer, e em muitos outros mais recrescerá o odio contra Tuala. Depois da dança, fallarei a alguns dos grandes chefes que podem dispôr de regimentos. É necessario que os chefes te venham vêr, Ignosi, se convençam com seus olhos que és o rei. E se elles pozerem as mãos nas tuas, ámanhã tens vinte mil lanças para combater por ti. Porque a guerra é certa. Depois da dança, se eu viver, se todos vivermos, virei aqui, para combinar na escuridão. Mas a guerra é certa!

N’este momento houve fóra do terreiro um brado, annunciando que se avisinhavam mensageiros do rei. E tres homens entraram, cada um d’elles trazendo erguida nas mãos uma cóta de malha que rebrilhava como prata e uma magnifica acha de batalha.

Um arauto que os precedia exclamou, batendo no chão com o conto da lança:

--Presentes de Tuala, o rei, aos homens que vêm das estrellas!

--Agradecemos ao rei, volvi eu sêccamente. Ide!

Apenas os homens partiram, examinamos as cótas com grande interesse. Eram maravilhosas, d’uma malha tão fina, tão cerrada, tão elastica e macia, que uma armadura toda podia caber no concavo das duas mãos. Perguntei a Infandós se eram fabricadas no paiz.

--Não, meu senhor, são coisas que existem ha muito, e que herdamos de paes para filhos. Já muito poucas restam. Só os de sangue real as podem usar. E o rei que as mandou é que está muito contente ou que está muito assustado. Em todo o caso não ha ferro que as atravesse, e bom será, meus senhores, que as useis esta noite na dança.

Quando Infandós sahiu, ficamos conversando n’este estranho incidente--que transformava a nossa pacifica jornada n’uma aventura politica. Como notou o barão, fôra este decerto, desde a nossa partida de Natal, um dos dias mais ricos de emoções e surprezas.

--Extraordinario, disse o capitão. Tem de ser registrado no Livro de Bordo.

Chamava elle Livro de Bordo a um Almanach do anno, com folhas brancas intercaladas, onde costumava assentar os episodios notaveis da nossa espantosa empreza.

--Que dia é hoje? Perguntou elle, sentando-se, com o almanach sobre o joelho.

--3 de julho.

O barão e eu voltaramos a examinar as dadivas de Tuala--quando, d’ahi a instantes, o capitão exclamou com os olhos no almanach:

--É curioso! Ámanhã, 4 de julho, ha um eclipse total, visivel em toda a Africa! Deve começar ás duas e quarenta minutos... Bom terror vão ter os pretos!

Escassamente demos attenção áquella noticia: e como o capitão findára de escrever, preparamo-nos para partir para a grande dança, porque o sol já descia, e já ia fóra um rumor de regimentos passando. Pelo prudente conselho de Infandós envergamos as cótas de malha,--que achamos confortaveis e leves. A do barão, homem de forte estatura, vestia-o como uma pellica: a do capitão e a minha dançavam-nos sobre as costellas com pregas pouco marciaes.

A lua surgia, magnificamente clara, quando Infandós appareceu, com todas as suas plumagens e armas de gala, acompanhado de vinte guerreiros, para nos escoltar a palacio. Afivelamos os rewolveres á cinta, empunhamos as achas de guerra, e largamos--consideravelmente commovidos.

No terreiro, onde estiveramos de manhã, encontramos a mesma formidavel parada de regimentos, perfazendo talvez vinte mil homens--mas formados de modo que entre cada companhia ficava um carreiro aberto «para as farejadoras de feiticeiros» (como nos foi explicando Infandós). Não havia outra luz além da lua, cheia e lustrosa, que punha longas fieiras de faiscas nos ferros altos das lanças. D’aquella escura massa d’homens, do luar, do silencio, sahia uma indefinivel impressão de magestade e tristeza.

--Está aqui todo o exercito, murmurei eu para Infandós.

--Um terço, não mais, meu senhor. Outro terço ficou nas guarnições. E o outro está fóra, em torno a palacio, para o caso de sedição, quando começar a matança...

--Escuta, Infandós! Achas que corremos perigo?

--Não sei, espero que não... Mas não mostreis medo! E se escaparmos com vida esta noite--quem sabe? Talvez ámanhã Tuala seja como o raio que feriu e se apagou.

Iamos no emtanto caminhando, através dos regimentos mais immoveis que bronzes, para espaço vasio diante da cubata real, onde havia como de manhã uma fila de escabellos d’honra. E ao mesmo tempo outro grupo, com um brilho e ruido d’armas, sahia da aringa real.

--É Tuala, disse baixo Infandós, e Scragga, e Gagula, e os homens que matam.

Os «homens que matavam» eram uns doze negros gigantescos, de faces hediondas, com plumagens vermelhas, armados de facalhões e de azagaias pesadas.

--Bemvindos, gentes das estrellas! Gritou logo Tuala abatendo-se pesadamente sobre um escabello. Sentai, sentai! E não percamos o tempo que a noite é curta para as grandes coisas que têm de ser feitas. Olhai em roda, e dizei-me se nas estrellas tivestes jámais tantos valentes juntos... Mas vêde tambem como elles já tremem, os que abrigam maldade no seu coração!

--Começai! começai!--ganiu na sua silvante voz Gagula, que se agachára aos pés do rei. As hyenas têm fome de ossos, os abutres têm sede de sangue... Começai! começai!

Houve durante momentos um silencio lugubre, que pesava horrivelmente, como um prenuncio de matança e de horror.

O rei então agitou a lança. Immediatamente vinte mil pés se ergueram, e tres vezes, em cadencia, bateram no chão que tremia. Depois, lá ao fundo, d’entre as densas e escuras filas de homens, subiu ao ar um canto solitario, arrastado, plangente, infinitamente triste, findando n’este estribilho:

--Qual é a sorte, sobre a terra,
De quem teve de nascer?

E os regimentos todos volviam, n’uma unica, grande e rolante voz:

--Morrer!

Mas pouco a pouco, as companhias, umas após outras, foram entoando uma estrophe da canção, até que toda a vasta multidão armada formava um côro--côro barbaro, rude, informe, onde todavia por vezes distinguiamos como conscientes expressões de sentimentos--notas suaves e lentas de amor, brados triumphaes de guerra, canticos solemnes de oração. Depois os cantos varios fundiam-se n’um lamento unico, contínuo, ululado, como d’um povo n’um funeral. De repente tudo estacava. E de novo o lugubre estribilho gemia no ar:

--Qual é a sorte, sobre a terra,
De quem teve de nascer?

E de novo a multidão clamava n’um unisono desolado:

--Morrer!

O canto por fim findou, um sombrio silencio cahiu, o rei levantou as mãos. Immediatamente, sentimos como o trote ligeiro de pés de gazellas: e, d’entre os profundos renques dos soldados, appareceram correndo para nós estranhas e medonhas figuras. Percebi que eram mulheres, quasi todas velhas, pelos longos cabellos brancos e soltos que lhe batiam as costas. Traziam as faces pintadas ás listas brancas e vermelhas: dos hombros pendiam-lhe esvoaçando, e misturadas ás madeixas, longas pelles de serpente: em torno á cinta cahiam-lhe como breloques de ossos humanos que chocalhavam sinistramente: e cada uma brandia na mão uma curta forquilha.

Ao chegarem em frente a Gagula pararam, ferindo o chão com as forquilhas. E uma, a mais alta, alargou os braços, gritou:

--Mãe, aqui estamos!

--Bem, bem, ganiu o decrepito monstro. Tendes hoje os olhos bem claros, Isanusis?

--Bem claros, oh mãe!

--Tendes hoje os ouvidos bem abertos, Isanusis?

--Bem abertos, oh mãe!

--Ide então! Farejai, farejai! Entre esses todos descobri os que querem mal ao seu visinho, os que possuem o gado indevido, os que tramam contra o rei, os que devem morrer por ordem de «cima»! Farejai! Vêde os pensamentos que se não mostram, ouvi as palavras que se não dizem! Ide, meus lindos abutres! Os homens das estrellas têm fome e sêde de vêr a grande Justiça! Agora!

Com uivos horrendos, as sinistras creaturas dispersaram correndo, para todos os lados, através das fileiras armadas. Não as podiamos seguir a todas na sua obra mortal. De sorte que, por mim, cravei a attenção na que ficou junto de nós, uma velha, esgalgado feixe d’ossos, que deitava lume pelos olhos. Quando esta Harpia chegou em frente aos soldados parou farejando. Depois rompeu a dançar, girando sobre si mesma, tão rapidamente, que as longas grenhas soltas pareciam uma estrella feita de estrigas de linho a redemoinhar pelo ar. No emtanto ia gritando por entre silvos de alegria:--«Já o farejo, o homem do mal! Alli está elle, o que envenenou a mãe! Acolá treme o que pensou mal do rei!»

E, cada vez mais vertiginosamente, vinha girando, girando, até que a espuma lhe sahia aos flocos da bôca e os ossos lhe rangiam alto! De repente estacou, hirta, tesa, como petrificada. Depois, devagar, devagar, como uma fera que rasteja, avançou de forquilha estendida para a fileira de soldados, que visivelmente se encolhiam n’um indominavel terror. Parou ainda, outra vez tesa e hirta. Por fim, com um brado estridente, arremetteu, e bateu com a forquilha no peito d’um rapaz soberbamente forte.

Dois camaradas immediatamente o agarraram pelos braços, o empurraram para defronte do rei. O desgraçado caminhava sem resistencia, inerte, já morto na alma. O bando dos executores avançára a passos graves:

--Mata! Disse o rei.

--Mata! Ganiu Gagula.

--Mata! Rugiu Scragga.

E antes que as palavras se perdessem no ar, o miseravel tombára morto, com uma azagaia cravada no peito, o craneo aberto por uma pancada de clava.

--Um, contou Tuala, sorrindo com satisfação.

Mal findára o feito horrivel, já outro soldado era arrastado como uma rez,--um chefe decerto, esse, porque lhe pendia dos hombros a capa de pelle de leopardo. Dois golpes de facalhão vibrados com destreza bastaram para o acabar sem um suspiro.

--Dois! Contou o rei.

E assim até cem! Até cem! E nós alli, aterrados, immoveis, impotentes para suster a carnificina, maldizendo surdamente a nossa impotencia! Eu findára por fechar os olhos. Á meia noite emfim houve uma suspensão. As farejadoras esfalfadas, em grupo defronte do rei, limpavam lentamente o suor. Respirei, n’um infinito allivio, suppondo que findára todo este incomparavel horror. Mas de repente, com desagradavel surpreza, descobrimos Gagula, erguida, apoiada n’um cajado, dando alguns passos que tremiam e lhe sacudiam o craneo calvo de abutre. Coisa pavorosa, vêr o velhissimo monstro, ordinariamente vergado em dois pela decrepitude, ganhando alento, remoçando quasi, já direito, já vibrante, á medida que se acercava da fileira dos homens, a recomeçar por gosto proprio a obra sinistra das «farejadoras»! Mas n’ella o estylo era differente. Não dançava, não uivava. Dando umas corridinhas curtas, aqui e além, cantava baixinho e tristemente, como para se embalar. Assim trotou, assim cantarolou, até que de repente se precipitou sobre um magnifico velho, perfilado em frente a um regimento--e tocou-o silenciosamente com o cajado. Um murmurio de dôr, de contida indignação, correu entre os soldados que elle evidentemente commandava. Todavia dois d’elles, empolgando-lhe os pulsos, arrastaram-no como um boi para o açougue. Soubemos depois que era um chefe de grande riqueza e de grande influencia, primo do rei. Foi trucidado com azagaia, facalhão e clava--e Tuala contou cento e um!

Quasi immediatamente Gagula, depois de alguns saltinhos curtos de macaca, começou a avançar para nós, n’um movimento muito lento de valsa, que era medonho na repulsiva bruxa.

--Justos céos! Murmurou o capitão John, querem vêr que agora é comnosco!

--Tolice! Acudiu o barão, pallido todavia.

Eu por mim senti um suor frio na espinha. E Gagula, cada vez mais perto,---com os olhos a saltar-lhe do craneo, um fio de baba na bôca.

Por fim estacou, como um perdigueiro que avista a caça.

--Qual será? Murmurou o barão.

Como se lhe respondesse, a velha deu um pulo, e tocou Umbopa (ou Ignosi) sobre o hombro:

--Morte! Gritava ella. Morte! Cheiro-lhe o sangue! Está cheio de maleficio e de traição. Mata-o depressa, oh rei, mata-o depressa antes que por elle gema em desgraça o reino!...

Houve um silencio, um pasmo. E nem sei como (porque sou realmente um cobarde) achei-me diante de Tuala, fallando com soberana firmeza:

--Este homem, oh rei, é o servo dos teus hospedes, e quem deseja o seu sangue é como se desejasse o nosso! Pela lei de hospitalidade, que cumpre aos reis manter, exijo a tua protecção para elle!

Tuala franziu o sobr’olho:

--Gagula, mãe das Isanusis, sabedora das artes, cheirou-lhe a traição dentro das veias. O homem tem de morrer, oh brancos!

--Quem lhe tocar, exclamei, batendo furiosamente com o pé no chão, é que tem de morrer!

--Agarrem-no! Bradou Tuala aos carrascos que esperavam em roda, já todos manchados de sangue.

Dois brutos romperam para nós--mas hesitaram. Ignosi erguera a azagaia, decidido a morrer combatendo.

--P’ra traz, cães! Berrei eu, n’um tom tremendo. Tocai n’um só cabello do homem, e vós mesmos, e a vossa feiticeira, e o vosso rei, não vereis mais a luz do dia!

E bruscamente apontei o rewolver a Tuala. O barão tinha já o seu erguido contra um dos carrascos: e John marchára sobre Gagula.

Houve um instante de indizivel assombro.

--Decide depressa, Tuala! Gritei, tocando-lhe quasi a testa com o cano do rewolver.

O monstro, visivelmente apavorado, rosnou, n’um tom surdo:

--Tirai para lá os vossos canos magicos! Invocastes as leis da hospitalidade, e só por amor d’ellas, não por medo de vós, poupo a vida a esse cão... Ide em paz.

--Está bem, Tuala! E lembra-te sempre que contra os homens das estrellas, nada podem os homens da terra!

O rei, ainda tremulo de furor impotente, ergueu a lança. Os regimentos começaram logo a desfilar.

D’ahi a pouco estavamos na nossa aringa--conversando á luz de uma das curiosas lampadas que usam os Kakuanas, em que o pavio é feito de fibra de palmeira, e o azeite de toucinho de hippopotamo. E o que affirmavamos todos com convicção, com ardor, era a necessidade e a justiça urgente de ajudar a conspiração de Umbopa contra um villão como Tuala!

CAPITULO VIII

A GRANDE DANÇA

Já muito tarde, quasi de madrugada, Infandós appareceu, como promettera, com os chefes seus amigos, todos homens de porte marcial e decididos. A conferencia foi longa e curiosa. Ignosi, convidado a expôr a sua romantica historia e os seus direitos ao reino dos Kakuanas, começou por tirar a tanga em silencio e mostrar o emblema sagrado, a grande serpente tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a lampada, e agachado examinava o signal com respeito; depois, em silencio, passava a lampada a outro.

Em seguida Ignosi, reatando a tanga, contou a sua vida estranha, desde a fuga com a mãe através do deserto. Os chefes permaneceram calados. Infandós, por seu turno, recordou os longos crimes de Tuala, retraçou as matanças d’essa noite de festa em que dois guerreiros valentes, de casas illustres, tinham sido trucidados só por possuirem grandes rebanhos que Scragga appetecia. Por fim fez um grande appello á razão e ao coração dos chefes, que só tinham a escolher entre o monstro que por avidez e capricho lhes arrancava a vida, ou o homem que lhes garantia a existencia feliz nas suas senzalas e a posse tranquilla dos seus gados. Mas, com espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.

Finalmente, um d’elles, homemzarrão possante, de carapinha branca, deu um passo, e declarou que a terra na verdade gemia sob a crueldade de Tuala, e que seu proprio irmão n’essa noite estava sendo pasto das hyenas...--Mas aquelle era um singular e confuso caso! E quem lhes afiançava que elles não ergueriam as suas lanças por um impostor? A guerra era certa. Muitos ficariam fieis a Tuala, porque mais se adora o sol que brilha, que o sol que ainda não nasceu. Necessitavam pois uma evidencia. E quem melhor lh’a poderia dar que os homens das estrellas, senhores das grandes artes magicas, que tinham trazido Ignosi ao paiz, e sabiam decerto os segredos?

--Se elle é o herdeiro legitimo, os homens que o trouxeram das estrellas que o provem, fazendo um grande milagre. Só assim o povo acreditará e tomará armas por elle!

--Mas a cobra, o emblema sagrado! Exclamei eu.

--Não basta. A cobra podia ser pintada no ventre já depois de elle ser homem... Necessitamos um milagre! O povo não se move, nem nós mesmos, sem um milagre!

Um milagre! A situação era terrivel e grotesca. Exigir-se um milagre a tres honestos e ingenuos mortaes, que nem sequer sabiam, como qualquer prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os honestos mortaes de fazer o milagre--ou de perder a vida!... Voltei-me para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risivel e perigoso lance.

--Parece-me que se póde arranjar, disse John, depois de um curto silencio. Peça a estes amigos que nos deixem sós, Quartelmar.

Abri a porta da cubata, os chefes sahiram. E apenas os passos morreram na sombra:

--Temos o eclipse! Exclamou o nosso admiravel John.

Era o eclipse que elle descobrira na vespera, folheando o almanach (o Livro de Bordo), e que n’esse dia, ás duas e quarenta minutos, devia ser visivel em toda a Africa.

--Ahi está o milagre! Affirmava John. É annunciar aos chefes que para lhes provar que Ignosi é o rei, e que devem pegar em armas por elle, nós faremos desapparecer o sol!

A idéa era esplendida. O unico receio é que o almanach estivesse errado.

--Não! É um almanach maritimo, não póde estar errado. Os eclipses são calculados mathematicamente. Não ha nada mais pontual que um eclipse... Durante meia hora, tres quartos de hora talvez, esta região toda ficará em trevas.

--Eu, por mim, disse o barão, parece-me que devemos arriscar o eclipse.

--Vá pelo eclipse!

Mandamos Umbopa buscar os chefes. Quando voltaram, cerrei a porta da cubata com um sombrio apparato de mysterio, e comecei por lhes declarar, magestosamente, que nós os homens das estrellas não gostavamos de alterar o curso natural das coisas e mergulhar o mundo em terror e confusão... Mas, como se tratava d’uma grande e santa causa, estavamos decididos a fazer um milagre.

--Escutai! Julgaes vós que um homem póde soprar sobre o sol, e apagal-o?

Os chefes olharam para mim, recuando com assombro.

--Não, murmurou um d’elles, não ha homem que o possa fazer! O sol é mais forte que toda a terra!

--Perfeitamente, conclui eu. Pois ámanhã, depois do meio dia, nós homens das estrellas apagaremos o sol durante uma hora, espalharemos trevas sobre a terra, e será o signal de que Ignosi é o verdadeiro rei dos Kakuanas e que o povo deve tomar armas por elle. Será bastante este milagre?

O chefe da carapinha branca abriu os braços para nós, esgazeado:

--Oh gentes das estrellas, senhores das grandes artes, esse milagre será mais que bastante!

--Bem. Tereis o milagre. Agora Infandós, que é experiente, diga o momento em que mais convem que nós apaguemos o sol.

--Apagar o sol! Murmuravam os chefes entre si. A grande lampada! O pae de tudo, que brilha eternamente!

--Falla, Infandós!

--Meu senhor, é na verdade um milagre espantoso que vós prometteis! Mas emfim... O melhor momento é o da dança das Flôres, que ha de logo começar ao meio-dia. As mais lindas raparigas de Lú estão lá, para dançar. E aquella que Tuala achar mais linda de todas é, segundo o costume, morta por Scragga em sacrificio aos Silenciosos, as figuras de pedra que estão além na montanha vigiando. Que os meus senhores n’esse momento apaguem o sol, salvem a rapariga, e o povo acreditará!

--O povo na verdade acreditará! Exclamaram todos os chefes.

--A duas milhas de Lú, continuou Infandós, ha uma collina em fórma de meia lua, que é realmente uma fortaleza, onde estão aquartelados o meu regimento e tres outros que estes chefes commandam. Mas podemos arranjar de modo que ainda esta manhã cedo marchem para lá tres ou quatro regimentos dos mais fieis á minha vontade. E se os meus senhores apagarem com effeito o sol, eu poderei, a favor da escuridão, fazel-os sahir do terreiro real e da cidade, e leval-os para essa fortaleza, onde ficarão a salvo e d’onde começaremos a guerra contra o rei.

--Está entendido, resumi eu. Agora ide, que queremos dormir e depois combinar com os Espiritos!

Com longas reverencias, Infandós e os chefes deixaram a nossa aringa. O sol ia nado.

--Oh meus amigos, exclamou Ignosi, apenas elles partiram. É certo que podeis fazer esse milagre, ou estaveis vós ganhando tempo e soltando no ar palavras vãs?

--Parece-me que não nos ha de ser difficil, meu Umbopa, quero dizer, meu Ignosi, declarei eu sorrindo.

--É espantoso! Apagar o sol... E todavia sois inglezes, e o inglez tudo póde! Mas ah, se vós fizerdes isso por mim, o que não farei eu por vós?

--Uma coisa já tu nos podes prometter, Ignosi! Acudiu gravemente o barão. É, se chegares a ser rei com o nosso auxilio, acabar com as «farejadeiras de feitiços», com matanças como as d’esta noite, e não consentir que homem algum seja condemnado sem provas de crime, e sem ter sido julgado pelos doze mais velhos do logar.

Era o jury, santissimo Deus! Era a nobre instituição do jury, que este digno barão queria implantar no centro selvagem da Africa! Não ha senão um liberal inglez para estas esplendidas imposições de civilisação e de ordem. Com razão hesitou o astuto Ignosi! Com razão conservou longo tempo dois dedos sobre a testa, calculando. Por fim, n’um rasgo de generosidade ou de condescendencia:

--Os costumes dos pretos não se podem moldar pelos costumes dos brancos. Comtudo, uma coisa te prometto, Incubú! É que não haverá no meu reino, nem matanças de festa, nem execuções sem julgamento. Estás contente?

O barão apertou-lhe a mão em silencio.

D’ahi a pouco estavamos estendidos nos leitos de folhas sêccas, e profundamente dormimos, até que Ignosi nos acordou ás onze horas. O nosso primeiro cuidado foi instinctivamente correr fóra da cubata, olhar para o sol. Nunca esse divino astro me pareceu tão brilhante e tão seguro da sua luz. Nem um signal de eclipse! Uma radiancia firme, absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder alterar!

--Pois, meu digno astro--murmurei eu, ousando interpellar directamente a fonte de toda a vida--se continuas assim, todo o dia, acabas, sem querer, com tres honrados homens!

Depois de almoçar, um solido e valente almoço que nos amparasse na crise imminente, revestimos as cótas de malha, afivelamos os cinturões de cartuchame, e de outros modos nos apetrechamos para a grande dança. E ao meio dia para lá voltamos os passos--que a inquietação interior e a certeza do perigo não permittiam que fossem nem bem alegres nem bem ligeiros!

O terreiro real offerecia n’essa manhã um aspecto bem diverso--e onde na vespera reinára o horror transbordava agora a graça. Em logar de fuscos e duros guerreiros, todo o espaço estava occupado por longas filas de raparigas kakuanas, escuras tambem é verdade, mas lindas, pelas fórmas, a expressão, a viçosa mocidade. Toilette, não tinham nenhuma--nem mesmo o panno, a tanga da Africa civilisada: mas salvavam esta encantadora deficiencia pelo franco luxo das flôres. Todas traziam na cabeça uma corôa de flôres; grinaldas de flôres, grandes como festões, envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas mãos uma palma verde e um lyrio branco. Nos escabellos de honra já estava o rei--acompanhado por Infandós, Scragga, guardas emplumados e a sinistra Gagula. Reconhecemos tambem, de pé, por traz d’elle, alguns dos chefes que n’essa noite tinham comnosco conspirado.

Tuala acolheu-nos com muita cordealidade ostensiva--dardejando ao mesmo tempo sobre Umbopa um olhar sangrento e mau.

--Bemvindos, homens das estrellas, bemvindos! Vêdes hoje aqui coisas diversas; mas não tão bellas, não tão bellas! Beijos e festas de mulheres são dôces; mas é mais dôce o brilho das lanças e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrellas: e se quizerdes casar n’esta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar d’estas raparigas as melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.

O nosso John, extremamente sensivel e amoroso como todos os marinheiros, deu logo um passo, teve um sorriso, como se se preparasse a aceitar e a recrutar alli, para occupar o seu coração na terra dos Kakuanas, um serralhosinho de donzellas escuras. Mas eu, homem idoso e experiente, receiando as complicações do eterno feminino, apressei-me a recusar:

--Não, Tuala, obrigado! Os homens brancos que vêm das estrellas só se ligam ás mulheres brancas que estão nas estrellas...

Tuala riu:

--Está bem, está bem... Nós temos um proverbio kakuana que diz: «Aproveita a que está perto, porque com certeza a que está longe te engana!» Mas talvez seja d’outro modo nas estrellas... Sêde pois bemvindos, e comece a dança!

Um grande tam-tam resoou, acompanhado por finas flautas de cana em que tres mocinhos sopravam agachados no chão. As fileiras de raparigas avançaram, cantando um canto muito lento e dôce,--e fazendo ondular nas mãos as palmas e os lyrios. Era um grande bailado barbaro, infinitamente pittoresco. As raparigas ora saltavam brandamente sobre as pontas dos pés, n’uma graciosa languidez de gestos; ora, enlaçadas aos pares, redemoinhavam vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam uma batalha, tendo por armas os ramos de palma; ora, ajoelhando em reverencia, offertavam os lyrios ao rei. Depois eram grandes marchas bem ordenadas em que o canto tomava um tom triumphal; e logo uma alegre confusão, n’uma grulhada melodiosa, com um vivo saltar de corpos ageis--que espalhava pelo ar as petalas das flôres desfolhadas.

Por fim o bailado parou: e uma esplendida rapariga, de olhos radiantes, mais airosa que uma Diana caçadora, avançou devagar, e rompeu n’uma dança estranha, cheia de graça e de brilho, em que os movimentos tudo traduziam, desde os requebros fugidios da noiva timida até os pulos bravos da corça ciosa... Assim dançou longamente: os seus olhos cada vez mais rebrilhavam: a grinalda que lhe envolvia a cinta desfizera-se flôr a flôr; e todo o corpo adoravel lhe reluzia ao sol como um bronze humedecido. Por fim, cançada, sorrindo, recuou até ao grupo das bailadeiras onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o seu ramo de lyrios. Veio então outra, muito alta, dançar; e outra depois, e muitas ainda, todas bellas e habeis;--mas nenhuma como a Diana caçadora tinha belleza, graça e consummada arte.

O rei ergueu a mão, o tam-tam cessou.

--Gentes das estrellas, disse elle, qual d’ellas achaes mais linda?

--A primeira, respondi eu irreflectidamente.

E logo me arrependi, lembrando o que annunciára Infandós--que a mais linda tinha de perecer, sacrificada aos idolos. Ao mesmo tempo deitei um olhar ao sol que continuava a refulgir com uma teima desesperadora.

Tuala no emtanto sorria:

--Os vossos olhos, gentes das estrellas, vêem então como os meus. A primeira é a mais bonita. E mau é para ella que tem de morrer!

--Tem de morrer! Echoou Gagula que parecera dormitar durante a festa, e acordava, já interessada, desde que presentia sangue e dôr.

--Morrer! Exclamei eu, sorrindo tambem, como se não acreditasse. Porque, oh rei? Ella dançou bem, a todos agradou. Além d’isso é moça e linda. Seria cruel e estranho recompensal-o com a morte.

A fera affectou uma sympathia, que, n’elle, arripiava:

--Tambem o lamento, mas é o costume do meu reinado. Os Silenciosos, que estão além na montanha vigiando, precisam receber o seu tributo. Ha uma prophecia do nosso povo que diz: «O rei, que no dia da grande dança não sacrificar aos Silenciosos a mais linda das donzellas, perecerá, e com elle a sua casa». Por não ter cumprido a ordem de «cima», cahiu meu irmão e em seu logar reino eu... Ide (voltando-se para os guardas), trazei a virgem! E tu, meu Scragga, aguça a lança!

Dois da guarda real marcharam para a pobre e dôce rapariga, que desfolhava nervosamente as pétalas do seu lyrio branco. De repente, e só então, ella pareceu comprehender a fatalidade que a perdia, por ser formosa e pura. Deu um grito, tentou fugir. Duas mãos fortes agarraram-na e trouxeram-na, toda em lagrimas e debatendo-se, para diante de Tuala.

--Que nome é o teu, linda moça? Ganiu a horrivel Gagula. Não respondes? Queres que o filho do rei tenha de erguer a lança, sem saber quem tu sejas?

A isto, Scragga deu um salto com sofreguidão, alçando a sua immensa azagaia. Vendo o ferro luzir, a pobre rapariga cessou toda a lucta entre as mãos fortes dos guardas. E com grandes lagrimas que lhe cahiam, ficou toda, toda a tremer.

O medonho Scragga teve uma risada bestial:

--Como ella treme, como ella treme diante da minha força!

--Ah canalha, se te apanho a geito! Rosnou o capitão, apertando na mão o rewolver.

No emtanto Gagula, com atroz zombaria, animava a desgraçada:

--Socega! Dize o teu nome. Vem, filha! Não temas!

--Oh mãe! Balbuciou a pobre creatura entre soluços, n’uma voz que desfallecia. Oh mãe! O meu nome é Fulata, e sou da casa de Suko. Mas porque hei de eu morrer, eu que não fiz mal nenhum?

--Tens de morrer, proseguiu a hedionda velha, para contentar os que vigiam além na montanha. Mais vale dormir de noite que trabalhar de dia. Mais vale estar quieta e morta que agitada e viva. E tu, filha ditosa da casa de Suko, vaes morrer ás mãos reaes do filho do nosso rei.

Olhei anciosamente para o sol. Nada! Um brilho impassivel, que achei quasi cruel!

No emtanto a pobre Fulata, apertando desesperadamente as mãos, supplicava, com gritos de angustia:

--Oh mãe, oh rei, não me deixeis morrer!... E eu tão nova! Pois nunca mais hei de vêr a aringa de meu pae? Nem embalar meus irmãos pequeninos? nem cuidar dos cordeiros doentes? E porque? Mandaram-me aqui para dançar e eu dancei! O meu noivo está lá fóra á minha espera! Minha mãe ficou sentada debaixo das machabelles até que eu volte para mugir as vaccas... E porque hei de eu morrer? Nunca fiz mal nenhum; e no terreiro da nossa casa deixava sempre cahir grãos de aveia para os passaros levarem aos ninhos...

Nas proprias faces dos guardas e dos chefes perfilados junto a Tuala se espalhava um ar de piedade. Muitas raparigas soluçavam baixo. E subitamente, o capitão John, sem se poder conter mais, arrancou o rewolver da cinta e fez um movimento tão saliente, de tão clara intervenção--que a rapariga viu, n’um relance comprehendeu... Desprendendo-se dos guardas, que a seguravam frouxamente, veio arrojar-se aos pés de John, abraçando-lhe as pernas núas:

--Oh pae branco, que vens das estrellas! Gritava ella. Deixa acolher-me á sombra da tua força... Salva-me d’estes homens, e de Gagula, a mãe que é tão cruel...

Tornei a olhar para o sol... E com um allivio, uma alegria tão intensa que ainda hoje o recordal-a me aquece o coração, vi uma linha de sombra, muito fina ainda, surgindo á orla do disco radiante!

--O eclipse! Gritei eu para os outros. John, conserve ahi a rapariga atraz! E armas na mão, rapazes!

Immediatamente, avancei para o rei:

--Tuala, exclamei com firmeza e arrogancia. Nós, gentes das estrellas, não podemos consentir n’esta maldade! Tal não será! Deixa que a rapariga volte para a sua morada!

Tuala ergueu-se com um pulo brusco de surpreza e de colera. E dos chefes, das agitadas filas de mulheres, subiu um murmurio que era de assombro, e talvez de esperança.

--Não consentis! Bramiu o rei, com o olho sangrento dardejando lume. E quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão na sua caverna? Tal não será! E como o podes tu impedir? Vai talvez a tua vontade prevalecer contra a minha força? Scragga, mata a creatura! E vós guardas, olá, agarrai esses homens!

Uma multidão de soldados surgiu, correndo, detraz da aringa real. O barão, Umbopa e o capitão (com Fulata agarrada a elle) vieram pôr-se ao meu lado de carabinas apontadas.

Outro olhar meu ao sol! A linha de sombra, lenta e gradualmente, avançava sobre o globo rutilante. Com esplendida confiança, ergui a mão, bradei:

--Parai! Nós, os filhos das estrellas, decidimos que a rapariga não morrerá! E se alguem ousar ir contra a nossa vontade, ou avançar contra nós um passo, nós, os magicos das grandes artes, apagaremos o sol e mergulharemos o mundo em trevas!

O effeito foi tremendo. Os soldados estacaram. E Scragga ficou diante de nós, com a lança erguida no ar, como uma figura de pedra. Mas Gagula erguera-se, sacudindo os braços com furor:

--Ouvi, ouvi o grande mentiroso, que diz que apaga o sol como um lume da terra! Pois que o faça, e a rapariga irá livre para a sua morada! Mas se o não fizer, oh rei, que elle morra com ella, e com elle morram os cães malditos que vêm latir contra ti!

Sem mais, ergui a mão solemnemente para o sol (movimento que logo imitaram John e o barão) e rompi a bradar. Não me lembro já das coisas absurdas que tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos de Shakespeare, pedaços da Biblia, proverbios, datas, nomes de firmas commerciaes que me acudiram, as ruas da cidade do Cabo,--que sei eu? Tudo o que me affluia aos labios, e que fosse em inglez, na lingua magica. Ousei mesmo espantosas familiaridades com o respeitavel centro do systema planetario. Gritava: «Anda-me assim, solzinho da minha alma! P’ra diante, valente! Deixa avançar essa rica sombra! Ah que estás um catita, meu astro! Mais, mais!...»

E o sol obedecia! A mancha escura, nitida e convexa, avançava, comia a luz immortal. Um grande susurro de terror agitava a multidão. Volvi então a fallar kakuana, livremente:

--Vê tu, oh rei! Vê tu, Gagula! Vêde vós, oh chefes! Mentem então os homens das estrellas? Quizestes a treva eterna, eil-a que vos vem tragar!... Oh sol, pae de tudo, reluzente e triumphante, retira a luz, some-te á nossa ordem, mata o mundo com escuridão e frio, e, que sem ti, parem para sempre estes corações crueis!... O sol vai morrer!

Gritos de terror resoavam já no terreiro. As mulheres, cahidas de joelhos, choravam, implorando misericordia. E o rei, calado, tremia.

Só Gagula resistia ao pavor:

--Vai passar, vai passar! Uivava ella. Eu já vi o sol assim. Ninguem o póde apagar. Ficai quietos! Socegai! A sombra vem e vai... Eu já vi, eu que sou a mais velha, e conheço os segredos!

Eu por mim animava os companheiros:

--Vá, rapazes! Já não sei que hei de dizer ao sol. Veja se se lembra de alguns versos, barão. Tudo serve, até pragas!

E John, admiravel marinheiro, rompeu então a praguejar. Foi sublime. Teve todas as pragas classicas,--e teve-as ineditas. Nem eu suppunha mesmo que a Humanidade possuisse, no seu vocabulario, uma tal riqueza de blasphemias! O que o Rei do Dia ouviu!

No emtanto a mancha negra alastrava. Estranhas, sinistras sombras fluctuavam no ar. Uma triste quietação descia sobre a terra. Todos os passaros se tinham calado. Ao longe os cães uivavam.

E a mancha crescia, crescia... A atmosphera tornára-se espessa. Já mal distinguiamos as faces crueis da gente real. Esmagadas de temor, as mulheres nem tugiam. Por fim John parou a torrente de invectivas. E o que restava do sol parecia uma luz agonisante.

--O sol morreu! Berrou de repente Scragga. Os bruxos das estrellas mataram o sol! Tudo vai morrer nas trevas!...

E fosse o delirio do medo ou da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a toda a força contra o peito do barão. Mas a cóta de malha repelliu o ferro. E antes que elle podesse revibrar o golpe, o barão arrancára-lhe a lança das mãos e passou-lh’a através do coração. Com um uivo hediondo, Scragga tombou morto.

Quasi nada restava da luz. Era como se tudo acabasse conjuntamente, o sol, o mundo, e a descendencia do rei! N’um terror indizivel, a multidão de raparigas largou fugindo, em confusão e gritos, para as portas da aringa. Foi um panico estonteado. Os guardas, arrojando as armas, galgavam as estacadas. Os chefes, aos saltos por cima dos escabellos, desappareciam como lebres. E por fim, o proprio e ferocissimo rei, com Gagula atraz, arremetteram para as cubatas, ganindo n’um pavor vil. Uma debandada--que nos deixou sós, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda agarrada a John, Infandós, os chefes que conspiravam, e o cadaver de Scragga.

--Chefes! Gritei eu. Eis o milagre que tinhamos promettido. Sabei agora que Ignosi é o rei unico e forte. O feitiço está trabalhando. Corramos para a cidadella que dissestes, emquanto a treva dura!

--Vinde! Exclamou Infandós, segurando-me pela mão. E vós todos segui! O dia é nosso!

Ao chegarmos á porta da aringa, a luz findou inteiramente.

Agarrados uns aos outros pelas mãos, com Fulata no meio, fomos tropeçando através da escuridão. Dentro das senzalas ouviamos gemidos de terror. E para o augmentar, lançavamos a espaços, através da treva, um lugubre brado de revolta e de guerra:

--Morte a Tuala!

CAPITULO IX

ANTES DA BATALHA

Durante mais de uma hora caminhamos, através da escuridão, guiados por Infandós e pelos chefes--até que de novo surgiu, como um fino traço luminoso, a orla do sol. D’ahi a pouco havia já luz sufficiente; e achamo-nos então longe de Lú, junto de uma larga collina, de duas fartas milhas de circumferencia, em fórma de ferradura, e toda ella inteiramente plana no topo. Desde tempos immemoriaes, aquelle planalto fôra (segundo nos disse Infandós) aproveitado como acampamento permanente, e ordinariamente occupado por uma guarnição de tres mil homens. N’essa manhã, porém, á maneira que iamos trepando os flancos da collina, á luz já viva e quente do sol, descobriamos successivos regimentos, formando uma divisão de dezoito ou vinte mil homens, quasi todos veteranos. Estavam ainda sob o espanto e terror da mysteriosa treva que de repente os envolvera. E foi em silencio que passamos através das suas filas cerradas, em direcção a um grupo de cabanas que se erguia a meio do planalto. Com surpreza e grande alegria encontramos lá dois servos, á espera, carregados com todas as nossas bagagens, cantinas, e munições que n’essa manhã deixaramos nas cubatas de Lú. N’uma trouxa as calças de John. Com que sofreguidão elle as envergou, pudico homem!

--Fui eu que mandei vir tudo, á cautela! Explicou o serviçal Infandós. Quem sabe quantos dias estaremos n’este deserto!

Como não havia tempo a desperdiçar, o velho e activo guerreiro deu ordem para que se formassem as tropas immediatamente. Era necessario antes de tudo (disse elle) aclarar aos regimentos os motivos da revolta já decidida pelos chefes, e apresentar-lhes Ignosi, o legitimo rei por quem iam combater.

Meia hora depois os regimentos (a flôr do exercito dos Kakuanas) estavam em formatura nos tres lados d’um immenso quadrado. Do lado aberto ficamos nós com Ignosi, o velho Infandós e os chefes conjurados. Logo que um arauto intimou silencio--Infandós avançou: e com um calor, um enthusiasmo, irresistivelmente persuasivos, narrou a historia de Ignosi, o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta, a tragica morte de seu pae á mão de Tuala, a sua fuga através dos montes, o seu exilio entre estranhos. Depois retraçou o reinado cruento de Tuala, os seus crimes, as suas espoliações, as frias e inuteis crueldades. Em seguida contou como os homens brancos das estrellas, que de lá de cima tudo vêem, se tinham compadecido da grande afflicção que ia no reino dos Kakuanas; como tinham ido então buscar Ignosi, o rei legitimo, ás terras distantes onde elle definhava no exilio, e o haviam trazido pela mão, através dos areaes e dos montes, ao paiz de seus paes; como n’essa manhã, para mostrar a Tuala e a todos o seu poder magico, e provar aos chefes descontentes que Ignosi era rei, elles com as suas artes tinham apagado, e depois tornado a accender o sol; e como, emfim, esses magicos que nenhuma força vencia estavam dispostos a derrubar Tuala, o falso rei--e pôr em seu logar Ignosi, o rei verdadeiro!

Apenas elle findára, entre um longo murmurio de approvação, Ignosi deu dois passos, e, alteando a sua nobre estatura, appellou para as tropas.--Ellas tinham ouvido Infandós, seu tio! Cada palavra d’elle luzia como a verdade. Os Kakuanas agora só podiam escolher entre Tuala, o monstro que os roubava, os trucidava, e cobria a terra de horror e desordem,--e elle, rei legitimo, que não permittiria mais no reino a caça aos feiticeiros, nem matanças de festa, nem castigos sem julgamento, nem a oppressão dos mais fortes... Pelo contrario, sob elle, só haveria paz e abundancia! A todos os que alli estavam e o ajudassem daria cubatas, mulheres e gados:--e todos, ganha a victoria sobre Tuala, iriam viver nas suas senzalas bem providas, em descanço e alegria para sempre. De resto, os homens das estrellas estavam com elle, a seu lado, para manter os seus direitos. E quem podia ir contra a força das suas artes magicas? Não tinham elles visto o sol apagado, depois outra vez brilhante, á ordem dos espiritos brancos?

Um rumor de acquiescencia, de adhesão, corria já entre as tropas. Ignosi então recuou um passo, e erguendo no ar o seu formidavel machado de guerra:

--Eu sou o rei! Na verdade vos digo que sou o rei! E se ahi ha alguem, d’entre vós, que diz que eu não sou o rei, que sáia a terreiro, se bata commigo, e bem cedo o seu sangue correndo no chão provará que na verdade sou rei. Escolhei pois entre mim e Tuala, oh chefes, soldados, vós todos! Sou eu o rei!

--És o rei! Foi a universal, acclamadora resposta, que atroou toda a collina.

--Bem! Tuala está mandando já emissarios a reunir os seus homens para nos combater. Os meus olhos estão abertos, e verão aquelles que mais fieis me são, e que merecerão mais terra, mais gado, mais riqueza. E agora ide, e preparai-vos para as batalhas, em defeza do vosso rei!

Houve um silencio. Um dos chefes ergueu a mão; e os vinte mil homens, ferindo o sólo com as azagaias, soltaram a grande saudação real--krum! krum! krum! Ignosi estava acclamado rei. Os batalhões immediatamente recolheram aos seus acampamentos. No planalto reinou silencio e ordem.

Logo depois celebramos um conselho de guerra, com todos os capitães. Era evidente que em breve seriamos atacados pelas tropas fieis a Tuala. Já do alto da nossa collina nós viamos regimentos marchando, a concentrar-se em Lú--e um incessante movimento de armas por toda a estrada de Salomão. Do nosso lado contavamos com vinte mil homens. Tuala, segundo o calculo dos chefes, poderia ter reunidos na manhã seguinte trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas d’esses, muitos eram recrutas; e a forte flôr do exercito, os veteranos endurecidos, os capitães de experiencia estavam felizmente comnosco, sobre a collina da Revolta.

O primeiro cuidado era fortificar a nossa posição. Começámos por obstruir com grossos rochedos todos os carreiros que subiam da planicie. Nos pontos mais accessiveis erguemos estacadas e trincheiras. Accumulámos á orla do planalto montes de pedras para arremessar sobre os assaltantes. Aqui e além cavámos fossos. E, como todo o exercito trabalhava, ao fim da tarde a collina fôra convertida em cidadella.

Justamente antes do pôr do sol, vimos um grupo de homens que de uma das portas de Lú avançava para nós, fazendo soar um tam-tam. Um d’elles trazia na mão uma palma verde. Era um arauto.

Ignosi, Infandós, dois ou tres chefes, eu e os amigos descemos ao seu encontro. Vimos um soberbo homem, ainda moço, com a pelle de leopardo aos hombros.

--Saude! Gritou elle, parando e agitando a palma. O rei envia o seu saudar áquelles que lhe fazem uma guerra infiel. O Leão envia o seu saudar aos chacaes.

--Falla! Bradei.

--Estas são as palavras do rei:--«Entregai-vos á minha mercê, antes que a minha forte mão cáia sobre vós!»--Assim disse o rei. Já foi arrancada ao toiro negro a espadoa direita! Já o rei o anda enxotando ensanguentado em volta ao acampamento![2]

--Quaes são as condições de Tuala? Perguntei por curiosidade.

O arauto declarou que as condições eram misericordiosas e dignas de um grande rei. Muito pouco sangue o contentaria. De cada dez homens um seria morto, os outros perdoados; mas o branco Incubú que matára Scragga, o servo Ignosi que pretendia o seu trono, e Infandós que preparára a rebellião, seriam postos a tormentos, em sacrificio aos Silenciosos. Taes eram as misericordiosas condições do rei.

Consultei um instante com os chefes, e repliquei, n’um tom estridente para que todos os soldados ouvissem, por sobre a collina:

--Volta para Tuala que te mandou, oh cão, filho de cão! E dize-lhe em nome de Ignosi, legitimo rei, e de Infandós, seu tio, e dos homens das estrellas que apagam o sol, e de todos os chefes e soldados aqui juntos, dize a Tuala--que antes que o sol dê duas voltas o cadaver de Tuala jazerá hirto e frio no terreiro de Tuala... Vai e treme, oh cão, filho de cão!

O official riu, com arrogancia:

--Não se assustam homens com palavras inchadas! Ámanhã se verá em que terreiro e que corpos jazerão hirtos e frios. Adeus pois, homens das estrellas. Para meu proprio regalo espero que tenhaes o braço tão forte como tendes ousada a lingua!

Com este sarcasmo o valente voltou costas. Quasi immediatamente a noite desceu.

Á luz da lua ainda continuaram os trabalhos da defeza. Depois, já por noite alta, quando tudo se completára, o barão, Ignosi e eu, acompanhados por um dos chefes, descemos a collina a visitar os postos avançados. Á maneira que caminhavamos, viamos de repente surgir dos sitios menos esperados, de uma cova na terra, de uma moita de arbustos, de um montão de rochas, alguma enorme figura emplumada, com a ponta da azagaia rebrilhando á lua, que, trocada a palavra de passe, logo se sumia, como dissolvida na sombra das coisas. A vigilancia era realmente perfeita. Demos assim toda a volta á collina, que tornamos a subir pela vertente norte, através das companhias de soldados adormecidos. A lua batia nas lanças ensarilhadas. Aqui e além uma sentinella destacava immovel, com as suas altas plumas ondeando á brisa fria da noite. E os robustos homens escuros, estirados no chão, uns contra os outros, no confuso abandono da fadiga e do somno, formavam como um vasto montão de humanidade já prostrada e preparada para a sepultura. Quantos d’aquelles estariam ainda vivos quando na outra noite de novo nascesse a lua? Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos d’esses tinham alegria e paz nas suas aringas. Um principe ambicioso passava. E eis que milhares que alli dormiam um somno tranquillo cahiriam, varados por lanças, seriam frios cadaveres, desappareceriam em pó impalpavel, sem de si deixar mais vestigio que folhas de arvores que um vento leva. E nós mesmos--quem sabe? Tornariamos nós a vêr a lua brilhar n’aquella collina?

--Barão, disse eu de repente, dando voz a estes pensamentos, sinto-me n’um lamentavel estado de atrapalhação e de medo.

--O amigo Quartelmar costuma sempre queixar-se...

--Não, não! D’esta vez é serio. Nem sinto as pernas. Nós ámanhã somos atacados com forças colossalmente superiores e não escapa um de nós. É estupido! E para que? Não temos nada com as questões dynasticas dos Kakuanas! Somos estrangeiros, somos neutros!

--É verdade. Mas já agora, estamos envolvidos na aventura e é necessario leval-a a cabo airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale morrer de repente, n’uma batalha, que durante mezes na cama!...

Eu pensei commigo (e bem estupidamente) que o melhor era não morrer nem n’uma cama, nem n’uma batalha. E d’ahi a instantes recolhiamos á nossa estreita senzala, a dormir algumas horas antes da grande acção.

Infandós veio-nos acordar ao romper da alvorada, dizendo que se observavam já do lado da cidade movimentos de tropas, e que já ligeiras escaramuças tinham obrigado as nossas sentinellas avançadas a recolher. Começámos logo, febrilmente, os nossos preparativos. O barão, pelo principio de que na «Kakuania se deve ser Kakuano», armou-se e enfeitou-se como um guerreiro selvagem--pelle de leopardo aos hombros, enorme pluma de abestruz presa á testa, cintura de rabos de boi, escudo de ferro coberto de couro branco, machada de combate, facalhões de arremessar, azagaia, todo o complicado armamento d’um chefe negro. E devo confessar que assim armado e emplumado era uma esplendida e formidavel figura! O capitão John não causava tanta impressão. Em primeiro logar insistira em conservar as calças que Infandós lhe obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de monoculo, suissa d’um lado e a cara rapada do outro, com uma cóta de malha de ferro mettida para dentro das pantalonas, grande lança e chapéo côco, offerece na realidade um espectaculo mais estranho que imponente. Eu por mim, ao contrario, tinha tirado as calças para correr mais lesto se tivessemos de retirar: mas a fralda da camisa apparecia-me por baixo da cóta de malha: um facalhão que pendurára á cinta batia-me lamentavelmente nas canellas: o escudo enfiado no braço entanguia-me os movimentos: e sentia em geral que não apresentava para combate uma figura sufficientente heroica. De sorte que espetei uma immensa pluma no meu bonet de caça--e procurei dar ao rosto uma expressão de ferocidade. Além do arsenal de armas selvagens, tinhamos naturalmente as nossas carabinas, que tres soldados atraz conduziam com os sacos de munição.

Apenas armados, engulimos á pressa o almoço, e abalámos. N’uma das extremidades do planalto do monte havia uma especie de casebre de pedra, que servia ao mesmo tempo de quartel-general e de torre de vigia. Encontrámos ahi Ignosi, magnificamente emplumado e apetrechado. Com elle estava Infandós: e como guarda real o regimento de Infandós, decerto o mais numeroso e aguerrido de todo o exercito. Este regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto de tres mil praças; e estava collocado de reserva, deitado em ordem e por companhias sobre o capim que alli crescia. Os chefes, n’um grupo, junto do casebre, com as mãos em pala sobre os olhos, observavam o movimento das tropas de Tuala--que vinham n’esse momento sahindo de Lú em longas columnas semelhantes a formigueiros.

Cada uma d’essas columnas tinha de onze a doze mil homens. Logo que sahiram as portas de Lú e se acharam na planicie pararam: depois, formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a esquerda, a terceira em direcção á nossa collina.

--Bom, murmurou Infandós, vamos ser atacados por tres lados!

CAPITULO X

O ATAQUE DA COLLINA

Devagar, em perfeita ordem, as tres columnas avançaram. A da direita e a da esquerda, separadas, e obliquando como para envolver e cercar a nossa posição: a do centro, direita sobre nós, marchando por aquella lingua da planicie que entrava pela nossa collina dentro--collina que (como disse) tinha a fórma d’uma meia lua com as duas pontas voltadas para a cidade de Lú. A umas quinhentas jardas esta columna parou--dando tempo a que as outras circumdassem a nossa posição. O plano das gentes de Tuala era evidentemente dar, por cada lado, á nossa cidadella um assalto simultaneo e brusco.

--Ah! Suspirou John, olhando aquellas multidões espalhadas em baixo, quem tivera aqui uma metralhadora!

--Nem fallemos n’essa delicia! Exclamou o barão com igual pezar. Em todo o caso, Quartelmar, veja se a sua carabina chega até áquelle maganão, de pelle de leopardo, que parece commandar a força.

Carreguei tranquillamente a carabina com bala, agachei-me por traz d’uma pedra e apontei. O pobre commandante de pelle de leopardo avançára das fileiras uns trinta passos, seguido por uma ordenança, a examinar a nossa posição; e erguia justamente o braço quando eu lhe mandei uma bala. Tombou sem um movimento mais, com a face no chão. Os nossos regimentos espantados, acclamaram este milagre do homem das estrellas; e eu (tanto a guerra nos endurece o coração) gostei d’estes applausos. Creio mesmo que agradeci, como um actor! No emtanto o barão apontára a um outro official, que correra a recolher o cadaver do camarada--e que, por seu turno, bateu com os braços no ar, cahiu morto. A força inimiga, aterrada, começou logo a recuar. Os nossos uivavam de deleite e de furor. John juntára-se a nós com a sua carabina; e antes que a divisão se tivesse retirado para fóra do nosso fogo, abatemos uns dez ou doze homens. Como effeito moral parecia excellente.

De repente, porém, ouvimos um immenso clamor á nossa direita, e um clamor igual á nossa esquerda. Eram as duas columnas circumdantes que nos atacavam. Immediatamente a massa de homens em frente de nós rompeu avançando por aquella lingua de planicie que penetrava em subida suave no interior da nossa meia lua. Vinham n’um passo vivo, certo, elastico, que cadenciavam entoando um canto rouco. Começamos de novo a fazer fogo. Muitos homens cahiram. Mas era como se atirassemos pedras a uma grande vaca de equinoxio. A maré humana subia.

Subia com grandes brados, repellindo os nossos postos, collocados entre as rochas, á base da collina. A sua marcha porém diminuia de impeto, á maneira que a subida se convertia em ladeira, depois em ingreme pendôr de monte. Ahi onde começava o monte, estacionava a nossa primeira linha de defeza. Já de lado a lado, entre as forças, se começavam a atirar as tollas, grandes facas de arremesso que faiscavam no ar. Os que avançavam vinham bradando: Tuala, Tuala! Chielè, Chielè! (mata, mata!) Os nossos replicavam: Ignosi, Ignosi! Chielè, Chielè! As primeiras azagaias entrechocaram-se; e, com o encontro, peito a peito, das duas massas de homens, na vertente da collina, a batalha começou.

As forças que atacavam eram esmagadoras; e a nossa primeira linha, onde os homens cahiam como folhas no outono, cedeu, e reentrou na segunda linha de defeza. A lucta aqui foi terrivel; mas os nossos recuaram, e a terceira linha entrou em batalha á orla já do planalto. O barão, cujos olhos se accendiam, não se conteve mais. Brandindo a sua machada de guerra, arremessou-se para o meio do combate, seguido do capitão John. Ao avistar a gigantesca figura do «homem das estrellas» que vinha em seu soccorro, os nossos soldados bradaram com enthusiasmo:--Nanzie Incubú! (Ahi vem o elephante!) Chielè, Chielè! E, carregando com redobrado vigor, em poucos momentos repelliram a divisão de Tuala, que, já cançada, sem poder romper a sebe viva de lanças que a continha, voltou a descer a collina em confusão. N’esse instante tambem um mensageiro esbaforido veio annunciar a Ignosi (ao lado de quem eu ficára) que o ataque na esquerda da serra fôra rechaçado; e já eu e Ignosi nos congratulavamos, quando, com grande horror, vimos os nossos, que estavam defendendo a direita, vir correndo pelo planalto, acossados por multidões inimigas, que evidentemente n’aquelle ponto tinham rompido as nossas linhas.

Ignosi bradou uma ordem. Immediatamente o regimento dos Pardos se desdobrou, para reter a debandada dos nossos, rechaçar a invasão. E, sem que eu comprehendesse bem como, instantes depois achei-me envolvido n’uma furiosa carnificina. Tudo o que me lembra é o estridente ruido dos escudos de ferro entrechocando-se--e logo adiante a apparição d’um enorme bruto furioso, com os olhos sangrentos a saltarem-lhe das orbitas, que erguia sobre mim uma longa azagaia. O meu rewolver findou-lhe os furores para todo o sempre. Mas quasi em seguida, senti uma pancada na cabeça--e quando tornei a abrir as palpebras, estava no casebre do quartel-general, deitado n’uma esteira, com o excellente John ao meu lado, velando.

--Então, exclamou elle anciosamente, pondo no chão a cabaça d’agua com que me borrifava.

Antes de responder, ergui-me muito devagar, apalpei com cuidado o meu precioso corpo.

--Bem, obrigado. Estou perfeitamente bem!

--Graças a Deus! Quando o vi, trazido n’uma padiola, deu-me uma volta o coração!

--Não, não foi d’esta! Levei só uma bordoada, supponho eu. E a batalha?

--Por hoje repellimos a pretalhada do rei. Mas perdemos perto de dois mil homens. Veja aquelle horror, Quartelmar!

E o bom John mostrava fóra o terreiro, convertido n’um hospital de sangue. Para transportar os seus feridos, os Kakuanas usam um longo e esguio taboleiro com uma argola a cada canto. E d’estes taboleiros, postos no chão, cada um com o seu homem, havia longas filas--por entre as quaes caminhavam, curvados, os cirurgiões Kakuanas. O methodo d’estes clinicos é simples o piedoso. Se a ferida se apresenta curavel, o soldado é besuntado com os unguentos nativos, e isolado nas senzalas. Se a ferida é incuravel ou muito grave, o cirurgião, com uma lanceta, corta subtilmente uma arteria do homem, que expira em poucos instantes sem soffrer.

Fugindo a estes espectaculos, John e eu seguimos para o outro lado do quartel-general, onde encontramos o barão (ainda de machado na mão, todo tinto de sangue) reunido em conselho com Ignosi, Infandós e dois chefes idosos.

--Ainda bem que chega, Quartelmar! Gritou o barão. Eu não posso comprehender o que quer esta gente... Parece que vamos ser cercados!

E assim era, segundo explicou lentamente Infandós. Tuala repellido reunira reforços, e parecia tomar disposições para pôr sitio á collina, e vencer-nos pela fome e pela sêde. Os mantimentos não durariam mais de dois dias. Mas o peor era que a nascente d’agua, sorvida a cada instante por dezeseis mil bôcas sedentas, estava prestes a esgotar-se; e antes da manhã seguinte o exercito gemeria de sêde. N’estas conjuncturas, Ignosi queria saber o que propunham os homens das estrellas.

--Dize tu, Macumazan, velha raposa, que tens visto muito, e sabes todas as artes.

Conversei um momento com os amigos, e declarei em seguida ao conselho, que, sem pão e sem agua, nada nos restava senão fazer immediatamente uma tremenda sortida contra Tuala. Todos approvaram com ardor a minha idéa. Mas sob que plano se tentaria esse ataque? Cabia a Ignosi, o rei, decidir:--e os olhos de cada um voltaram-se para o nosso antigo servo, que agora, nas suas armas e plumagens de guerra, tinha um magnifico ar de rei guerreiro.

Depois de pousar dois dedos sobre a testa, á maneira Zulú, Ignosi fallou e desenvolveu um plano excellente. Ao começo da tarde (era então meio-dia) os Pardos, commandados por Infandós e o barão, desceriam aquella lingua da planicie que penetrava na meia lua da collina, e avançariam sobre Tuala, emquanto elle proprio, Ignosi (que eu devia acompanhar), ficaria de reserva por traz com tropas frescas. Decerto Tuala, vendo os Pardos romper n’uma sortida, lançaria sobre elles toda a sua força para os esmagar. Emquanto na lingua de terra se estivesse dando esse primeiro recontro, uma terça parte das nossas forças desceria pela ponta direita da collina, levando comsigo John, o do olho rutilante; outra terça parte iria de manso pela ponta esquerda; subitamente ambas cahiriam sobre os flancos de Tuala;--e n’esse instante elle, Ignosi, desceria pela frente com as tropas frescas, e se a fortuna estivesse com elle ceariamos n’essa noite contentes na cidade de Lú!

O plano foi acolhido entre applausos--e immediatamente entrou em preparação, com uma presteza, um methodo, que fez honra aos officiaes Kakuanas. No espaço de duas horas foram servidas as rações aos homens, as tres divisões formadas, a ordem de ataque bem explicada aos chefes, e toda a força (menos uma guarda que se deixou aos feridos) collocada nos seus postos.

Era pois outra immensa carnificina que se preparava e em que me veria envolvido--eu, homem de ordem, de gostos simples, que tanto detesto violencias! Quando John, ao partir com a ala direita, nos veio dizer adeus, um pouco commovido--eu, com a voz abalada tambem, só tive estas palavras:

--Se escapar, amigo John, louve a Deus, e não se metta mais com pretendentes!

CAPITULO XI

A BATALHA DE LÚ

Não contarei os pormenores sangrentos d’este grande combate, que se ficou chamando a «batalha de Lú». Todos estes medonhos conflictos de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos Kakuanas, se assemelham. É sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados, um estridente ruido de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores immensos onde destaca uma nota assobiada, o sgghi! sgghi! Que solta o selvagem quando trespassa com o ferro o inimigo.

O plano de Ignosi de resto foi triumphalmente realisado. Os Pardos avançaram n’aquella lingua de terra que penetrava na nossa meia lua, e com admiravel heroicidade sustentaram os ataques de regimentos após regimentos, arremessados sobre elles por Tuala.

Quando dos Pardos restava apenas metade, e a attenção de todo o exercito inimigo estava concentrada n’esta lucta com o heroico regimento, as duas alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos da meia lua, cahiram sobre os flancos desprevenidos do inimigo como um circulo de cães de fila sobre lobos descuidados. Começou uma pavorosa matança. Ignosi carregou então de frente com as reservas frescas--e decidiu a batalha. Eu fiz parte d’essa carga: e não sei como, achei-me ao pé do barão, que parecia o verdadeiro deus da guerra, com os longos cabellos de ouro a esvoaçar ao vento, todo elle vermelho de sangue, e soltando a cada grande golpe de machado o velho grito saxonio de ataque O-hoy! O-hoy! Tambem me parece que avistei Tuala na confusão, coberto com a sua cóta de malha, arremessando as tollas, as facas enormes dos Kakuanas, que dois guerreiros atraz d’elle traziam em sacos de coiro. Lembro-me ainda tambem d’um chefe que, em vez de escudo, erguia para se defender o cadaver de um Pardo, e que combatia cantando. De resto, tudo se me confunde na memoria--o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de armas, um immenso esvoaçar de plumas.

Com o embate das duas columnas nossas sobre os flancos do exercito de Tuala a batalha ficou ganha--e dentro em breve a vasta planicie que se estendia entre a nossa collina e a cidade de Lú estava cheia de soldados fugindo em terrivel desordem. O regimento dos Pardos no emtanto (ou o que d’elle restava) reunira n’uma pequena elevação de terreno--onde tristemente verificamos que, dos tres mil valentes que o compunham, ainda de manhã, apenas acudiam á chamada cento e noventa e cinco homens. Entre elles estava Infandós, que combatera heroicamente tendo sómente um leve golpe no braço. Ignosi, com um grupo de chefes, entre os quaes vinha John (ferido n’uma perna e manquejando), em breve se veio juntar a esta gloriosa phalange dos Pardos. E foi seguido d’ella, como da sua guarda de honra, que o rei, e nós com elle, marchamos sobre a cidade de Lú.

Ás portas da cidade, ainda fechadas, estavam já postados grossos destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro os soldados de Tuala, inteiramente desmoralisados pela derrota do seu rei, não pareciam dispostos á resistencia. Com effeito, ás primeiras intimações dos arautos, a ponte levadiça da porta chamada Real foi descida: e, seguindo Ignosi, penetramos emfim na cidade vencida. Nas ruas, ás portas das aringas, nos terreiros, por toda a parte se apresentavam soldados, com a cabeça baixa, os escudos e as lanças pousadas aos pés em signal de submissão, que saudavam Ignosi como rei. Assim chegamos á aringa real.

No terreiro silencioso, á porta da sua grande senzala, solitario, abandonado, sem um soldado, sem um cortezão, sem uma das suas mil mulheres, estava Tuala, sentado n’um escabello, com o rosto cahido sobre o peito, as mãos pousadas sobre os joelhos. Cheguei a sentir uma vaga piedade pelo pobre rei derrotado! Um unico sêr lhe ficára fiel, Gagula--que, agachada aos seus pés, rompeu n’um fluxo de injurias, mal nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triumphante Ignosi.

Tuala, esse não parecia vêr, nem sentir. Só quando Ignosi parou, e os soldados bateram em cadencia com os contos das azagaias no chão, o velho tyranno ergueu a cabeça emplumada. Depois atirando sobre nós um olhar mais reluzente que o grande diamante que lhe ornava a testa:

--Salvè, rei! Gritou elle a Ignosi, com amargo escarneo. Tu que, por feitiços dos homens das estrellas, seduziste os meus regimentos, dize, que sorte me destinas?

--A sorte de meu pae, que tu mataste!--foi a fria e dura resposta.

--Bem! Saberei morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez chegar. Mas reclamo um privilegio da familia real dos Kakuanas. Quero morrer combatendo.

--Concedo, respondeu Ignosi. Escolhe o teu homem. Eu não posso, porque o rei não se bate em combate singular.

O sinistro olho de Tuala percorreu-nos lentamente a todos. E, como durante um momento se fixou em mim, eu senti alli o mais atroz pavor da minha vida aventurosa. Justos céos! Se elle se quizesse bater commigo? Tambem, tomei logo a minha resolução--recusar, fugir, ainda que fosse apupado por toda a nação Kakuana! Felizmente o bruto escolheu:

--Incubú! Exclamou, estendendo a mão para o barão. Tu que mataste meu filho, quererás tu luctar commigo, ou ser chamado um cobarde?

--Não, gritou logo Ignosi, Incubú não se baterá comtigo!

--Decerto não, se tem medo.

Infelizmente o barão comprehendera. Todo o sangue lhe subiu ás faces. E avançou logo, de machado erguido.

Acudimos, supplicando-lhe que não arriscasse a vida com aquella féra, inteiramente desesperada, de antemão condemnada á morte. Provas de heroico valor já elle as déra de sobra! Para que ir-nos despedaçar o coração, se uma desgraça lhe succedesse?

O barão porém permaneceu inabalavel.

--Nenhum homem vivo, civilisado ou selvagem, me chamará nunca cobarde. Quero bater-me com elle!

Ignosi, bem a custo, cedeu.

--Seja pois!... Tuala, o grande Incubú vai marchar para ti!

Tuala riu, ferozmente; e os dois gigantescos homens ficaram frente a frente. O primeiro ataque foi o do barão, que lançou sobre Tuala o machado a toda a força. Com um salto Tuala esquivou o córte, e arremessou outro em resposta sobre o barão, que o aparou no escudo. E durante um momento houve assim uma viva e faiscante troca de machadadas, que ora bruscos saltos evitavam, ora os broqueis defendiam. Nós nem respiravamos. O regimento dos Pardos, esquecida a disciplina, fizera circulo, e soltava gritos, batia palmas a cada golpe vibrado. John, agarrado ao meu braço, andava aos saltos sobre a perna sã, animando o barão com berros:

--Bravo! Anda-me ahi! Esse foi bom! Atira-lh’o de ilharga!...

Subitamente um brado de horror resoou. D’uma pancada Tuala cortára o cabo do machado do barão, que ficava assim desarmado--e, erguendo o seu proprio machado, cahia sobre elle com um uivo furioso de triumpho. Tudo acabára, eu fechei os olhos... Quando os abri, Tuala e o barão, agarrados um ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no chão--e o barão, com um desesperado esforço, procurava arrancar a Tuala a machada que elle tinha preso ao pulso por uma correia de bufalo. Pareceu-me uma eternidade o tempo que elles assim rolaram um sobre o outro, n’esta furiosa lucta pela posse do machado. Finalmente a correia quebrou--e com um ultimo, monstruoso arranque, o barão, desprendendo-se de Tuala, ergueu-se de salto, com o machado na mão. N’um instante Tuala estava tambem de pé--e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi Tuala, que, mais rapido, arrancou do cinto o facalhão e o vibrou contra o peito do barão. O valente homem cambaleou, mas a couraça de malha repelliu a facada. De novo Tuala arremetteu com a lamina--e então o barão, retesando-se todo n’um esforço, alçou o machado, no momento mesmo em que Tuala se inclinava, e deixou cahir uma machadada com tremenda força sobre o pescoço. Houve um grito enorme.--E, coisa pavorosa! Vimos a cabeça de Tuala saltar-lhe dos hombros, dar como uma pélla dois pulos pelo chão, e rolar até aos pés de Ignosi! Durante um segundo o corpo ficou erecto, com o sangue sahindo em grossos borbotões e a fumegar. De repente tombou, com um ruido surdo. E do outro lado o barão cahiu tambem, desmaiado.

Erguemol-o anciosamente, encharcamos-lhe o rosto em agua. Pouco a pouco abriu os olhos. Estava salvo!

O sol ia justamente descendo. Eu baixei-me para a cabeça de Tuala que alli ficára n’uma poça de sangue, e, desapartando o grande diamante que lhe ornava a testa, entreguei-o solemnemente a Ignosi e bradei:

--Salvè, rei dos Kakuanas!

Elle apertou o diamante sobre a testa. Depois pousou um pé sobre o peito de Tuala morto, e cercado dos seus guerreiros entoou um canto de victoria.

CAPITULO XII

O REI IGNOSI

Tudo findára gloriosamente. Chegára a hora de repousar--ou, melhor, de convalescer. O barão e o capitão (cuja perna, de todo inchada, o fazia agora soffrer muito) foram levados em braços para a aringa palacial de Tuala. E eu para lá me arrastei, exhausto de emoções, com a cabeça consideravelmente dorida da paulada d’essa manhã na defeza do planalto.

O primeiro cuidado foi despir as cótas de malha, tarefa difficil (pelo nosso combalido estado) em que nos ajudou a linda Fulata, que se constituira, desde o começo da revolta, nossa vivandeira, nossa enfermeira, e nosso anjo da guarda. Arrancadas as cótas, vimos que os nossos pobres corpos eram uma massa medonha de pisaduras negras. No tumulto da batalha tinhamos apanhado decerto muita facada, muita lançada. As pontas dos ferros eram repellidas pela malha impenetravel; mas nem por isso cada um dos golpes arremessados deixava de constituir uma terrivel pontuada que nos amolgava corpo e membros. Eu estava positivamente negro de pisaduras. Mas o peor era a ferida de John na perna, e a do barão a quem uma das machadadas de Tuala cortára profundamente a face sobre a maxilla. Fulata preparou-nos uns emplastros de hervas aromaticas que nos alliviaram as dôres. E como o capitão John tinha noções e pratica de cirurgia (segundo contei), foi elle que fez o tratamento da ferida do barão e da sua propria, tão bem quanto lh’o permittiam os poucos fios, o resto de pomada antiseptica que encontrou na sua botica portatil, e a escassa luz da lampada kakuana.

Depois, Fulata arranjou-nos um caldo muito forte, e estendemo-nos nas magnificas pelles que juncavam o chão da aringa do rei. Mas não pudémos dormir. De toda a cidade, em torno de nós, subia a triste e ululada lamentação das mulheres, chorando, á maneira dos Zulús, os valentes mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as carpideiras reaes estavam carpindo a morte de Tuala com estridente dôr. A noite ia cheia de prantos--e além d’isso a cada instante sentiamos os gritos agudos das sentinellas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi só de madrugada que pude cerrar os olhos--os olhos que, apesar de cerrados, continuavam a vêr os lances da batalha, com tanta realidade que por vezes estremecia em sobresalto e me erguia no cotovêlo a procurar as minhas armas, ou a lançar uma ordem de ataque.

Quando emfim acordei, com o sol já alto, soube que os meus dois amigos tambem não tinham dormido. De facto, o capitão John estava com uma intensa febre e começava a delirar. Além d’isso, symptoma assustador, toda a noite cuspira sangue. O barão, esse, mal podia ainda mexer o corpo; e a ferida da face não lhe permittia comer, escassamente fallar. Eu era ainda assim o mais restabelecido. Tomei o delicioso caldo de Fulata, e sahi um instante ao terreiro a respirar. Encontrei justamente Infandós que chegava, tão fresco e agil como se na vespera, em logar de uma batalha, tivesse celebrado uma festa. Ficou desolado ao saber a doença de John. Entrou um momento na cubata para o vêr e o barão, que não se podia ainda levantar e apenas mover os membros sobre o seu fôfo leito de pelles. Em voz baixa, por causa de John, Infandós contou-nos que todos os regimentos se tinham submettido a Ignosi, que das outras cidades chegavam ferventes adhesões, e que o novo reinado se firmava para longas éras de prosperidade e de paz.

Quando elle se retirava, appareceu Ignosi, seguido de uma guarda real. Não pude deixar, ao vêl-o, de pensar nas estranhas revoluções da sorte! Aquelle moço, que havia mezes, na minha casa em Durban, me pedia para entrar ao meu serviço--eil-o agora rei, grande Potentado d’Africa, commandando cincoenta mil guerreiros, senhor de povos, de rebanhos e de terras sem conta!

--Salvè, rei! Exclamei eu, erguendo-me com respeito.

--Graças a ti, Macumazan, e aos teus amigos! Exclamou elle, apertando-me as mãos com carinho.

Entrou tambem, como Infandós, na cubata para vêr o barão e o pobre John, que dormia um somno de febre, horrivelmente agitado, sob os olhos compassivos e vigilantes da boa Fulata. Depois, quando sahimos de novo ao terreiro, conversando, perguntei-lhe o que contava elle fazer de Gagula.

--Gagula é o genio mau d’esta terra, disse elle. Conto mandal-a matar para findar com ella, que já é velha de mais!

--Mas tem segredos! Mas sabe muito! Repliquei eu.

--Sabe sobretudo o segredo dos Silenciosos, volveu o rei pousando os olhos em mim com amizade, e o da caverna onde os reis estão enterrados, e o do logar dos diamantes. Ora eu não esqueço a promessa que te fiz, Macumazan. Tu e os teus amigos ireis aos diamantes, guiados por Gagula: e só por isso a poupo.

--Está bem, Ignosi, registro as tuas palavras.

Mas não foi possivel, durante essa semana, pensar nos diamantes, porque através de toda ella a vida do nosso pobre John esteve em risco e os nossos corações em anciedade. Realmente creio que teria morrido, se não fossem os desvelos, a adoravel dedicação de Fulata. Dias amargos esses para nós! O barão, já então restabelecido, e eu, nada mais fizemos durante essa crise atroz, do que entrar, sahir, rondar em pontas de pés a senzala onde elle delirava. Remedios não tinhamos para lhe dar, além d’uma bebida refrescante feita por Fulata com leite e o succo extrahido da raiz d’uma especie de tulipa. Só podiamos contar com a forte natureza d’elle e a boa mercê de Deus.

Em toda a aringa real havia um grande silencio, porque Ignosi, para manter perfeito socego em torno ao doente, ordenára que todos os que lá viviam passassem a outras cubatas remotas. Fulata estava permanentemente ao lado d’elle, sentada no chão, dando-lhe a bebida refrescante, arranjando-lhe as travesseiras feitas das folhas sêccas d’uma planta que faz dormir, enxotando-lhe as moscas do rosto.

No nono dia da doença, á noite, antes de recolher, o barão e eu entramos, segundo o costume, na senzala. A lampada collocada no escabello dava uma luz funebre. Não havia um rumor. E o meu pobre amigo jazia perfeitamente immovel. Pensei que chegára o seu fim, tive um soluço que me suffocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou chut!

E, mais de perto, descobrimos que o nosso amigo não estava morto, mas tranquillamente adormecido, sob a caricia das mãos de Fulata, que lhe cobriam a testa, onde um suor fresco começava. Era a crise do nono dia, o somno reparador. O nosso John estava salvo! Dormiu assim dezoito horas. E (mal me atrevo a contal-o, porque não serei acreditado) Fulata, a admiravel, a santa rapariga, dezoito horas se conservou tambem assim, com as mãos pousadas sobre a testa d’elle, sem comer, sem se erguer, sem se mexer, com o receio de que o menor movimento acordasse o seu doente. Quando elle afinal despertou--tivemos de a erguer em braços, porque a heroica enfermeira estava quasi desmaiada de debilidade e fadiga.

A convalescença de John foi rapida. Ao fim d’outra semana, já passeava pelos arredores da cidade, entre os pomares, á beira do rio, acompanhado por Fulata, que o salvára, e a quem elle votára (segundo dizia) um «reconhecimento eterno». Mas eu não agourava bem d’aquelle «reconhecimento», d’aquelles passeios bucolicos... Nos olhos de Fulata havia muita meiguice, muita languidez. E John como marinheiro, era indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, iamos ter, mais perigosa ainda, alguma aventura d’amor!

Apenas John se considerou a si proprio escorreito e «prompto para outra»--Ignosi começou as festas da sua proclamação. Todos os «Indunas» (chefes supremos) das provincias do reino vieram a Lú prestar vassallagem. Houve revistas de tropas, danças, formidaveis banquetes. Os homens que restavam do regimento dos Pardos foram todos doados com terras e rebanhos, e promovidos a officiaes. Ignosi promulgou na Grande Assembléa que d’ora em diante não haveria mais caça aos feiticeiros, nem morte sem julgamento. Depois ordenou que, emquanto nós residissemos no seu reino, gozassemos de honras reaes, e recebessemos sempre, como elle, a saudação de Krum!

No ultimo dia d’este grande festival, eu e os amigos dirigimo-nos ao rei, em grupo, e declaramos-lhe que o momento chegára, de realisar a sua promessa, e de nos mandar conduzir ao logar onde deviam estar as pedras brancas que reluzem.

Ignosi abraçou-nos com grande affecto.

--Não me esqueci, amigos! Já indaguei a verdade, e eis o que sei. Aquella estrada branca que trilhámos acaba além junto das montanhas chamadas as Tres Feiticeiras, onde estão as figuras de pedra, os Silenciosos. Jaz ahi uma grande cova, d’onde se diz que homens muito antigos, em outras idades, tiravam as pedras que reluzem. Para além d’essa cova ha uma funda caverna na rocha, terrivel, maravilhosa, onde vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala já foi conduzido. E por traz d’essa caverna fica uma camara secreta de que só Gagula conhece o segredo. Corre tambem a historia de que, ha muitas gerações, um branco veio aqui, e foi conduzido por uma mulher a essa camara secreta, onde viu riquezas sem conto, mas d’essas que para os Kakuanas nada valem: o branco porém não teve tempo de arrecadar essas riquezas, porque a mulher o trahiu, e o rei d’esses tempos o escorraçou outra vez para além das montanhas...

--A historia é verdadeira, acudi eu. Não te lembras, Ignosi, que nas montanhas, na caverna de gelo, encontramos nós, petrificado, esse homem branco?

--Muito bem me lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula, e ordenar-lhe, sob pena de morrer, que vos leve á camara secreta, meus amigos... E as riquezas que encontrardes, oh meus amigos, são vossas!

N’esse instante dois guardas appareceram, trazendo agarrada pelos braços a hedionda Gagula; que gania e os amaldiçoava. Mal a largaram, toda ella se abateu e achatou sobre o chão--como um montão de trapos onde dois olhos ferozes viviam e refulgiam.

--Que me queres tu, Ignosi? Uivou ella. Não me toques, que te destruo. Treme das minhas artes!

O rei encolheu os hombros.

--As tuas artes não salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes? Aqui está o que de ti quero: que mostres aos meus amigos a camara secreta onde estão as pedras que reluzem.

--Só eu o sei, e nunca o direi! Bradou ella. Os brancos malditos voltarão, levando vasias as mãos malditas!

--Bem, volveu tranquillamente o rei. Então, Gagula, vaes morrer lentamente.

--Morrer! Gritou ella, cheia de terror e de furia. Tu não te atreverás, Ignosi! Ninguem me póde matar. Que idade pensas tu que eu tenho? O teu pae conheceu-me; e o pae do teu pae; e o pae que gerou a esse. Ninguem ousará tocar-me, porque sobre esse cahirão as desgraças sem fim.

Em silencio, tranquillamente, Ignosi baixou sobre ella a ponta da sua azagaia:

--Dizes?

--Não!

Ignosi baixou mais o ferro, picou de leve o montão de trapos onde reluziam os dois olhos ferozes.

Com um uivo dilacerante, a horrenda bruxa poz-se em pé, de salto. Depois tornou a cahir, e rolou no chão esperneando.

De novo a lança de Ignosi a procurava:

--Dizes?

--Digo, digo, oh rei! Ganiu ella. Mas deixa-me viver, e sentar-me ao sol, e respirar o ar dôce, e ter um osso para chupar!...

--Bem; ámanhã irás com meu tio Infandós e com os meus irmãos brancos a esse logar, mostrarás a camara secreta e o escondrijo das pedras que reluzem. Mas tem cautela! Que se em ti houver traição, morrerás devagar, e em tormentos.

--Não, Ignosi! Irei com elles, e tudo mostrarei. Mas a desgraça vem a quem penetra n’esse logar. Outr’ora veio um homem, encheu um saco d’essas pedras brilhantes, e uma grande desgraça cahiu sobre elle! E foi uma mulher que o levou, e que se chamava Gagula. Talvez fosse eu! Talvez fosse minha mãe! Ou a mãe de minha mãe! Quem sabe? Será uma alegre jornada... Eu hei de ir, e hei de rir! Vinde, homens brancos, vinde! Vereis ao passar os que morreram na batalha, com os olhos vasios, as costellas ôcas. A morte vive lá, e está á espera. Será uma alegre jornada!

CAPITULO XIII

A GRANDE CAVERNA

Tres dias depois, ao escurecer, estavamos acampados n’um casebre desmantelado, em frente das Tres Feiticeiras, as tres montanhas que tantas vezes de longe avistaramos, desde a nossa chegada a Lú, e onde deviam jazer, segundo a tradição dos Kakuanas e o roteiro do velho D. José da Silveira, as minas das pedras que reluzem--as Minas de Salomão! Tinhamos partido de Lú doze dias antes, acompanhados por Infandós, por Fulata (que não deixára mais o «seu doente», o bom John), por Gagula que vinha n’uma liteira, e por uma forte escolta de serviçaes e soldados. E foi só no dia seguinte, ao amanhecer, que examinamos aquelle estranho sitio, tão cheio de terror para os Kakuanas e para nós de maravilhosas promessas.

Nunca eu esquecerei o momento em que, sahindo a porta das cubatas, na primeira e fresca luz da manhã, vimos os tres montes isolados, em triangulo, um á nossa direita, outro á nossa esquerda, o terceiro ao fundo, em face de nós, erguendo magnificamente ao céo os seus cimos resplandecentes de neve. Um tojo em flôr, d’um escarlate ardente, cobria as poderosas fraldas dos tres montes--e seguia ainda, como um tapete igual e continuo, pelos grandes descampados que os cercavam. A fita branca da estrada de Salomão cortava a direito até á Feiticeira central, a que formava a ponta do triangulo, onde findava brusca e mysteriosamente. Ahi, junto d’esse monte, estavam as fabulosas minas, que tinham sido o fim de tantos miseros destinos, o do velho fidalgo portuguez, o do seu descendente, e decerto o d’aquelle que nós vinhamos procurando desde o sul e por quem correramos tanto perigo e tanta aventura! Todo o que buscar essas minas fabulosas (dizia Gagula) encontrará desillusão e desastre. Seria essa a nossa sorte? Nós chegavamos sob a protecção do rei, cercados de serviçaes e de guardas... E apesar d’isso sentiamos pesar-nos sobre o coração, tristemente, a prophecia da horrenda mulher.

No emtanto, quando nos puzemos a caminho, era tão viva a anciedade de chegar e de vêr, que os carregadores da liteira de Gagula mal podiam acompanhar a nossa carreira. A cada instante a velha bruxa gritava, estendendo para nós, por entre os pannos da liteira, os braços descarnados, as mãos em garra:

--Não vos apresseis, homens brancos! A morte está á vossa espera e não foge! Para que vos esfalfar, correndo para ella? Certa e segura a tendes!

Dava então uma risadinha que nos arripiava. Insensivelmente abrandavamos o passo... Depois bem cedo o estugavamos de novo sob o impulso irresistivel da curiosidade e da esperança!

Gastaramos assim hora e meia, trilhando a estrada de Salomão, e tendo já deixado á nossa direita e á nossa esquerda as duas Feiticeiras que formam a base do triangulo--quando chegamos junto d’uma immensa cova circular, em funil, offerecendo talvez trezentos pés de profundidade e meia milha de circumferencia. Entre a herva e tojo, que interiormente a forravam, surgiam grandes pedaços de greda azulada: quasi ao fundo corria um canal para agua, talhado na rocha viva; e abaixo do nivel d’essa obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra, polidas e gastas pelo tempo. A cova, as mesas, a disposição do canal, a natureza da greda azulada, tudo era semelhante ao que eu muitas vezes vira no sul, nas minas de diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos:--e para mim ficou certo que alli houvera, em tempos, fossem nos de Salomão, fossem n’outros mais recentes, uma mina de diamantes.

A estrada, ao abeirar-se da cova, dividia-se em dois ramos que a circumdavam; e a espaços, esta via circular era feita de enormes lages de pedra, com o fim certamente de solidificar as bordas da mina, e impedir que se esboroassem. Mas o que mais nos surprehendia era, do outro lado da vasta cova, um grupo de tres objectos, que se destacavam como tres pequenas torres ou tres marcos colossaes. A curiosidade quasi nos fez correr, deixando atraz Gagula e Infandós; e bem depressa percebemos que o grupo era formado por tres immensas estatuas. Conjecturamos logo que deviam ser os Silenciosos, esses idolos, tão temidos pelos Kakuanas, e a quem offereciam os sacrificios sangrentos. Mas só ao chegar junto d’elles pudémos apreciar a estranha e terrivel magestade d’essas vetustas figuras.

Separadas por uma distancia de vinte passos, erguidas sobre immensos pedestaes de pedra negra onde corriam caracteres desconhecidos, e olhando a direito para a estrada de Salomão que através de sessenta milhas de planicie seguia até Lú--enchiam um grande espaço as tres gigantescas fórmas, duas de homem, uma de mulher, todas tres sentadas, medindo talvez cada uma a altura de vinte pés.

A figura de mulher, toda núa, com dois cornos, como os de um crescente de lua, sobre a testa, era de uma maravilhosa belleza--infelizmente estragada pelas injurias do tempo durante longos seculos. As duas figuras de homem, talvez por estarem vestidas em longas roupagens, pareciam mais bem conservadas. Um d’elles tinha uma face medonha, feita para inspirar terror, como a de um demonio malefico; mas a do outro parecia talvez mais assustadora ainda, na sua fria expressão de dura indifferença, de uma indifferença de rocha, que nenhuma prece póde abrandar, ou nenhum soffrimento apiedar. Todos tres juntos formavam na realidade uma Trindade pavorosa, assim sentados, immoveis, com os olhos vaga e perpetuamente estendidos para a planicie sem fim. Que imagens seriam estas? Deuses? Demonios? Reis de povos cujo nome esqueceu? Eu por mim, das minhas reminiscencias da Biblia, colligia que deviam ser talvez os falsos Deuses que adorou Salomão--«Asthoreth deusa dos Sidonios, Chemosh deus dos Moabitas, e Milcolm deus dos filhos de Amnon». Assim diz o Livro Santo.

--Que lhe parece, barão?

--Talvez, concordou o nosso amigo que recebera grau em Litteraturas classicas. A Asthoreth, de que fallam os Hebreus, é a Astarté dos Phenicios, os grandes commerciantes do tempo de Salomão. De Astarté fizeram os Gregos a sua Aphrodite, que se representava com o crescente da meia lua na cabeça... Se Salomão tinha aqui as suas minas, era natural que fossem dirigidas por engenheiros phenicios. De sorte que provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina, a estatua da sua Deusa. Quem póde saber?

Quando estavamos assim contemplando estas extraordinarias reliquias de uma remota antiguidade, Infandós, que caminhára sem se apressar, chegou junto de nós, e saudou reverentemente com a lança os Silenciosos. Vinha saber se queriamos penetrar immediatamente na caverna, ou tomar primeiro a refeição da manhã. Como não eram ainda onze horas, e a nossa curiosidade flammejava, decidimos desvendar logo os mysterios, levando comnosco provisões para se lá dentro a fome excitada pelas emoções nos assaltasse. Infandós fez então signal aos carregadores para que se acercassem com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um cesto, para levarmos, uma porção de caça fria e duas cabaças d’agua. Nós entretanto deramos uma volta em torno ás tres figuras de pedra. Por traz d’ellas, a uns cincoenta passos, erguia-se aquella das Feiticeiras que formava o bico do triangulo; na sua base, como incrustada n’ella, corria uma muralha de pedra: e ahi, ao centro, podiamos distinguir um arco escuro, como a entrada de uma galeria subterranea. Esperamos que os carregadores tirassem Gagula da liteira. Apenas no chão, a horrenda creatura agarrou o cajado, e dobrada em duas, com passos tremulos e vivos, largou em silencio para o arco escuro. Nós seguimos, calados, tambem.

Á entrada, o monstro parou, voltado para nós, com um riso livido na caveira.

--Homens das estrellas, estaes decididos? Quereis realmente penetrar na cova onde as pedras reluzem?

--Estamos promptos, Gagula, disse eu, alegremente.

--Bem, bem! Entrai! E pedi força aos corações para affrontar as coisas que ides vêr! E tu, Infandós, que trahiste teu amo, vens tu tambem?

O velho guerreiro franziu terrivelmente o sobr’olho:

--Não me compete a mim entrar nos sitios sagrados. Mas tu, Gagula, tem cautela, e treme! Os homens que vão comtigo são os amigos do rei! Por elles me respondes tu. E se tanto como a perda de um só cabello lhes succeder em mal, nem todos os teus feitiços te livrarão de morrer em tormentos. Comprehendeste?

--Comprehendi, comprehendi, Infandós! Ganiu ella, com um risinho gelado e lento. Não receies! Eu vivo só para fazer a vontade do rei. Tenho feito a vontade de muitos reis, em muitas gerações! E os reis findaram sempre por cumprir a minha vontade! Todos passaram, todos morreram... E eu aqui estou, para os ir visitar agora no palacio da morte, e para lhes fallar dos tempos que foram! Vinde, vinde! A lampada está accesa!

Tinha tirado debaixo do manto de pelles que a cobria uma cabaça cheia de oleo com uma grossa torcida de vime:--e a luz que ella aproximou do arco negro pareceu desmaiar e tremer.

--Vens tu tambem, Fulata? Exclamou John, volvendo os olhos em redor, inquieto.

--Tenho medo, meu senhor, murmurou a rapariga.

--Bem. Então dá cá o cesto!

--Não, meu senhor, para onde fôrdes, vou eu tambem!

--Bem! Pensei eu commigo, ahi levamos tambem o trambolho da rapariga para dentro da mina!

No emtanto Gagula mergulhára na galeria, que dava apenas logar para dois caminharem de frente. As trevas eram absolutas. Azas de morcegos batiam-nos nas faces. E seguiamos menos a luz bruxuleante da lampada, que a voz de Gagula, que repetia n’um tom lugubre:

--Avançai, avançai! A morte está perto!

De repente distinguimos uma vaga claridade. E momentos depois paravamos no mais maravilhoso sitio que olhos humanos têm contemplado.

A nada o posso comparar melhor do que ao interior de uma immensa cathedral, uma cathedral de sonho ou de lenda, sem janellas, alumiada por uma luz diffusa e mysteriosa que parecia cahir das alturas da abobada. Ao comprido d’esta vasta nave, como na nave de um verdadeiro templo, corriam renques de gigantescas columnas, d’uma côr algida de gêlo e de magnifica belleza. Alguns d’estes nobres pilares estavam, por assim dizer, interrompidos no meio--um pedaço erguendo-se do sólo, como a columna quebrada de uma ruina grega, outro pedaço pendente da remota abobada. Aos lados da nave abriam-se, com dimensões diversas, cavernas á semelhança de capellas, tendo tambem as suas filas de columnas, algumas tão pequeninas e finas como feitas para um brinquedo de creança. Aqui e além havia construcções estranhas, da mesma substancia algida que parecia gêlo--uma da fórma de uma vasta taça, outra offerecendo a vaga apparencia d’um pulpito com lavores pendentes. Um ar de indescriptivel frescura circulava dentro da vasta nave:--e por toda a parte sentiamos, na penumbra, o ruido lento de gottas de agua cahindo.

Não tardamos em perceber que estavamos simplesmente n’uma caverna de stalactites, de inigualavel belleza. Cada uma d’aquellas gottas de agua, que cahia, com um som humido e triste, era mais uma columna que se estava formando. Ha quantos seculos andava a Natureza trabalhando n’aquella obra maravilhosa? Sobre uma das columnas incompletas notei eu uma rude inscripção entalhada decerto por algum obreiro phenicio das minas, que alli escrevera o seu nome, ou talvez alguma facecia phenicia. Pois, desde esse dia, em tres mil annos pelo menos, a columna apenas crescera para cima da inscripção uns tres pés e meio. E ainda estava em via de formação, porque eu distinctamente senti, emquanto a examinava, cahir sobre ella, das profundidades da abobada, uma lenta gotta de agua! Quantos centos de milhares de annos levaram pois a crescer, a formar-se, assim largas, massiças, altas como torres, as columnas innumeraveis que se enfileiravam na nave? Nunca, como alli, eu comprehendi a espantosa velhice da Terra.

Gagula porém não nos deixou muito tempo n’esta curiosa contemplação. Inquieta, batendo o chão com o cajado, a lampada erguida sobre a cabeça, a cada instante nos apressava, com ganidos sinistros.

--Vamos, vamos, que a Morte está á nossa espera!

O capitão John ainda tentava gracejar com a atroz creatura. Mas quando ella nos conduzia ao fundo da nave, diante d’uma pequena porta semelhante ás dos templos egypcios, e nos perguntou se estavamos bem preparados a entrar a morada da Morte--todos estacamos, inquietos, mudos, sem ousar o primeiro passo.

--Isto está-se tornando sinistro, murmurou o barão. Os mais velhos adiante. Passe lá, Quartelmar!

Entrei a porta egypcia e achei-me n’um corredor inclinado, todo de abobada, horrivelmente negro. A lampada de Gagula esmorecia. O bater do seu cajado dava um echo lugubre. E a meu pezar parei, dominado por um presentimento de desastre e de morte.

--Para diante! Para diante! Murmurou John, que trazia Fulata agarrada pela mão.

Com um esforço desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quasi collados uns aos outros, desembocamos n’uma sala subterranea, evidentemente excavada outr’ora por poderosos obreiros no interior da montanha.

Esta sala não tinha uma luz tão clara como a cathedral de stalactites; e tudo o que eu pude descobrir a principio foi uma enorme e massiça mesa de pedra, tendo no topo uma colossal figura, que parecia presidir outras figuras abancadas em torno. Depois, sobre a mesa, no centro, distingui uma fórma encruzada. E quando emfim, acostumado á penumbra, percebi o que eram aquellas fórmas, voltei costas, e largaria a fugir como uma lebre--se o barão não me agarrasse pelo braço fortemente. Cedi, tremendo todo. Mas a esse tempo o barão tambem se habituára á luz diffusa, comprehendera tambem, e largando-me o braço, com uma exclamação, ficou a meu lado, quedo, arripiado, limpando o suor que lhe cobrira a testa. A pobre Fulata, essa, dava gritos, agarrada ao pescoço de John. E Gagula triumphava, com sinistra zombaria.

O que tinhamos, com effeito, ante os olhos apavorados, era terrivel. Alli, no topo da longa mesa de pedra estava a Morte--a propria Morte, um medonho e gigantesco esqueleto, de pé, todo debruçado para diante, com um dos braços apoiado ao rebordo da pedra como se acabasse de se erguer do seu assento, e com o outro levantando no ar uma enorme lança, que parecia arremessar sobre nós; o craneo da caveira alvejava lugubremente; das covas das orbitas sahia um fulgor negro: e as maxillas estavam entreabertas, como se fosse fallar, e desvendar o seu segredo.

--Santo Deus! Murmurei eu, tranzido. Que póde isto ser?

--E estas figuras, em redor? Balbuciava John.

--E além, aquella coisa, no meio? Exclamou o barão apontando para a inexplicavel figura encruzada sobre a mesa.

Então Gagula poisou a lampada e agarrando o braço do barão, com o dedo estendido para a fórma encruzada:

--Avança, Incubú, homem forte na guerra! Avança, e contempla aquelle que tu mataste e que está agora junto aos seus avós!

O barão deu um passo, e recuou abafando um grito. Sobre a mesa, inteiramente nú, com as pernas encruzadas, e a cabeça que o barão cortára poisada em cima dos joelhos, estava Tuala, ultimo rei dos Kakuanas!... Sim, Tuala, sustentando solemnemente sobre os joelhos a sua hedionda cabeça decepada, e com as vertebras a sahirem-lhe para fóra do pescoço encolhido e como resequido! Sobre todo o corpo negro tinha já uma especie de pellicula gelatinosa e vidrada, que o tornava mais pavoroso, e cuja natureza eu não podia comprehender--até que senti tic, tic, tic, um fio de gottas de agua, que, cahindo da abobada, lhe escorria pelo pescoço, e d’alli pelo corpo, para se escoar depois por um buraco cavado na mesa. Então percebi tudo--o corpo de Tuala estava sendo convertido n’uma stalactite!

E as outras figuras sentadas em torno da mesa eram igualmente reis dos Kakuanas, já transformados em stalactites! Havia trinta e sete--sendo o ultimo o pae de Ignosi. É esta, desde tempos immemoraveis, a maneira por que os Kakuanas conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos, expondo-os, durante um longo periodo de annos, a uma queda de agua siliciosa que, lentamente e gotta a gotta, os transforma em estatuas geladas. Estavamos assim diante do mais maravilhoso e exotico Pantheon Real que existe decerto na terra. E nada póde igualar a terrifica impressão que causava aquella série de reis, pertencendo a muitas dynastias, amortalhados n’uma camada de gelo que mal lhes deixava já distinguir as feições, alli sentados, á volta da immensa mesa, em espectral e pavoroso concilio, presididos pela Morte!

E a Morte, o maravilhoso esqueleto, quem o esculpira? Não decerto os Kakuanas. A sua composição, o seu trabalho revelavam uma arte perfeita. Era obra dos artistas phenicios? Fôra collocada alli em tempo de Salomão, para guardar, pelo terror da sua lança, a entrada dos Thesouros? Não sei. Nem sei mesmo contar, com verdade, as estranhas sensações por que passei n’aquella camara sinistra.

CAPITULO XIV

O THESOURO DE SALOMÃO

No emtanto Gagula (que era por vezes extremamente leve e agil) trepára para cima da mesa e acercára-se do cadaver de Tuala, a quem pareceu fallar mysteriosamente; depois seguiu por entre as filas dos reis, dirigindo, ora a um, ora a outro, como a velhos amigos, palavras lentas e graves que não comprehendiamos. Por fim, tendo chegado em frente da Morte, cahiu de bruços, com os braços estendidos, e ficou como mergulhada em oração.

Era um espectaculo tão arripiador, n’aquella penumbra de sepulchro, a hedionda creatura, mais velha que todas as creaturas, fazendo supplicas ao enorme esqueleto--que eu, já enervado, lhe gritei que viesse, nos levasse ao logar dos thesouros.

Immediatamente, a horrivel bruxa saltou da mesa, como um gato, e passando por traz das costas da Morte, ergueu a lampada, mostrou a parede de rocha:

--Entrai, homens brancos, entrai, se não tendes medo!

Olhamos, procurando a entrada. Só vimos a rocha solida e negra.

--Gagula, disse eu com os dentes cerrados, não zombes de nós que te mato!

--Mas a porta é aqui, homens brancos, a porta é aqui! Gania ella, com as costas apoiadas á muralha, onde roçava de leve uma das suas mãos descarnadas.

E então, á luz bruxuleante da lampada, vimos que um bocado da muralha, do feitio e tamanho d’uma porta, se ia erguendo lentamente do sólo, e desapparecendo em cima na rocha, onde devia existir uma cavidade para a receber. Não pesava menos aquella massa de pedra de vinte a trinta toneladas---e era certamente movida por algum machinismo, fundado n’um equilibrio de peso, que uma móla, collocada n’um logar secreto da muralha, punha em movimento. Nem nos lembrou, n’esse momento, arrancar a Gagula o segredo da móla, que erguia a pedra! Pasmados, viamos a immensa massa subir, devagar, muito devagar, até que desappareceu, deixando diante de nós um grande buraco negro.

Estava emfim aberto, para nós n’elle penetrarmos, o caminho que levava aos thesouros de Salomão. A emoção foi tão intensa, que eu, por mim, comecei a tremer. Era pois verdade o que dizia, no seu pedaço de papel, o velho D. José da Silveira? Estavam pois ao nosso alcance, destinadas a nós, as maiores riquezas que jámais um rei accumulou na terra? Poderiamos nós vêr, tocar, agarrar e levar em sacos, o thesouro que fôra de Salomão, maravilha dos Livros santos? Assim parecia--e para isso bastava dar um passo.

Dei esse passo--e com explicavel sofreguidão. Mas Gagula defendia ainda com os braços o buraco negro:

--Escutai, homens das estrellas! Escutai o que é necessario saber! As pedras que brilham, que vós ides vêr, foram tiradas da cova circular não sei por quem, e guardadas aqui não sei por quem. A gente que, de geração em geração, tem vivido n’esta terra, sabia da existencia do thesouro, mas ninguem conhecia o segredo para abrir a porta de pedra! Por fim aconteceu vir aqui um homem branco, talvez tambem das estrellas, que foi bem recebido e bem agasalhado pelo rei d’então, que era o quinto, além, sentado á mesa de pedra. Com elle vinha uma rapariga kakuana; ambos percorreram estas cavernas; e succedeu que por acaso essa mulher, que talvez fosse eu ou que talvez fosse outra como eu, descobriu o segredo da porta. O homem e a mulher entraram, e encheram de pedras um saco pequeno de couro onde ella levava de comer. Ao sahirem, o homem agarrou na mão outra pedra, maior que todas...

E aqui a bruxa parou com os olhos coruscantes cravados em nós.

--Continúa! Exclamei eu, que escutára sem respirar. O homem era D. José da Silveira. Que se passou mais?...

A velha feiticeira recuou espantada.

--Como lhe sabeis o nome? Ah! Sabes-lhe o nome!... Pois bem, ninguem póde dizer o que succedeu. Mas o homem teve medo de repente, atirou para o chão o saco cheio de pedras, e fugiu, levando só agarrada a pedra maior que tinha na mão. É a que Tuala trazia no diadema. É a que tu déste a Ignosi!

--E ninguem mais entrou aqui?

--Ninguem. Mas os reis ficaram sabendo o segredo da porta... Nenhum porém entrou, porque dizem prophecias já muito antigas que aquelle que aqui entrar morrerá antes d’uma lua nova. Esta é a verdade, homens das estrellas. Entrai agora! Se eu não menti a respeito do homem que se chamava Silveira, vós encontrareis no chão, á entrada da porta, cahido, o saco de couro cheio de pedras... E se as prophecias mentem ou não sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vós mais tarde o sabereis...

E sem mais, a hedionda creatura mergulhou no corredor tenebroso, erguendo ao alto a pallida lampada. Nós, no emtanto, olhavamos uns para os outros com hesitação, quasi com medo--bem natural de resto em nervos abalados por tantas emoções estranhas. Foi John o mais corajoso:

--Acabou-se! Cá vou! Era ridiculo ficarmos apavorados com as tonterias d’uma velha macaca! Adiante!

E avançou seguido por Fulata e por nós dois, em silencio. Mas dados alguns passos ouvimos uma medonha praga. Era John que tropeçára, quasi cahiria por sobre um bloco de cantaria atravessado no corredor. Gagula erguera mais a lampada:

--Não receeis!... São pedras que a gente d’outr’ora tinha ahi accumulado para tapar o corredor para sempre... Mas fugiram, ao que parece, não tiveram tempo!

E com effeito havia alli como umas obras interrompidas--pedras serradas e esquadradas, um monte de cimento, e uma picareta e uma trolha, semelhantes ás que ainda hoje usam os pedreiros. Contemplei com reverencia estas antiquissimas ferramentas. No emtanto Fulata, que desde a nossa entrada na caverna não cessára de tremer de medo, sentou-se sobre uma pedra, e declarou que desmaiava, não podia mais caminhar... Alli a deixámos, com o cesto de provisões ao lado, até que ella ganhasse alento. E seguimos.

Uns quinze passos adiante, demos de repente com uma porta de pau, curiosamente pintada a côres, e toda aberta para traz. E no limiar da porta, lá estava, cahido no chão--um pequeno saco de couro que parecia cheio de seixos!

--Então, brancos, que vos disse eu? Ganiu Gagula em triumpho, brandindo a lampada. Olhai bem! Ahi tendes o saco que o homem deixou cahir! Ahi está ainda, desde gerações! Que vos disse eu?

John ergueu o saco. Era pesado e tinia.

--Santo Deus! Está cheio de brilhantes! Balbuciou elle quasi com medo.

E com effeito, meus amigos! A idéa d’um saco de couro repleto de diamantes--é de causar medo!

--Para diante, para diante! Exclamou o barão, com subita impaciencia. Dá cá tu a lampada, bruxa!

Arrancou a luz das mãos de Gagula. E de tropel com elle, sem sequer pensar mais no saco que John atirára outra vez para o chão, transpozemos a porta. Estavamos dentro do thesouro de Salomão.

Durante um momento olhámos vagamente em redor, n’um silencio apavorado. Á luz debil e mortiça da lampada só percebemos, ao principio, que o quarto ou camara era excavado na rocha viva. Depois a um dos lados vimos distinctamente alvejar, sobrepostos em camadas até á abobada, uma porção immensa de dentes de elephante, de inigualavel riqueza. Haveria talvez uns quinhentos ou seiscentos dentes. Só aquelle marfim nos poderia tornar a todos ricos para sempre. Era d’esse espantoso deposito que Salomão fizera talvez o «grande throno de marfim», de que fallam os livros santos! Toquei um dente de leve, depois outro, com veneração, como reliquias sagradas! E o suor cahia-me em bagas.

--Alli estão os diamantes, gritou John. Trazei a luz!

Corremos para o recanto que elle indicava. E a lampada que o barão baixára mostrou umas dez ou doze caixas de madeira, estreitas e muito compridas, pintadas de escarlate. A tampa d’uma, tão antiga que mesmo n’aquelle ar sêcco de caverna tinha apodrecido, apresentava vestigios d’arrombamento. Pelo menos no meio havia um buraco. Enterrei a mão através, e tirei-a cheia, não de diamantes, mas de moedas de ouro, como nós nunca viramos, com letras hebraicas (ou que julgamos hebraicas) e palmeiras e torres em relevo no cunho.

--Justos céos! Murmurei suffocado. Aqui devem estar milhões! Isto nem se acredita!... Naturalmente era o dinheiro para pagar as ferias aos mineiros... Estaremos nós a sonhar?

--Mas os diamantes, exclamava John, percorrendo sofregamente o quarto. Onde estão por fim os diamantes? Só se o portuguez os metteu todos no saco!

Gagula decerto comprehendeu os nossos olhares, que buscavam avidamente:

--Além, além, onde é mais escuro! Lá estão os tres cofres de pedra, dois sellados, um aberto!

A sua aguda voz tomára um som cavo e sinistro. Mas quê! Onde ia agora, diante de tão inverosimeis riquezas, o medo das prophecias mortaes? Era além, no recanto escuro? Para lá corremos, sondando com a lampada.

--Aqui, rapazes, gritou John, na maior excitação. Aqui. Oh meu Deus! São tres arcas de pedra!

E eram! Eram tres arcas de pedra que nos davam pela cintura, occupando os tres lados d’uma especie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com immensas tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada á muralha. Baixamos a lampada para dentro. Não pudémos distinguir nada ao principio, deslumbrados por uma vaga refracção prateada que faiscava e tremia. Quando os olhos se habituaram áquelle brilho estranho, vimos que a arca immensa estava cheia até ao meio de diamantes brutos! Mergulhei as mãos n’elles. Com effeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de diamantes! Não havia duvida! Bem lhes sentia eu entre os dedos aquelle macio especial que em Kimberley, nas minas, chamam sabonaceo! Era uma arca cheia de diamantes!

Ficamos, mudos, olhando uns para os outros. Á frouxa luz da lampada eu via as faces dos meus amigos perfeitamente lividas. E não havia em nós nenhuma alegria. Era um torpôr, como se a alma nos ficasse bruscamente esmagada, sob a fabulosa infinidade d’aquella riqueza.

Eu murmurei com um suspiro de creança:

--Somos os homens mais ricos d’este mundo!

John passava os dedos pelo queixo, n’uma distracção quasi melancolica:

--Eu sei lá!... Os diamantes agora perdem de valor; ficam como vidro!

--E transportal-os? E transportal-os? Dizia o barão, abanando a cabeça.

De repente sentimos por traz uma risada que nos estarreceu. Era Gagula. Gagula que ia, vinha, ás voltas, na sala escura, como um morcego, de braço estendido para nós:

--Hi! Hi! Hi! Ahi está satisfeito o desejo vil dos vossos corações, homens das estrellas! Hi! Hi! Hi! Quantas pedras brancas! Milhares d’ellas! E todas vossas! Agarrai n’ellas! Rolai por cima d’ellas! Hi! Hi! Hi! Comei as pedras! Hi! Hi! Hi! Bebei as pedras!

Havia alguma coisa de tão grotesco n’aquella idéa de beber diamantes e comer diamantes, que larguei a rir estridentemente, desbragadamente. E por contagio, os meus companheiros desataram tambem a rir, a rir, ás gargalhadas. E alli ficámos todos, de mãos nas ilhargas, perdidos a rir, a rir, a rir! Riamos de quê? Nem sei. Riamos dos diamantes--d’aquelles diamantes que, milhares de annos antes, os mineiros de Salomão tinham escavado para nós, que os agentes de Salomão tinham armazenado para nós... Pertenciam a Salomão... Mas onde ia Salomão? Eram nossos agora, os seus diamantes! Não tinham sido para Salomão, nem para David, seu pae, nem para nenhum rei de Judá! Não tinham sido para o atrevido e velho fidalgo portuguez, nem para nenhum dos portuguezes que vinham singrando de leste em caravelas armadas! Tinham sido para nós! Só para nós! Para nós aquelles milhões e milhões de libras, que, n’este seculo, em que o dinheiro tudo domina, nos tornavam tão poderosos como outr’ora Salomão. De facto eramos Salomões!

De repente o accesso de riso findou. E ficamos a olhar uns para os outros, estupidamente.

--Abri as outras arcas! Gania no emtanto Gagula. Estão tambem cheias! Todas as pedras são vossas! Fartai-vos, fartai-vos!

Em silencio, com uma sofreguidão brutal, arremessamo-nos sobre as outras arcas, quebrando os sellos, empuxando as tampas, n’um desesperado esforço! Hurrah! Cheias tambem! Cheias até cima!... Não, a terceira estava quasi vasia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas, d’um peso, d’um tamanho inacreditaveis. Havia-as como ovos pequenos. As maiores todavia, postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarello. Eram «diamantes de côr», como elles dizem em Kimberley, nas minas.

Tinha eu um d’estes na mão, enorme, quando de repente ouvimos gritos afflictos do lado do corredor. Era a voz de Fulata:

--Acudam! Acudam! Que a porta de pedra está a cahir!

Uma outra voz, desesperada, a de Gagula, rugia sinistramente:

--Larga-me, rapariga, larga-me!

--Acudam! Acudam! Ai Gagula que me matou!

Como contar o brusco, pavoroso lance? Corremos. Á luz frouxa da lampada vimos a porta de pedra descendo, e junto d’ella Gagula e Fulata enlaçadas n’uma lucta furiosa. De repente Fulata cae, coberta de sangue. Gagula atira-se ao chão, para fugir como uma cobra através da fenda que havia ainda entre o chão e a porta. Mette a cabeça e os hombros!... Justos céos! Era tarde. A pedra immensa apanha-a, e a creatura uiva de agonia! A pedra desce, desce, com as suas trinta toneladas sobre o corpo já preso. Vem d’elle gritos e gritos, como eu jámais ouvira--até que ha um som horrivel de coisa esborrachada, e a porta immensa fica immovel, fechada, justamente quando nós, correndo sempre, esbarramos de roldão contra ella!

Isto durára quatro segundos--quatro seculos. Voltamos então para Fulata. A pobre rapariga tinha uma grande facada e estava a morrer.

--Ah Boguan! (era assim que os Kakuanas chamavam a John). Ah Boguan! exclamou, suffocada, a bella creatura. Gagula sahiu fóra. Eu não a vi, estava meia desmaiada. Então a porta começou a descer... Ella ainda entrou, foi olhar para vós... Depois tornava a sahir, quando eu a agarrei, e ella me deu uma facada, e agora morro!

--Pobre rapariga! Minha pobre rapariga! Gritava John.

E como não podia fazer outra coisa, começou a dar-lhe beijos, longos beijos.

Ella sorria, arfando, com as palpebras cerradas. Depois:

--Macumazan, estás ahi?... Ja mal vejo... Estás ahi?...

--Estou, Fulata. Que queres?

--Falla por mim, Macumazan. Dize a Boguan que não me comprehende bem. Dize-lhe que o amei sempre, desde o primeiro dia, que o amo... Mas que morro contente, porque elle não se podia prender a uma rapariga como eu... O sol não se casa com a noite.

Teve um suspiro. A sua mão errante procurava em redor.

--Macumazan, estás ahi? Dize-lhe que me aperte mais contra o peito, para eu sentir os seus braços. Assim, assim... Dize-lhe que um dia hei de tornar a vêl-o nas estrellas... Que hei de ir de estrella em estrella, á procura d’elle. Macumazan, dize-lhe ainda que o amo, dize-lhe ainda...

Os labios sorriam, sem fallar. Estava morta.

As lagrimas cahiam, quatro a quatro, pela face do meu pobre John.

--Morta! Murmurava elle, agarrando ainda as mãos de Fulata. Já me não ouve! E não a tornar a vêr, não a tornar a vêr!

O barão disse então, devagar, e n’uma estranha voz:

--Não tardará, amigo, que a tornes a vêr.

--Como assim?

--Oh homens, pois não percebestes ainda que estamos enterrados vivos?

Foi então, só então, que pela primeira vez comprehendi o indizivel horror do que nos succedia! Sim, com effeito! A enorme massa de pedra estava fechada. O unico sêr que lhe conhecia o segredo jazia esborrachado por ella, sob ella. Forçal-a, só se tivessemos alli massas de dynamite! Estava fechada para sempre! E nós alli fechados detraz d’ella!

Durante momentos ficamos mudos, com os cabellos em pé, junto do cadaver de Fulata. Toda a força de homens, a coragem de homens, fugia de nós bruscamente. Eramos sêres inertes. E comprehendiamos agora todo o plano monstruoso de Gagula--as suas ameaças, as suas ironias, o seu sinistro convite para bebermos e comermos diamantes. Sim, era o que tinhamos para beber e comer! Desde Lú, decerto, ella viera planeando a traição--e só nos trouxera á caverna, para nos deixar lá dentro, morrendo junto dos thesouros que appeteceramos!

--É necessario fazer alguma coisa, exclamou o barão, n’uma voz rouca. Animo, rapazes! A lampada vai findar. Vejamos se, por um acaso, podemos achar o segredo, a móla que move a rocha.

Recobramos um momento de energia, e, escorregando no sangue da pobre Fulata, rompemos a apalpar anciosamente a porta e as paredes do corredor. Não achamos nada, em mais d’uma hora de desesperada busca, que nos esfolou as mãos.

--A móla, se tal móla ha, está do lado de fóra, disse eu. Foi por isso que Gagula sahiu, como disse Fulata. Depois, se voltou, é porque se queria certificar que estavamos bem entretidos com os diamantes... Malditos sejam elles, e maldita seja ella!

--De resto, lembrou o barão, se a infame bruxa tentou fugir pela fenda é que sabia bem que pelo lado de dentro não podia levantar a rocha. Não ha nada a fazer com a porta. Vamos vêr outra vez, na camara.

Levantamos então com respeito e cuidado o corpo da pobre Fulata, fomol-o collocar dentro, no chão, com os braços em cruz, junto das arcas de dinheiro. Depois vim buscar o cesto de provisões. E sentados junto dos cofres de pedra atulhados de riquezas que nos não podiam salvar, dividimos as provisões em doze pequenos lotes, que, a dois repastos por dia, nos poderiam sustentar a vida por dois dias. Além da caça fria e das carnes sêccas tinhamos duas cabaças d’agua.

--Bem, jantemos, disse o barão, que é talvez o nosso penultimo jantar n’este mundo.

Pouco era o appetite, naturalmente. Mas havia horas que estavamos em jejum, e aquella parca comida, molhada com avaros goles d’agua, reconfortou-nos e deu-nos um vago alento de esperança. Começamos então a examinar systematicamente as paredes da nossa prisão, contando com a remota possibilidade de que existisse, além da porta da rocha, outra sahida. Esquadrinhamos todos os recantos, arredamos todas as arcas, batemos as muralhas, sondamos o sólo, exploramos a abobada. Ficamos exhaustos sem achar nada. A lampada espirrava e amortecia. Quasi todo o oleo estava chupado.

--Que horas são, Quartelmar? Perguntou o barão.

Tirei o relogio. Eram seis horas. Tinhamos entrado ás onze na caverna.

--Infandós ha de dar pela nossa falta, lembrei eu. Se nos não vir voltar esta noite, decerto nos vem procurar...

--E então? Exclamou o barão. De que serve? Infandós não conhece o segredo da porta, ninguem o conhecia senão Gagula. Ainda que conhecesse a porta, não a podia arrombar. Nem todo o exercito dos Kakuanas, com as suas azagaias, póde furar cinco pés de rocha viva. Ninguem nos póde salvar senão Deus!

Houve entre nós um longo, grave silencio. De repente a luz flammejou, mostrando, n’um relevo forte, todo o interior da camara, o grande monte dos marfins brancos, as arcas de dinheiro pintadas de vermelho, o corpo da pobre Fulata estirado diante d’ellas, o saco de couro cheio de diamantes, a vaga refracção que sahia dos cofres de pedra abertos, e as lividas faces de nós tres, alli sentados a um canto, á espera da morte. Depois a luz bruxuleou e morreu.

CAPITULO XV

NAS ENTRANHAS DA TERRA

Não me é possivel descrever com exactidão as agonias d’aquella noite. E ainda assim a divina Misericordia permittiu que dormissemos a espaços. Mas o brusco acordar, a cada instante, era pungente. Por mim, o que mais me torturava era o silencio. Um silencio tenebroso, tangivel, absoluto,--o silencio d’uma sepultura cavada nas profundidades rocheas do globo, e onde todas as artilherias troando, e as trovoadas do céo estalando, não poderiam fazer chegar a menor vibração de som, fosse elle ao menos tão leve como um leve zumbir de mosca... E então, acordado, a monstruosa ironia da nossa situação ainda mais me acabrunhava. Em torno de nós jaziam riquezas incontaveis, bastantes para pagar as dividas de muitos estados, construir frotas de couraçados, erguer palacios todos feitos de ouro, saciar todas as fomes, satisfazer todas as imaginações... E de que nos serviam? Uma pouca de pedra bruta sem valor, mas que nós não podiamos quebrar com as nossas mãos, tornavam-nas inuteis, tão sem valor como a propria pedra! Uma arca inteira de diamantes dariamos nós com infinito prazer por um pouco de pão, ou por outra cabaça d’agua. Mais! Dariamos todas as arcas de diamantes pelo privilegio de morrer de repente, sem sentir, sem soffrer! Na verdade, o que é a riqueza? Sonho, estupida illusão!

--John, disse o barão, do seu canto, n’um dos momentos em que eu assim pensava, quantos phosphoros te restam?

--Oito.

--Accende um, vê as horas.

A chamma quasi nos deslumbrou depois da intensa treva. Eram cinco horas no meu relogio. A alvorada estaria agora clareando as alturas da serra! A brisa espalharia o aroma do rosmaninho em flôr! Os soldados d’Infandós começariam agora a mexer-se nas suas mantas, junto das fogueiras apagadas--e as nascentes d’agua, junto d’elles, cantariam de rocha em rocha. De assim pensar, as lagrimas humedeceram-me os olhos.

--Era melhor comermos alguma coisa, suggeriu o barão.

--Para que? Exclamou John. Quanto mais depressa acabarmos com isto, melhor!

--Emquanto Deus permitte a vida, é que permitte a esperança! Respondeu o barão gravemente.

Repartimos uma pouca de carne sêcca e d’agua. Emquanto comiamos, um de nós lembrou que nos avisinhassemos da porta, e gritassemos com toda a força, porque talvez Infandós, andando já na caverna á nossa procura, ouvisse o remoto som das nossas vozes. John, que, como marinheiro, tinha o habito de gritar, desceu o corredor ás apalpadellas, e começou a berrar furiosamente. Nunca decerto ouvi uivos iguaes: mas foram tão inefficazes como um murmurio de insecto. O resultado unico foi que John voltou com a garganta resequida, e teve de chupar um trago da pouca agua que restava. Gritar só nos fazia sêde. Desistimos d’esse esforço inutil.

De sorte que nos agachamos de novo junto dos cofres cheios de diamantes, n’aquella horrivel inacção que era um dos nossos maiores tormentos. E eu então cedi ao desespero. Deixei cahir a cabeça no hombro do barão, e desatei a chorar. Do outro lado o pobre John soluçava tambem.

Grande alma, e corajosa, e dôce, era a do barão. Se nós fossemos duas creancinhas assustadas, e elle a nossa mãe, não nos teria animado e consolado com maior carinho. Esquecendo a sua propria sorte, fez tudo para nos serenar, contando casos de homens que se tinham encontrado em lances terrivelmente iguaes, e que milagrosamente tinham escapado. Depois levava-nos a considerar que, no fim de tudo, nós estavamos simplesmente chegando áquelle fim a que todos têm de chegar, que tudo em breve acabaria, e que a morte por inanição é suave (o que não é verdade). E emfim, com um modo differente, pedia-nos que nos abandonassemos á misericordia de Deus, e lhe rogassemos, na nossa miseria, um olhar dos seus olhos piedosos. Natureza adoravel, a d’este homem! Quanta serenidade, e quanta força! Eu por mim acolhia-me a elle como a um grande refugio. E por sua exhortação, rezei e serenei.

Assim passou o dia (se tal treva se póde chamar dia), até que accendi outro phosphoro, olhei o relogio. Eram sete horas! Pensamos então em comer.

E quando estavamos dividindo a carne sêcca, occorreu-me de repente uma idéa estranha:

--Porque é, disse eu, que o ar aqui se conserva tão fresco? É um pouco espesso, mas é fresco.

--Santo Deus! Exclamou John erguendo-se com um pulo. Nunca pensei n’isso! Com effeito é fresco... Não póde vir de fóra pela porta de pedra, porque reparei perfeitamente que ella gira dentro de quelhas... Tem de vir de outro sitio. Se não houvesse uma corrente d’ar, deviamos ficar suffocados, quando aqui entramos hontem... Agora mesmo deviamo-nos sentir abafados. Evidentemente o ar é renovado. Vamos a vêr!

Ainda elle não findára, já nós andavamos, de gatas, ás apalpadellas, na escuridão, procurando sofregamente qualquer indicação de buraco ou fenda, por onde entrasse ar. Houve um momento em que pousei a mão no quer que fosse de gelado. Era a face da pobre Fulata, já rigida.

Durante uma hora ou mais, passamos assim apalpando todos os cantos, até que o barão e eu desistimos, esfalfados, e todos pisados de ter constantemente batido com a cabeça nos muros, nos dentes de elephante, e nas esquinas das arcas. Mas John continuou, sem perder a esperança, declarando que «era melhor aquillo que pensar na morte, de braços cruzados».

De repente, teve uma exclamação:

--Oh rapazes! Aqui! Vinde cá.

Com que precipitação corremos para o canto d’onde elle fallára!

--Quartelmar, ponha aqui a mão, onde está a minha. Ahi. Que sente?

--Parece-me que sinto um fio d’ar.

--Agora ouça!

Ergueu-se, e bateu com o pé no chão. Uma immensa esperança relampejou-nos n’alma. A lage soava ôco.

Com as mãos a tremer accendi um phosphoro. Estavamos n’um recanto, de que ainda não suspeitaramos--e aos nossos pés, na lage que pisavamos, e como encrustada n’ella, havia uma grossa argola de pedra. Não tivemos uma palavra, na immensa excitação que de nós se apoderou. John tinha uma navalha, com um d’esses ganchos que servem para extrahir pedras pequenas das ferraduras dos cavallos. Ajoelhou e começou a raspar com o gancho, em torno da argola. Raspou, raspou--até que conseguiu introduzir a ponta do gancho sob a argola, levantal-a pouco a pouco, pôl-a a prumo. Depois deitou-lhe as mãos, e puxou desesperadamente. Nada se moveu.

--Deixai-me vêr a mim! Exclamei com impaciencia.

Agarrei, pondo toda a minha força no puxão contínuo e intenso. Escalavrei as mãos. A pedra não se moveu. Depois foi o barão. Sentiamol-o gemer. A pedra não se moveu.

De novo John se atirou de joelhos, e com o gancho da navalha raspou em redor a frincha por onde nós sentiamos como um debil halito de ar. Em seguida tirou um grosso lenço de sêda que lhe envolvia o pescoço, e passou-o na argola.

--Agora, barão! Mãos ao lenço, e puxar até rebentar! Quartelmar, agarre o barão pela cinta, e puxem ambos quando eu disser... Um, dois, !

Em silencio, com os dentes rilhados, puxámos, puxámos--até que eu sentia rangerem os ossos do barão. Era elle que fazia o esforço maior, com os seus enormes braços de ferro. E foi elle que sentiu a pedra mexer...

--Agora! Agora! Está cedendo! Mais! Ála, ála! Héh!

Um estalo, uma rajada brusca d’ar, e rolámos estatelados no chão, com a pedra por cima de nós. Fôra a immensa força do barão que fizera o prodigio. Que grande coisa, a força!

--Um phosphoro, Quartelmar! Exclamou elle, erguendo-se ainda arquejante.

Accendi o phosphoro. E, louvado Deus! Vimos diante de nós os primeiros degraus d’uma escada de pedra!

--E agora? Perguntou John.

--Descer! E confiar em Deus!

--Esperai! Gritou o barão. Quartelmar, veja se apalpa e acha o resto da comida e da agua. Quem sabe onde iremos parar?

Achei logo as provisões, que estavam junto da arca de pedra, cheia de diamantes. E já enfiára o cesto no braço, quando pensei nos diamantes... Porque não? Quem sabe? Talvez por mercê divina, achassemos uma sahida! Não fazia mal nenhum, á cautela, metter um punhado de diamantes na algibeira!... Se chegassemos a sahir d’aquella horrivel cova, não teriam sido ao menos inuteis todas as nossas angustias. Um punhado de diamantes nada pesava! E ao acaso, mergulhei a mão na arca e comecei a encher todos os bolsos da minha rabona. Depois atulhei as algibeiras das pantalonas. Já abalava, quando voltei ainda, com uma idéa, á arca onde estavam as pedras mais graúdas. E encafuei uma enorme mão cheia d’elles para dentro da algibeira do peito. O contacto vivo d’aquellas riquezas fez-me pensar nos outros.

--Oh rapazes! Não quereis levar uns poucos de diamantes? Eu enchi as algibeiras.

--Diabos levem os diamantes, disse do canto o barão, impaciente. Até me faz nauseas a idéa de diamantes! É marchar, é marchar!

Emquanto ao amigo John, esse nem respondeu. Creio que estava de joelhos, junto do corpo de Fulata, dando o ultimo adeus áquella que por elle morrera!

Quando nos achamos juntos do alçapão, já o barão descera o primeiro degrau.

--Eu vou adiante, segui devagar.

--Cuidado, gritei eu! Póde haver por baixo algum medonho buraco. Vá tenteando... Mão encostada sempre á parede...

O barão desceu contando os degraus. Quando chegára a «quinze» parou.

--É um corredor, gritou elle debaixo. Descei!

Quando chegámos ao fundo, accendi um dos dois phosphoros que nos restavam. Á luz que elle deu, vimos um pequeno espaço, onde se encontravam em angulo recto dois tunneis muito estreitos. O phosphoro morreu, queimando-me os dedos. E ficámos n’uma horrivel hesitação! Qual dos tunneis seguir? John então lembrou-se que a chamma do phosphoro se inclinára para a banda do tunnel da esquerda. Portanto o ar vinha pelo tunnel da direita. Era por esse que deviamos caminhar, demandando o lado do ar.

Aceitámos a idéa. E apalpando sempre a parede, não arriscando um passo sem tentear o sólo, seguimos n’esta nova e incerta aventura. Ao fim d’um quarto de hora de marcha lenta, esbarrámos n’um muro. Era outro tunnel transversal, por onde continuámos cosidos com o muro. Depois d’esse topámos outro, que o cruzava em angulo agudo. Depois havia outro, mais largo. E assim durante horas. Estavamos n’um labyrintho de rocha viva. Para que tivessem servido outr’ora estas innumeraveis passagens subterraneas, não sei dizer--mas tinham a apparencia de galerias de mina.

Finalmente parámos, esfalfados, com a esperança meia perdida. Comemos os restos das provisões, bebemos os derradeiros goles d’agua. Tinhamos escapado de morrer nas trevas d’uma cova de diamantes--para vir talvez morrer nas trevas d’uma mina vasia...

Quando assim estavamos sentados no chão, encostados ao muro, n’um infinito desalento--eu julguei ouvir um som, debil e vago, como a distancia. Avisei os outros, escutámos sem respirar. E todos muito claramente distinguimos um som. Era muito tenue, muito remoto,--mas era um som, um som murmurante e contínuo.

--Santo Deus! Exclamou John. É agua a correr! Tenho a certeza que é agua a correr.

N’um instante estavamos de pé, caminhando para o som. A cada passo o sentiamos mais distincto, mais claro, na immensa mudez do tunnel. Sempre para diante, sempre para diante! O som ia crescendo. Por fim era um ruido forte, o ruido d’uma corrente d’agua. Mas como podia haver agua corrente n’estas entranhas da terra?... E todavia, com certeza, alli perto corria agua com força. John, marchando adiante, jurava que lhe percebia já a humidade e o cheiro.

--Devagar, John, devagar! Gritou o barão. Devemos estar perto...

De repente um baque n’agua, um grito de John! Tinha cahido.

--John! John! Onde estás? Berrámos, perdidos de terror. Falla! Falla!

Que allivio, quando a voz d’elle nos veio de longe, suffocada.

--Salvo. Agarrei-me a uma pedra! Accendei um phosphoro para eu vêr onde estaes!

Raspei o meu ultimo phosphoro. Á sua luz tremula vimos aos nossos pés uma immensa massa d’agua, correndo com grande força. Que largura tinha não percebemos... Mas a distancia distinguimos a fórma vaga do nosso companheiro, pendurado d’um penedo agudo.

--Preparai para me agarrar, gritou elle de lá. Vou nadar para ahi!

Outro baque, uma grande lucta de braços batendo a agua. Depois junto de nós um resfolegar ancioso. E por fim uma exclamação do barão, que agarrára o nosso amigo pelas mãos, o puxára para dentro do tunnel, a escorrer.

--Irra! Balbuciava John, offegando. Estive por um fio. É uma corrente furiosa e parece-me que não tem fundo.

Evidentemente, d’este lado nada conseguiamos. De sorte que, depois de John descançar, de bebermos á farta d’aquella agua que era deliciosa, e de lavarmos a cara, deixámos as margens d’aquelle tenebroso rio, e retrocedemos ao comprido do tunnel, com John adiante, tiritando e pingando. Depois de andarmos um quarto de hora--chegámos a outro tunnel, que se inclinava para a direita e parecia mais largo.

--Seguimos este, disse o barão inteiramente desalentado. Todos elles são iguaes. O melhor é andarmos, andarmos, até cahir ahi para um canto, sem poder mais, á espera da morte.

Durante muito, muito tempo, mudos, em fila, arrastámos os passos na treva, atraz do barão, cujas fortes pernas já frouxeavam.

De repente esbarrámos com elle--que estacára, como attonito.

--Quartelmar! Exclamou elle, agarrando-me convulsivamente o braço. Eu estou a delirar ou aquillo além é luz?

Arregalámos desesperadamente os olhos. E com effeito, lá ao longe, ao fundo do tunnel, vimos uma pallida, vaga mancha de claridade, pouco maior do que um vidro de janella! Com outro alento de esperança estugamos o passo. Momentos depois toda a duvida cessára, deliciosamente. Era luz--uma desmaiada mancha de luz! Tropeçavamos uns contra os outros na nossa anciedade. Mais viva, cada vez mais viva a luz! Por fim, um ar fresco bateu-nos a face!... Mas de repente o tunnel estreitou. Caminhamos curvados. Depois estreitou mais. Gatinhamos, de mãos no chão. E estreitou ainda, como uma toca de raposa. Fomos de rastos. Mas a rocha findára. Era terra, terra friavel, que se esboroava... Um empuxão, um gemido, e o barão furou, e John furou, e eu furei--e sobre as nossas cabeças luziam as bemditas estrellas, e na nossa face batia uma aragem dôce!

De repente faltou-nos o chão, e todos tres, á uma, rolámos, de escantilhão, por um declive abaixo, de terra molle e humida, entre capim e tojo... Agarrei uma coisa e parei. Estonteado, coberto de lôdo, berrei pelos outros, desesperadamente. Um brado em resposta veio de baixo, d’uma terra chã onde o barão fôra parar. Resvalei até lá, e fui encontrar o nosso amigo atordoado, sem folego, mas intacto. Gritámos então por John. E uns olás arquejantes guiaram-nos ao sitio onde uma raiz de arvore, em que ainda estava acavallado, o detivera no desesperado tombo.

Sentámo-nos então todos tres na relva--e vendo-nos fóra da funebre caverna, salvos, sãos, a respirar outra vez o ar da terra, a emoção foi tão forte que começámos a chorar de alegria. Seguramente fôra Deus misericordioso que nos guiára por aquelle tunnel, para aquelle buraco, que era a porta da Vida! E agora, a manhã que julgavamos nunca mais vêr, estava roseando o topo dos montes.

Á sua luz bemdita vimos então que nos achavamos no fundo, ou quasi no fundo, d’aquella immensa cova circular que fôra outr’ora a mina de Diamantes. Lá no alto, já podiamos distinguir as confusas fórmas dos tres colossos. Sem duvida aquelles corredores por onde tinhamos vagueado, tão angustiosamente, communicavam outr’ora com as Diamanteiras. E emquanto ao tenebroso rio... Mas que nos importava agora o rio? A luz do dia clareava. Estavamos envolvidos na luz do dia! Só isto era essencial e dôce de saber!

Não podiamos deixar todavia de pasmar para as nossas figuras. Escaveirados, esgazeados, rotos, cheios de pisaduras, com camadas de pó e de lama, sangue nas mãos e sangue nas faces--eramos, na verdade, tres espantalhos medonhos. Mas não havia a pensar em nos sacudirmos ou nos ageitarmos. Aquelle fundo da cova, humido e regelado, era perigoso para corpos como os nossos tão exhaustos. De sorte que começámos, com lentos e custosos passos, a trepar as ladeiras ingremes, através da greda azulada, agarrando-nos ás raizes, e agarrando-nos ao tojo, n’um esforço ultimo que nos esvaía. Ao fim d’uma hora estava terminada a façanha--e os nossos pés tremulos pisavam outra vez a estrada de Salomão. A umas cem jardas adiante brilhava uma fogueira junto de cabanas, e em volta d’ella estavam homens. Para lá caminhámos, amparando-nos uns aos outros, e parando, meio desmaiados, a cada passo incerto. De repente um dos homens que se aquecia ao lume ergueu-se, avistou-nos--e atirou-se de bruços ao chão, tremendo, gritando de medo.

--Infandós, Infandós, somos nós, teus amigos!

Elle levantou a cabeça, depois o corpo. Por fim correu para nós, com os olhos esbugalhados, e ainda tremendo todo:

--Oh meus senhores! Sois vós! Sois vós! Voltaes do fundo dos mortos!... Voltaes do fundo dos mortos!...

E o velho guerreiro, abraçando-se ao barão pelos joelhos, rompeu a soluçar de alegria.

CAPITULO XVI

A PARTIDA DE LÚ

Dez dias depois estavamos de novo em Lú--nas nossas confortaveis cubatas de Lú, á sombra dos machabelles. E poucos vestigios nos restavam d’aquella atroz aventura, além dos muitos cabellos brancos que eu trazia, e da melancholia em que cahira o nosso pobre John, com o coração ainda cheio de Fulata.

É inutil accrescentar que não tornámos a penetrar no thesouro de Salomão--apesar de sagazes e methodicas tentativas. N’aquelle dia em que Infandós nos acolheu como a resuscitados, nada fizemos senão comer, dormir, descançar, gozar o sol. Logo no dia seguinte porém, descemos com uma escolta á grande cova, na esperança de encontrar o buraco por onde tinhamos furado para a luz e para a vida. Foi debalde. Em primeiro logar chovera copiosamente de noite, e todas as nossas pegadas tinham desapparecido; mas além d’isso os declives em funil da enorme cava estavam por todos os lados cheios de buracos, uns naturaes, outros feitos por bichos. Qual d’elles nos salvára entre tantos milhares? Impossivel descobrir!

Depois d’isso voltámos á caverna de stalactites, affrontámos outra vez os horrores da Camara dos Reis Mortos: e durante muito tempo rondámos diante da muralha de pedra, para além da qual jaziam inaccessiveis para sempre os maiores thesouros da terra, para sempre guardados funebremente pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar de examinarmos a muralha durante horas, de a apalpar, de martellar sobre ella, não nos foi possivel achar o segredo da porta,--sob a qual jaziam pulverisados os fragmentos da hedionda bruxa, que com a sua traição só ganhára a sua perda. Emquanto a forçar aquelles cinco pés de rocha viva, quem podia pensar em tal feito? Nem todo o exercito dos Kakuanas, trabalhando annos, lograria passar através. Só com dynamite,--ou trazendo pelo deserto poderosas machinas. E assim, lá estão ainda, n’esse remoto canto de Africa, os thesouros, que desde os tempos biblicos tanto têm fascinado a imaginação dos homens. Um dia talvez, quando a Africa toda estiver civilisada, cortada de estradas, coberta de cidades, alguem mais feliz que nós, e com os incalculaveis recursos da sciencia d’então, penetrará no vedado thesouro, e será rico além de toda a phantasia! Esse, se jámais existir, encontrará lá, como vestigio da nossa passagem, as arcas abertas e os ossos da pobre Fulata, e uma lampada apagada. A esse tempo já estará perdida a memoria d’este livro, contando a estranha aventura. E esse explorador futuro mal suspeitará então, ao dar com o pé n’esses ossos, ao remexer essas riquezas, que tres homens do seculo XIX passaram alli um dos mais tragicos lances que jámais foi dado a homem passar...

Devo todavia accrescentar que, materialmente, a nossa estada na caverna não foi de todo inutil. Como contei, ao abandonarmos o thesouro, eu tive a esplendida precaução de atulhar as algibeiras de diamantes. Muitos d’estes, e sobretudo os maiores, cahiram, ficaram perdidos, quando eu rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou nos bolsos uma enorme quantidade. Não lhe posso calcular o valor. Deve ser immenso! Supponho que trouxemos ainda diamantes bastantes para sermos todos tres millionarios, e possuirmos os tres mais ricos adereços de joias que existam no mundo. Em resumo, no ponto de vista economico, a aventura não gorou.

Em Lú, fomos acolhidos pelo rei Ignosi com grande amizade e regozijo. Apesar de fundamente absorvido nos cuidados d’um Reinado que começa (e sobretudo na reorganisação do exercito) estivera em grande inquietação durante a nossa longa demora nas Minas. E foi com ardente curiosidade que escutou a nossa maravilhosa historia.

A noticia da morte de Gagula foi para elle um allivio immenso.

--Quem sabe, murmurou elle, se depois de vos deixar morrer no sitio escuro, não acharia ainda artes de me matar a mim tambem!

Para commemorar a nossa volta Ignosi deu um banquete e uma dança. E foi n’essa noite, ao fim da festa, no terreiro real, onde brilhava o luar, que nós annunciámos ao rei o nosso desejo de deixar emfim o seu reino, e regressar á nossa patria.

Ignosi primeiramente pareceu espantado. Depois cobriu a face com as mãos:

--O que vós annunciaes, exclamou elle por fim, retalha o meu coração! Sempre pensei que de todo ficarieis commigo. Para que foi então, oh valentes, que me ajudastes a ser rei? O que quereis? O que vos falta? Mulheres? Campos? Gados? Toda a terra que é minha, é vossa. Escolhei! É uma casa como as que os brancos habitam no Natal que vos falta? Os meus homens, ensinados por vós, edificarão uma entre jardins... Dizei! E cada um dos vossos desejos tem já a minha promessa de rei.

--Não, Ignosi, não! Acudi eu. O que nós simplesmente desejamos é voltar para as nossas terras.

Elle então sorriu com amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos corações nunca houvera amor por elle, mas só cubiça das pedras que brilham. Agora tinhamos as pedras para vender, para recolher dinheiro... Estava satisfeito o vil desejo do branco. Que importava pois o amigo que ficava chorando? Malditas fossem as pedras, e idos fossemos nós bem cedo!

Eu pousei-lhe a mão no braço:

--Escuta, Ignosi! As tuas palavras não vêm do teu coração. Escuta. Quando tu andavas exilado na Zululandia, e depois entre os homens brancos do Natal, não sentias tu o desejo da terra d’onde vieras, e de que tua mãe te fallava? Não se te voltavam os olhos para o Norte, para onde estavam os campos e as senzalas onde tu nasceras, onde brincáras com as ovelhas, onde os velhos que passavam no caminho tinham conhecido teu pae?...

--Assim era, Macumazan, assim era! Exclamou o rei commovido.

--Pois do mesmo modo o nosso coração deseja a terra em que nascemos.

Ignosi baixou a cabeça.

--As tuas palavras, como sempre, Macumazan, vêm cheias de verdade e razão. Sim, tendes de partir. E eu ficarei triste, porque não mais me chegarão noticias vossas, e vós sereis para mim como mortos!

Esteve um momento pensando, com o dedo pousado na testa. Depois chamou os chefes mais idosos, annunciou a nossa partida, ordenou que fossemos acompanhados pelo regimento dos Pardos até ás montanhas, e d’ahi com uma escolta e com guias levados pelo caminho do Oasis (de que elle só recentemente tivera noticia), e que nos pouparia todos os trabalhos da passagem das serras. Em seguida, erguendo a mão jurou ante os chefes que não permittiria jámais que nenhum branco entrasse no seu reino a procurar as pedras que brilham:--mas que nós poderiamos voltar sempre porque eramos os irmãos do seu coração! E por fim decretou que os nossos nomes fossem considerados sagrados como os nomes dos Reis Mortos--e que assim se proclamasse por todo o reino, de montanha em montanha.

--E agora ide! Ide antes que os meus olhos vertam lagrimas como os d’uma mulher. Quando estiverdes, longe, nas vossas casas, junto das vossas lareiras, pensai por vezes em mim... Adeus! Adeus para sempre, Incubú, Macumazan, Boguan, grandes homens e meus amigos!

Ergueu-se; esteve um momento olhando fixamente para nós, um por um; depois escondeu a cabeça no seu manto de pelle de leopardo, e fugiu para dentro da senzala real.

Nós afastamo-nos em silencio, e com o coração pezado.

Na madrugada seguinte partimos de Lú acompanhados por Infandós e pelo regimento dos Pardos. Apesar de tão cedo, as ruas estavam apinhadas de gente que nos lançava a saudação Krum, e nos desejava boa jornada! As mulheres atiravam-nos flôres ao passar. Todos os tam-tams resoavam. Era como uma grande ceremonia real.

Pelo caminho Infandós foi-nos explicando que havia, com effeito, uma passagem nas montanhas mais fácil do que aquella por onde vieramos--ou antes, que era possivel descer por aquella alta escarpa, que separa os dois «seios de Sabá» como um muro separa duas torres. Havia um anno, um bando de caçadores Kakuanas, indo ao deserto á procura do abestruz, tinham achado e seguido este caminho. Ao fim d’elle encontraram o deserto; e ao fundo, no horisonte, avistaram massiços de arvores. Levados pela sêde caminharam para lá, e acharam um largo e fertil oasis, cheio de fructa, de caça e d’agua. E d’ahi, diziam os caçadores, podiam-se distinguir no horisonte outros logares ferteis, formando como uma continuação de oasis. D’este modo era talvez possivel diminuir os horrores d’uma nova travessia no deserto.

Ao fim de quatro dias de marcha chegámos com effeito ao alto da escarpa--d’onde avistavamos, por leguas e leguas, outra vez, o medonho deserto amarello em que tanto soffreramos. Foi de madrugada que começámos a descida--e foi então que nos separámos do nosso amigo Infandós.

O excellente homem quasi chorou de mágoa.

--Nunca os meus olhos, exclamava elle, verão homens como vós. Aquelle golpe de machado, Incubú! Que belleza! Sois os fortes dos fortes! E o meu coração fica cheio da vossa lembrança. Adeus!

Tivemos realmente saudade do velho Infandós; e John, como lembrança, deu-lhe--adivinhem o quê?--um monoculo! Tinha um de sobresalente, e presenteou com elle o heroico e leal selvagem! Infandós, enthusiasmado, procurou logo entalal-o no olho, certo de que essa pupilla resplandecente augmentaria o seu prestigio entre as tropas. E foi esta a derradeira impressão que me ficou dos nossos amigos da Kakuania--um velho guerreiro, nú, com uma pelle de leopardo ao hombro, grandes plumas negras na cabeça, franzindo a face, de monoculo no olho!

D’ahi a pouco, tendo apertado affectuosamente a mão a esse honrado Infandós, começavamos a nossa descida pela escarpa que liga os «seios de Sabá», entre as trovejantes acclamações do regimento dos Pardos.

Fizemos essa descida em doze horas. Á noite estavamos acampados á orla do deserto, conversando em torno das fogueiras ácerca d’esses dois estranhos mezes que passaramos entre os Kakuanas!...

--Ha sitios peores para se viver, dizia o barão.

--Quasi desejava ter lá ficado, accrescentava John, com saudade.

Eu não dizia nada. Tinhamos lá passado temerosos momentos. Mas por vezes a vida fôra dôce. E no alforge traziamos um saco de diamantes!

Na madrugada seguinte encetámos a marcha para esse oasis que os nossos guias conheciam. Trilhámos tres dias o deserto--mas sem desconsolo, graças ao bando de carregadores que nos dera Ignosi, e que nos permittia levar provisões fartas e agua farta. Pelo começo da tarde do terceiro dia avistámos um bosque--e o nosso jantar já foi regaladamente servido debaixo de copadas arvores, e junto de frescas aguas correntes.

CAPITULO XVII

EMFIM!

E agora resta-me contar a maior maravilha d’esta maravilhosa jornada. Tão estranho, quasi inverosimil é, que, para não lhe augmentar o ar de romance que ella já de per si tem, preciso narral-a com a maxima brevidade e maxima simplicidade.

Foi isto. Na manhã seguinte, no oasis, andava eu passeando ao comprido d’uma fresca ribeira que o banha, quando de repente, n’um frondoso outeiro á sombra de figueiras, com a fachada voltada para a corrente--vejo uma confortavel cabana, construida á maneira cafre, mas com uma porta, uma porta de madeira, em vez do costumado buraco redondo. E quando eu estava pasmando para esta casota humana perdida n’um oasis do deserto, eis que a porta se abre, e apparece, coxeando, encostado a um pau, todo vestido de pelles, e com uma immensa barba até á cintura, um homem branco!

Ficámos a olhar esgazeadamente um para o outro. Justamente n’esse momento o barão e John appareceram. O homem crava os olhos em nós, com um ar quasi afflicto. De repente larga a correr, como um côxo póde correr, aos tropeções. Esbarra, rola no chão. O barão acode. Ergue o homem. E grita:

--Santo Deus! é meu irmão Jorge!

Quasi tenho vergonha de narrar este lance. Parece banalmente inventado pelos moldes do theatro antigo. Mas foi assim.

E ainda mais! Ao alvoroço do barão, ás exclamações que seguiram, outro homem sahiu da cabana, tambem vestido de pelles, com uma espingarda na mão. Ao dar com os olhos em mim larga a arma, leva as mãos á carapinha:

--Oh Macumazan! Oh Macumazan!... Não me conheces? Sou Jim. Sou Jim! Aquelle papel que tu me déste para o patrão perdi-o... Estamos aqui ha dois annos.

E o pobre Jim rojava-se no chão diante de mim, chorando e rindo, n’uma alegria furiosa.

Com effeito, havia dois annos que o irmão do barão e o seu servo Jim viviam n’aquelle oasis. Foi no nosso acampamento n’essa tarde que Jorge Curtis nos contou lentamente toda a sua historia. Dois annos antes partira da aringa de Sitanda, como nós, para atravessar o deserto, e procurar as minas de diamantes para além das montanhas. Por informação porém, que lhe deram uns caçadores de abestruzes que felizmente encontrára, tomou um caminho diverso, e bem melhor do que aquelle que seguira outr’ora o velho D. José da Silveira, e que nós seguiramos guiados pelo seu roteiro. Esse caminho era através do deserto, mas entremeado de oasis. Assim tinha chegado a este, o maior de todos, e estava junto das Montanhas de Salomão, quando lhe aconteceu uma grande desgraça. No dia mesmo em que aqui parára, estava sentado junto do rio, por baixo d’umas penedias, onde Jim, o servo, andava procurando o mel d’abelhas mansas. De repente, a um esforço qualquer que Jim fez em cima, um dos penedos rola e vem cahir sobre uma perna do pobre Jorge, esmigalhando-lh’a horrivelmente! Desde esse dia não pôde mais andar. E muito naturalmente preferiu ficar alli no oasis, onde tinha agua, caça e fructa--do que tentar atravessar de novo o deserto, onde inevitavelmente morreria.

E alli ficou dois annos, como um Robinson Crusoe. Havia justamente dias que decidira mandar Jim para traz, á aringa de Sitanda, a buscar soccorro. Mas quasi tinha a certeza que Jim não voltaria...

--E sois vós agora, que appareceis de repente. Justamente tu, irmão! E tu, meu bom John!... E o snr. Quartelmar, muito bem me lembro de o ter encontrado em Bamanguavo! É extraordinario! E foi tudo a misericordia de Deus!

N’essa noite tambem lhe contámos as nossas aventuras. Quando eu lhe mostrei um punhado de diamantes, o homem empallideceu de espanto:

--Santo Deus! Ao menos o que soffrestes não foi em vão! Emquanto que eu!...

Esta triste exclamação tornou-me pensativo. E desde logo decidi partilhar com elle um lote d’aquellas pedras, que a elle tinham trazido uma tão longa desgraça.


E aqui acaba esta historia. A nossa travessia do deserto foi extremamente trabalhosa. Não soffremos tanto da sêde, porque, segundo o novo roteiro indicado pelos caçadores de abestruzes, encontrámos a espaços pequenos e frescos oasis. Mas o pobre Jorge Curtis, que mal podia ainda usar a perna, necessitava constante amparo--e, por assim dizer, tivemos de o transportar através do deserto. Emfim attingimos a aringa de Sitanda, onde o velho sacripante, a quem deixaramos as nossas armas e bagagens, ficou indignado de nos vêr voltar, vivos e sãos, para as reclamar. E seis mezes depois estavamos jantando confortavelmente aqui, na minha casa em Durban, á sombra das laranjeiras.


Quando eu acabava justamente de escrever esta ultima pagina das nossas aventuras, vejo um cafre entrar pelo meu jardim, com cartas e jornaes na mão. É o correio da Inglaterra. E eis aqui uma carta do barão, que eu transcrevo, porque dá exactamente a conclusão da minha historia:

«Solar de Braley--Yorkshire.

Meu caro Quartelmar.

Só algumas breves linhas para lhe dizer que meu irmão Jorge, John e eu, chegámos a Inglaterra todos tres perfeitamente. Apenas deixámos o paquete, em Southampton, partimos logo para Londres pelo primeiro trem. Não imagina o Quartelmar que elegante nos appareceu logo na manhã seguinte o nosso John! Mas parece-me que ainda pensa muito, coitado, na pobre Fulata.

E agora emquanto a negocios. Levámos os diamantes aos melhores joalheiros de Londres, aos Streeter. Quasi tenho vergonha de dizer em quanto elles os avaluaram. É uma somma descommunal. Está claro que elles não podem dizer com exactidão, porque nunca appareceram no mercado pedras d’este tamanho em tal quantidade. Emquanto a compral-os elles, está fóra de questão. Apesar de ser uma forte casa, não poderia nunca reunir semelhantes sommas. Aconselharam-me que os vendesse, em pequenos lotes, a differentes joalheiros, e devagar para não inundar o mercado. Um d’esses lotes, o que o Quartelmar tão generosamente reservou para meu irmão, estão elles todavia resolvidos a comprar por cento e oitenta mil libras.

O que o Quartelmar deve fazer, agora que está tão rico, é vir para Inglaterra, e comprar uma propriedade ao pé da minha. O melhor seria vir immediatamente para passar commigo este natal. Tenho cá por essa occasião o nosso John. A respeito de seu filho Henrique posso dizer que está bom. Esteve aqui uns dias commigo a caçar. Gosto d’elle. Pregou-me uma carga de chumbo n’uma perna, extrahiu elle proprio os chumbos, e provou-me depois a vantagem de haver sempre em todas as partidas de caça um estudante de medicina.

Venha pois, velho amigo, e creia-me sempre seu

Henrique Curtis


Hoje é sabbado. Ha um paquete para Inglaterra além de ámanhã. Creio, na realidade, que vou partir n’elle... Já tenho saudades do meu rapaz. E depois quero vigiar eu proprio a publicação d’estas memorias.

INDICE

Introducção
Capitulo I--Encontro com os meus camaradas
Capitulo II--Primeira noticia das minas de Salomão
Capitulo III--O homem chamado Umbopa
Capitulo IV--Os elephantes
Capitulo V--A nossa entrada ao deserto
Capitulo VI--Penetramos no reino dos Kakuanas
Capitulo VII--O rei Tuala
Capitulo VIII--A grande dança
Capitulo IX--Antes da batalha
Capitulo X--O ataque da collina
Capitulo XI--A batalha de Lú
Capitulo XII--O rei Ignosi
Capitulo XIII--A grande caverna
Capitulo XIV--O thesouro de Salomão
Capitulo XV--Nas entranhas da terra
Capitulo XVI--A partida de Lú
Capitulo XVII--Emfim!

Notas:

[1] Elephante! Elephante!

[2] Este cruel costume é commum a muitas tribus de Africa, por occasião de guerra.






End of the Project Gutenberg EBook of As Minas de Salomão, by Rider Haggard

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS MINAS DE SALOMÃO ***

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